Rosa da Farinha

Começa aqui a nossa história, no silêncio reverente da tarde na Fazenda Campos Novos, município de São Pedro D' Aldeia, Estado do Rio de Janeiro.

Sentada em frente a sua casa, no tronco oco de uma grande árvore que durante muito tempo serviu de recipiente na casa de farinha, Vó Rosa pode descortinar, pela posição mais elevada do terreno, as casas e plantações defendidas por cercas que se derramam a sua direita. Há também cabeças de gado nos pastos. Na estrada de terra em frente à casa, chamada caminho da Caveira, transitam ao cair da tarde peões a cavalo para tanger o gado do outro lado para o pasto mais ao fundo. São empregados do Dr. Adão, médico em Cabo Frio. Ele comprara duas posses em frente, que haviam pertencido as suas cunhadas. Venderam-nas com a morte dos maridos, ambos irmãos de Vô Joaquim, casado com Vó Rosa. Ela e o marido tinham recebido também uma proposta de venda e, como não se interessaram, pronunciando-se inclusive criticamente em relação à decisão das cunhadas, que deixaram seus filhos sem opção de permanecer na terra, acabaram pressionados em uma das vezes em que foram visitados pelo médico, acompanhados por homens que visivelmente portavam armas. Mas tudo se resolveu como um mal-entendido.

 

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A passagem dos anos dera-lhe o aspecto duma bela, duma preciosa antiguidade; nunca velharia. Revejo-a com uma espécie de bata branca de cambraia sobre a saia estampada, muito engomada e sempre cheirosa. Cabelo partido ao meio, negro e ondulado, escondida nos bandós os fios brancos. Sempre usava os brincos de argola de ouro, presente de casamento de meu avô. Temperamento marcante, vitalidade contagiante, irradiando uma convincente autoridade natural. Seus traços são aristocráticos: maçãs salientes, grandes olhos escuros, intensamente argüidores, que refletem uma fascinante gama de sentimentos: tristeza e dor, alegria e beleza, coragem e esperança.

Totalmente consumida pelo ardor político, sentia-se à vontade onde quer que estivesse. É como se sua casa, a de nº 179 do Caminho da Caveira, fosse o local ideal para receber seus ilustres visitantes de toda parte.

Vinham para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselhos, ouvir-lhe os ensinamentos; e não havia quem não partisse com ânimo mais forte e em paz consigo mesmo. Era muito simples o que ela ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos e que a resistência é o caminho para romper os grilhões. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim a mulher, sua benevolência, a grandeza de alma, a determinação.

Enérgica e suave. Em seu gosto pelas plantas fez-me conhecer e cultivar as mudas incomuns, que me oferecia: patchuli, alecrim, malva-maçã, manjerona, bogari; e as medicinais: manjerioba, jurubeba, cidreira, canforada, arnica, camomila e tantas outras. Vinha com um raminho de sementes e recomendava:

– Plante, para ver se pega. Você tem dedo verde.

Quando via o pezinho viçoso, não continha as lágrimas:

– É como se encontrasse um companheiro de infância.

Aliás, sua infância foi curta, sempre no eito, como dizia. Aos quinze anos estava casada com o primo de dezessete, Joaquim Severino Silveira – Joca, na intimidade.

No parentesco, garantia da afinidade:

– Aqui é uma comunidade, tudo uma parentagem só. Das raízes até os troncos das famílias mais antigas.

Expressões e frases sempre afirmando, na descendência, o território comum.

 

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Vovô nascera ali naquela casa humilde, mas de chão dadivoso.

Ao redor da casa, delicados canteiros exibem uma variedade preciosa de flores e arbustos coloridos. Um arco-íris no chão.

Nesse ambiente eleito, nasceram os filhos: Nilzimar, Nanci, Nivaldo, Irene e Lurdes (minha mãe). Todos cresceram sadios e tomaram seus rumos. Visitavam-na em busca de bênçãos. Tia Nilzimar não casou. Seguira os passos de minha avó na lida. Solícita e decidida, ela, que desperta o senso de responsabilidade, é vazada em provérbios, de que ainda me recordo:

Ordem não é ter lugar para cada coisa, mas pôr todas as coisas no seu lugar.

A limpeza Deus amou.

Quem não sabe fazer, não pode mandar.

Serviço de casa é tarefa de formiga: nunca aparece e nunca termina.

Tenha paciência que o peixe vem.

E, diante de qualquer tolice:

Cabeça de camarão.

É curioso ver tia Mariazinha (assim chamamos tia Nilzimar) e Vó Rosa na intimidade.

Compartilham as mesmas histórias do engenho, de escravos forros, de passeios em carro de boi, de festas do entrudo, de pastorinhas.

Eu, neta e sobrinha mais velha, mais que os outros ia escutar-lhes as histórias dos santos de sua devoção: São Elesbão, Santa Efigênia, São Benedito, Nossa Senhora do Rosário.

Custa muito pôr alguma ordem nas idéias, as quais, sob o calor da improvisação, costumam sair revoltas em tropel como animais na pega postos em liberdade.

O cafezinho ali era famoso, conhecido de todos os visitantes. Fala-se também da imensa fila de acampados que em epócas de seca vinham de outras fazendas de pobreza notória e acorriam ao seu lar, e a quem Vó Rosa ordenava que se servissem de comer. Não admitia que ninguém na terra ficasse sem um pedaço de beiju.

 

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A origem dos moradores de Caveira remonta ao tempo da escravidão. A fazenda Campos Novos, em que moram alguns dos tios, primos e primas, era uma fazenda de escravos. Eles eram traficados pelo porto de Búzios e conduzidos por tropeiros até Campos Novos através do canal de Una, que corta a região.

Vó Rosa conta histórias ouvidas do desembarque clandestino de escravos na Enseada de Búzios, os mangues da enseada ofereciam boa lenha e os escravos aproveitavam para vendê-Ia a muita gente. Aceitavam alimentos e aguardentes em troca da lenha, que ia abastecer a cidade do Rio de Janeiro, cujos compradores aproveitaram este comércio por muito tempo.

É como costuma dizer o povo daqui: Há muitos casos de fuga na descendência. E citam o nome de meu bisavô Geraldo Ilarindo Porto e do pai dele, o velho Agapito Porto, e asseveram que, na matriz de São Pedro D' Aldeia, estão os escritos que remontam a 1857. A gente ouvia, mas tudo não gravava, eles contavam também que de vez em quando tinham medo que a escravatura voltasse. Infelizmente todo esse povo, que tinha essa história, acabou morrendo e ficaram assim as histórias que a gente lembra de criança como esses velhos contavam. Todos tinham muito medo, medo do mundo, por causa da escravidão.

 

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Na comunidade de Caveira, no passado, tudo era disponível: as terras, as matas e o açude.

Os brancos membros de famílias de grandes fazendeiros, proprietários de terra na região, passavam a maior parte do tempo na Capital, desfrutando de suas posses. Eles entregavam a administração de seus negócios a terceiros e pouco vinham por estas bandas ... As tarefas ficavam estreitamente delimitadas e separadas, a discriminação racial e as distâncias sociais intransponíveis dividiam os dois mundos coexistentes e superpostos, a garantir a partilha desigual de direitos e deveres.

Uma grande colônia se erguia, em casas individuais, com uma área comum no centro, sem muros, com uma grande capoeira para folguedo das crianças e descanso dos moradores. Ali se contavam casos, dançava-se, cantavam-se jongos.

Rosa da Farinha diz:

"Tudo hoje é dividido, as únicas coisas que ainda se têm em comum são as casas da farinha e alguns poços d' água. Há cinqüenta anos, a nossa fonte de alimentação era o peixe do brejo, eram gambá, tatu, lagarto, que dava muito, houve devastação e a coisa foi acabando. As coisas pioraram depois da obra de saneamento. Antes tinha banana, laranja, quiabo, maracujá, mas o principal era a mandioca. Quando a lavoura estava ruim, a gente se refugiava na salina; quando o tempo melhorava, a gente voltava para a roça. Eu fiz feira trinta e três anos. Eu adorava ser chamada de Rosa da Farinha, minha farinha era de muito boa qualidade. A gente do mercado era minha.

Dava gosto iniciar as tarefas do dia acendendo o fogo em que, pulverizando polvilho na frigideira de ferro, encanudavam-se os beijus, ou plastrando as tapiocas pesadas de coco, que o raspa-coco-de-munheca supria rápido, botando, também, para ferver a água do café."

Assim, a farinha que vendia, o inhame e o peixe faziam parte de um mundo próximo, no beiju o mesmo gosto do beiju de sua infância. Adivinhava, em cada coisa, uma proximidade com o que havia cessado de existir e agora, num milagre, voltava.

 

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O negro das fazendas sempre foi tratado mais brutalmente do que os da cidade. No isolamento das regiões distantes, o proprietário exerce ainda hoje, mas sem controle, um ilimitado poder.

Onde as garantias das horas? Do repouso? Do trabalho? Da honra?

De Vó Rosa se contam histórias incríveis, misto de ferocidade e ternura. Muitas delas envolvendo conflitos fronteiriços de certa gravidade. Alguns, graças a sua mediação, foram decididos pacificamente.

Certa vez, pelos idos de 1950, tendo acampado por estas paragens um grupo de tropeiros com mulheres e crianças, sentiu-se logo a força da lei, que para cá acorreu em grupos. Vinham com intimação para que a área fosse abandonada, sob a alegação de que ali se tinham tornado inconvenientes como amotinadores e perturbadores da ordem e sossego público.

Notável foi então a ação de Vó Rosa que, com o auxílio de Vô Aquilino, Vó Noêmia, Vó Otília e mais as famílias Santos e do velho Marciano, frustrou toda a ação policial, barrando a milícia e clamando pela solidariedade dos demais, manifestando-se em cantos de vida e liberdade.

Durante três dias uma fogueira ardeu e o jongo retumbou festivo e em alerta pela madrugada.

Vó Rosa tem passado a maior parte de sua vida nessa luta, tendo sido desafiada e desafiando, espionada por olhares atentos de grileiros ou supostos donos da terra, que continuam vindo à sua casa em controle de rotina que nunca cessou. As ofertas e tentativas de intimidação não têm fim. Como se vive em permanente defensiva? O que a distingue não é apenas o seu carisma pessoal. A beleza desta velha senhora está no engajamento apaixonado e na vontade inquebrantável de uma mulher que se propôs um alvo político: o sistema comum da posse da terra, baseado na descendência dos antigos, seus usos e costumes.

 

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Um dia hei de ter tempo de tomar para mim todo o tempo que me apetecer, e, neste dia, todas as histórias, vivências e pressentidos de Vó Rosa e dos parentes vão incorporar-se à minha vida. Tal é o poder da herança-memória. A avó de minha infância existe mais porque eu tive tempo de observá-Ia, porque ela passou a existir em mim. É dessa fusão de tempos perdidos que desejo fazer o meu tempo; essa colheita de tempos fugazes. Possa eu viver ainda, porque há em mim tanto que não foi visto, concedam-me a estação das contemplações e mesmo se os tratores apagarem a terra ou as divisas do território, peço a sobrevivência remanescente da identidade de nós outros, pois será assim meu corpo, decomposto e renascido.

(Cadernos Negros 22, p. 55-62)

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