MARIA DÉIA

Para Carlos Jorge,

que sabe a verdadeira história

 

Na elevação do escarpado Tabuleiro da Baiana, centro do Rio de Janeiro, localiza-se, o Convento de Santo Antônio, resplandecente em altares de folhas de ouro, mármore alvíssimo, pórticos soberbos e repletos de santos. Vizinho à fidalguia do Convento, no Morro de Santo Antônio, cujo acesso se dava por escada cavada em barro, de mais ou menos cem degraus, havia casebres cobertos com folhas de zinco e tapumes; com cômodos enfumaçados por fogareiros, onde conviviam harmoniosamente velhos, crianças, papagaios, criações de galinhas, gaiolas de pássaros, gatos de luz, biquinhas, latões d’água, algazarra de crianças. Para os homens, rinhas de galo; para as mulheres, tachos comunitários de doces – quebra queixo, pé de moleque, paçoca, cocadas, compotas de frutas – que as crianças vendiam durante a semana nos trens, ruas e vizinhanças, e as mulheres vendiam aos domingos nas missas do Convento, que a classe média frequentava, e redimia-se de seus pecados oferecendo dízimos, e cantava, a plenos pulmões, com convicção:

“O Senhor é meu pastor, nada me faltará.”

 

***

Porque hoje é domingo, as réstias de alho, os pés de couve, alface, chicória, os maços de salsa, cebolinha e coentro se acumulam em meu cesto. É dia de feira livre. Vou andando pela calçada com meus pensamentos. Por mim passam carros, passa Seu Bira em meio ao odor de peixes que carrega num balaio apertado. Passa Ueraldo descarregando da caminhonete frutas e legumes fresquinhos. Reparo no tabuleiro de velas coloridas de tia Neném, que transforma parafina em formosuras. Vi o amolador de facas, seu Martins, fazer o sinal da cruz antes de começar o trabalho; para alertar a freguesia, fez chiar um pedaço de metal contra a roda de amolar: o som é estridente, o pé toca uma manivela e as mãos levantam as lâminas com a roda em movimento. Quando a tesoura ficou amolada, experimentou-a num trapo, recebeu o devido e expressou seu reconhecimento cantarolando a mesma música de sempre: As Pastorinhas, Ataulfo Alves. A rua, num clima incerto, parecia ainda adormecida e só a roda chiava como uma cigarra muito grande, que saudava o sol preguiçoso.

 

***

 

Houve um certo prazer, feito surpresa, na parada que dei para contemplar Greg (batizado Gregory em homenagem a um patrão de sua mãe), o vendedor de estalos e bombinhas juninas; ele, ao contrário de todos nós, gastava a mercadoria para seu próprio prazer, bombardeava fogo cerrado, na melhor tática, o chão da esquina, inclusive impedindo que se acercassem possíveis fregueses. Príncipe encantado, estatura malê, um rosto anguloso e largo. Vinte anos. Nos olhos triunfantes, trazia a certeza de estar sendo alvo de curiosidade e atenção. E ele bombardeava e ria. Seu momento de glória. E se alegrava, o capadócio Greg.

Sua face se iluminou quando devolvi o sorriso. O privilégio foi meu. Compartilhei a alegria de ser frugal para ser livre. A liberdade é a ausência de dependência.

Antes, eu era menina: água de filtro bastava. Agora, fogão a gás, liquidificador, televisão... Geladeiras se abrem e se fecham. E eu continuo sedenta.

Greg, pelo olhar, tem algo a me comunicar. É foguete e alegria, tem o ímpeto de mandar às favas as preocupações estreitas com lucros e ganhos. Durante um minuto estive para dentro do traço união.

 

***

 

– Vamos, Deinha. – (Minha mãe me dera o nome por apreciar a história de lampião e Maria Déia, que todos conhecem como Maria Bonita.) – O que tanto olhas?

As mãos da menina procuram a minha. É um gesto de ternura, que interrompe as lembranças e me leva a um vale pressentido, escuro e desconhecido. Então, com ela fui. Era tão forte a pressão de suas mãos na minha, como se com o coração quisesse consolar meus pensamentos, que não tinham nem nexo nem valor. Era um murmúrio adormecido. Exercício de domingo; amanhã outro dia.

– Salve-se quem puder!

Há tempo para tudo sob o sol, no espaço de uma vida. Há tempo de amar e ser amada. Há a década de criar os sonhos, os dias de vivê-los e os de recontá-los. Há saudade em mim.

 

***

 

Vou andando, são alfombras as calçadas a meus pés. Tenho semana de cinco dias de trabalho e dois dias de descanso, que revezo com Julião e Florzinha, meu irmão e minha irmã. Em casa somos seis: além de meu pai e minha mãe, divide o cômodo conosco Jupira, minha prima.

Cravo os dentes numa maçã do cesto

– Lavou, Déia? – pergunta-me Florzinha, que tanto tenho atormentado, quando vejo-a levar à boca frutos que vão diretamente da mão do quitandeiro para sua gulodice.

Não respondo e ela profetiza que terei tifo. Tem nove anos a menina que me segue, me repreende e que tem meus olhos, tem candura. Os cabelos divididos em um monte de trancinhas deixam amostra o couro cabeludo, como também muito usei. É de uma graça infinita. Não se preocupa com a resposta. Na verdade, não acredita muito em tifo.

Estou sozinha com a maçã e meus pensamentos. Estes ácidos como aquela. A marca de meus dentes na polpa da fruta é perfeitamente visível. Outras marcas há que sei que fiz. Aos cinco anos dei dentada no menino que me chamou de neguinha, gambá. Aos nove anos, no meu primeiro dia na feira, marquei de unhas um moleque vendedor de pamonha e curau de milho e que, se sentindo valentão, disputou comigo o ponto de venda. Aos doze marquei com uma cruz de tinta a casca de uma tartaruga do mato, soltando-a depois na esperança de algum dia voltar a encontrá-la... E nunca mais! Aos dezesseis anos, meus pés pisaram a areia da praia do Flamengo; ali pertinho comecei a freqüentar o terreiro onde minha prima Jupi Cavalo de Oxossi, seis anos mais velha que eu, ia se desenvolver. Preferi os bailes de vitrola de ficha, freqüentando as pistas de dança com minas de minha idade. A marca dessa época veio quando, no segundo ano ginasial, escrevi, produzi e dirigi uma peça, Nega República, e fiquei, lógico, com o melhor papel. As outras meninas, insossas coadjuvantes, mesmo sem ter brilho no espetáculo, adoraram os aplausos, isso lhes bastava. Adorei a sensação de popularidade e poder. Foi meu último ano ali. Precisei complementar a renda da família, que passava por necessidade. Contas feitas, não há maçã sem acidez, não há vida sem mordidas, estava tudo bem assim.

 

***

 

Houve um dia em que o Santo Antônio, que sempre amanhecia vermelho e dourado, amanheceu cinzento. Lá embaixo apareceu um jipe grande e veloz. Surgiram depois lerdas máquinas e um caminhão transportando homens de macacão e capacete. Engenheiros e técnicos com mapas nas mãos para comprovação dos cálculos.

Botando os bofes pela boca, o menino Sabino iniciou a gritaria, que acordou até aqueles que varavam a noite em bebedeiras na Casa do Abajur Lilás, de Selma.

Greg, Ueraldo e Luís são os primeiros a chegar. Seguem-nos Jupi Cavalo de Oxossi, Jorge Bacurau, Tião do Galo, Teófilo do Angu e toda sorte de gente.

Permanecem calados, sem compreender o que se passava. Pequena multidão acotovelava-se e tecia todos os tipos de comentários. Juntei-me a eles.

– Que beleza, os pneus!

– Pelos carros e pelo grupo, são autoridades.

– Será que vão canalizar água para o morro?

– Isto exige explicação – falou Greg, com o que concordaram todos.

– Há perigo iminente, vamos à lida, à noite nos encontraremos na casa de tia Neném.

– É muito aberto – opinou alguém.

– Então na casa do Abajur Lilás, é o maior espaço que temos.

As mulheres entreolharam-se, assustadas, mas a urgência não permitia pudores, e também só assim conheceriam o lugar afamado

E assim ficou acertado.

 

***

 

O batuque à noite era na casa de Sá Fátima, a vendedora de flores de mãos negras e roliças que sabiam transformar feios e imprestáveis sacos plásticos de leite em coloridas e delicadas rosas. Dádiva pura. Em torno dela, seus contos da escravidão. Entusiasmada, dançava e cantava jongo, mesmo os seus “três vezes trinta” anos de idade. Fazíamos a roda, pandeiros, bumbo, zabumba e cuíca.

Bambarê era o poeta, extremado admirador de Solano Trindade, pernambucano como ele, que se radicou em Duque de Caxias, periferia do Rio. Após umas e outras recitava versos:

 

A cidade onde eu moro
É como o mundo.
Tem criminosos e santos.
Há os que exploram e há os explorados.
Quando o mundo mudar,
A cidade onde eu moro
Mudará também.

 

Numa dessas noites, Ueraldo, o da caminhonete, viu chegar à porta da Casa do Abajur Lilás tipos estranhos. Abriu a boca e coçou o queixo.

– Quem são esses valdevinos? – perguntou a Greg.

Greg voltou-se para o local e as figuras já haviam sumido no beco. Não prestou demasiada atenção, concentrado que já estava no jogo de bilhar.

 

***

 

A reunião começou com as notícias trazidas por Greg. O governador iria construir ali um hotel, um prédio público ou qualquer coisa mal explicada. Não haveria diálogo. Estava tudo decidido.

– Não podemos aceitar isso. Temos que negociar.

Alguém sugeriu conversar com os donos das bancas de bicho. Toda favela investia ali.

– E se pedíssemos ajuda às bestas? Tenho freguesas importantes entre elas – sugeriu tia Neném. Podem nos ajudar.

– Ajudar quem? – Jorge Bacurau alterou a voz. – Rico não ajuda ninguém. Os seringueiros permaneceram escravos dos seringais; os madeireiros, das madeiras, os nordestinos terão de continuar comendo barro, cavando chão com as mãos sangrentas. É nos lucros, nos latifúndios, nas indústrias, na criação de cavalos e firmas imobiliárias, é nisso que elas pensam enquanto remordem suas aves marias. Não há ricos que salvem os pobres da merda!

– Comunista! – gritou alguém, lá atrás.

– Está bêbado – balbuciou uma senhora.

E se formou o tumulto. Ninguém atendeu ao pedido de Greg:

– Calma, pessoal, temos que resolver isso.

Durante a semana toda o discurso inflamado de Jorge Bacurau foi mais foco de atenção do que as máquinas que avançam vorazmente.

 

***

 

Poucos compareceram à reunião seguinte. As convocações afixadas nas portas dos barracos sumiam como por encanto.

A terra faltando sob nossos pés, árvores para baixo, passarinhos para longe. Dragas cavando à noite, quando ninguém vê. Autoridades públicas, agitações circundantes são o pó, o enxofre das explosões constantes. Remoções. Negociações ocultas. Um minuto de entrefitar operários, que sabem no que recusamos a acreditar. E então, abaixam os olhos.

 

***

 

O sono não demora a chegar quando a gente trabalha o dia todo. Ouviram-se os primeiros estrondos, ficaram brilhantes os olhos, antes sonolentos, num relâmpago a imediata compreensão. Os barracos sucumbiram ante as escavações. Chão, telhados, bacias de peixes, abóboras, roupas, utensílios, trapos, tudo misturado... Tudo sendo levado de roldão. O gemido dos moribundos, os gritos desesperados das mulheres, o lúgubre uivar dos cães. Alguns ainda dormem...

Crédulos, os justos, os inocentes, cumprem a promessa da vitória da ressurreição que lhes virá dar um beijo de amor. Outros jazem em meio à escuridão do penhasco, cuja boca imensa se abre embaixo, lá no fundo.

 

***

 

Rompeu chuvosa a madrugada dos mortos... Impressionou-me o caixão de Sá Fátima, coberto com as rosas de plástico de leite, feéricas, porque ninguém as sabia arrumar como ela.

– Desabrochou para o paraíso – comentavam.

– Foi o meu primeiro mano a mano com a morte.

Uma gota de chuva pode ser uma lágrima, uma das muitas que não me atrevi a chorar.

O morro de Santo Antônio não existe mais. O quadrilátero no centro do Rio abriga hoje o BNDES, o prédio da Petrobrás, a Caixa Econômica Federal e a Catedral Metropolitana do Rio de janeiro. O local sepulta vidas dadas em sacrifício.

O Convento de Santo Antônio continua lá, como um palatino. Testemunha viva da história e das consequências sociais e econômicas que a especulação imobiliária acarreta.

 

***

 

A tragédia e a vontade de limpar dos sapatos o lamaçal da dor impelem as pessoas a partir. As promessas de habitações populares confortáveis, higiênicas, cada um possuindo a sua, conseguiram fazer-nos atravessar os noventa quilômetros de estrada esburacada, lama e o pó amarelo que se incrustava na pele. Tínhamos a promessa de escolas, capela, armazéns, praças, asfalto, água encanada, luz elétrica e campos de futebol: chamava-se conjunto residencial. A imprensa noticiava o grande projeto do governador.

Tinha caminhão basculante para servir aos que restara alguma coisa. O caminhão quebrou duas vezes, deixando-nos retirantes urbanos num sol escaldante. Chegamos ao fatídico local ao cair da noite. Fatigados. Uma pregação ideológica sobre o nosso lar feita pelo engenheiro responsável não desfez a impressão patética. Nos rostos anuviados escorriam lágrimas. Construções inacabadas, quatro ou cinco andares de tijolos; nem praça, nem capela, nem luz, nem água, nem privada. Capão do mato.

As pessoas se aglomeram em crescentes reclamações; o estupor vai dando lugar à fúria. E aí o pau comeu! Todos se envolveram. Sacos de farinha, feijão e milho derramados; frutas e legumes pisados; peixe servindo de arma de combate. Engenheiros, políticos, supervisores, todos entraram no sarrafo. Já que estávamos mesmo no fim do mundo, partimos para o ajuste final.

 

***

A turba acalmou-se. Barracos foram improvisados com o que sobrou. A noite descendo seus bruxedos. Não há escape, não há alçapões, saídas secretas. Um Conselho se reúne para pensar a situação. Nele estamos Greg, Luís, Ueraldo, Tião do Galo, Jupi Cavalo de Oxossi, Jorge Bacurau, Teófilo do Angu e eu.

Falávamos baixo como outrora, quando tentávamos impedir a remoção. Greg, homem inteligente e cauteloso, falou pouco, ouviu muito e pensava ainda mais... Depois de analisar todas as sugestões propostas pelos velhos companheiros que haviam participado da antiga empreitada de resistência, malograda, para a permanência no morro de Santo Antônio, compreendeu que o problema podia ser apenas ser resolvido com a ocupação de terras de outros morros. Após avaliar prós e contras, o escolhido foi o morro do Juramento, e começou-se a esboçar o tão audacioso plano.

Greg suava. Calor, perplexidade e tristeza.

Observei, medi seu rosto no escuro, avaliando sua vida e a minha achei que a minha valia mais, porque não me pertencia. No escuro da noite podia ouvir a respiração opressiva da multidão que jazia na miséria e esperava do Conselho a salvação prometida.

 

***

 

A ocupação dos morros Juramento, Adeus e Jacarezinho foi feita gradualmente. Muitos anos vividos num gênero de vida em comum, sem ter de prestar contas a ninguém, sem obedecer nenhuma autoridade que não fosse do seu meio. O tempo nos ensinara. Não era apenas um aglomerado, havia um objetivo, não era permitida a ociosidade. Todos deveriam trabalhar, todos deveriam concorrer para o bem da coletividade.

Greg mostrou-se logo um líder. Dividiu tarefas, cuidou de doenças e saúde, felicidade e sofrimento, apoio e abandonos. Suas preocupações e ascendência sobre a comunidade dividia com Ueraldo, Luís, Tião do galo, Jorge Bacurau, Jupi cavalo de Oxossi, Teófilo do Angu e comigo. Atraiu admiradores, fama, mas também inveja e ciúme; tornou-se o centro do real poder político e social.

Estive o tempo todo sempre ao seu lado, vendo os alicerces movediços, os mensageiros de fé e compromissos, os fascinantes traidores.

Greg não possuía títulos ou honrarias particulares. Instalou-se numa casa ampla que mandara construir num lugar alto, um rochedo que dominava as redondezas e era ótimo posto para a atalaia observar ao longe. Chamavam-na a Fortaleza.

Abaixo, em pequenos casebres, abrigavam-se seus defensores mais próximos, com quem precisava manter contatos mais imediatos e a quem recomendava “manter olhos e ouvidos bem abertos”.

Greg estava cada vez mais comprometido com atividades da Associação: botar água no morro, cadastrar e investigar os recém-chegados, providenciar óculos, aparelhos auditivos, cadeiras de rodas, toda sorte de ocupações. O morro crescia a olhos vistos. Havia pequenos armazéns e escolas, quadra de esportes e um clube social. Greg passou de benfeitor da comunidade a comandante das ações. Gravitavam em torno dele fiscais da assistência social, pastores, bicheiros, pais e mães de santo e seguranças que lhe garantiam o domínio territorial.

Poucas vezes é visto. O homem da Fortaleza podia tudo que desejasse. Tornou-se polêmico, revolucionário, excomungado, inimigo de autoridades e políticos, a quem subornava com grossas propinas para obter as benfeitorias para a comunidade. Teve também seguidores por sua astúcia, inteligência e bondade. Fantasiaram suas atitudes. Como árbitro de algumas pendengas, diziam ter feito jovens desaparecerem misteriosamente por suspeita de adultério, ter atirado um homem da ribanceira por cometer incesto, ter abandonado um jovem em cárcere privado a pão e água por roubar um bujão de gás de uma paralítica. Rezavam lendas de uma milícia armada de meninos e de um arsenal de armas que daria para fazer desaparecer, da Baía de Guanabara, a Ilha de Mocanguê.

Suas obras estão acima dessas pequenas nuances, e eu, como parte envolvida, me abstendo de julgamento.

 

***

 

O primeiro Natal no morro. Farta distribuição de roupas e brinquedos. Almoço gratuito, shows, espetáculos, muita animação. Vi nas crianças sorriso de alegria e agradecimento. O prazer e a inocência precisavam ser prolongados até que os encontrasse a realidade da vida. Ao final do dia estava exausta.

– Foi um dia e tanto, não foi? – perguntava-me Greg.

– Valeu a pena – a resposta sai num murmúrio.

Ele fuma e eu creio que lacrimeja. Do terraço onde estamos há uma suave visão do mar, que naquele instante se fazia pérola co raios de prata derramados. Em mim, a poderosa certeza de que fomos feitos um para o outro. Sem calcular, sem reticências, aceitando tudo quanto possa vir, me entrego.

Amar com urgência, para não ser folha seca, que o vento leva e nem sempre volta. É preciso estar lastrada. O amor pede isto. Só ele faz isto. Assim firmei minha âncora, estou há setenta anos na Fortaleza, como chamam minha casa. Nunca mais saí daqui.

 

***

 

Tive duas filhas, quatro netos e quatro netas. Só um mora comigo. Deram-lhe o nome de Marcos Gregory (agora, em justa homenagem ao avô). Muita gente passou por nossas vidas. Jupi Cavalo de Oxossi entrou para a crença e mudou seu nome para Violeta. Casou-se com um sargento da milícia e mora no subúrbio, em Acari. Ueraldo, Luiz e Jorge bacurau ainda seguem Greg, são seus lugares tenentes. Tião do Galo perdeu um olho numa discussão de bar. Montou seu próprio negócio, que envolvia bebida, jogatina e prostituição. Casei Florzinha, ela mora junto de mim e tem dois filhos, Marcílio e Bernardo, e será avó em breve. Meu irmão Julião resolveu ser pára quedista e vive pelo mundo. Sejam prósperos os ventos. Sejam belas as terras vistas. Sei que ele tem a força do trajeto da certeza, dos que não nasceram alados, mas que podem voar.

 

***

 

Exilado no morro do Juramento, Greg exercia domínio sobre todas as ocupações. Desencadeou perseguições, ódio e, sobretudo ciúme. Descontentou a milícia oficial e a milícia civil, que tem por trás de si a polícia, o governo, e no governo os capitalistas, banqueiros, industriais, comerciantes, militares que podem falar alto, impor, exigir, desmandar-se. Caiu em desgraça.

Nos últimos tempos, tinha se fechado em si mesmo.

Ninguém viu a chegada dos carros, nem do Aero-Willis reluzente que Ueraldo agora dirigia. “Anjo da guarda de pobre é muito distraído.” Foi só quando deram os primeiros passos para a inclinada Fortaleza que os homens ouviram o rumor das botas, sentiram que o mal do mundo marchava contra eles e experimentaram um terror confuso. As luzes dos prédios se apagaram. Foi pavoroso o choque.

Ueraldo foi o primeiro a entrar. Soaram os tiros. Um no peito e outro na garganta. Greg sentiu o peito arder. Tinha frio. Não sentia as pernas, a cintura, os quadris. Outro som espocou e ele viu estrelas como os fogos de artifício da infância. Viu a luz difusa do abajur lilás. Debrucei-me sobre ele.

– Gregory, Gregory.

Espocaram flashes e a troperia de botas aumentou.

– Quem procura, acha – filosofou um deles.

– Vocês viram, ele resistiu à prisão – acrescentou outro.

Vi uma mulher inundar-se com o sangue do corpo do amado, um olhar frio e esgazeado. Após instantes que pareciam séculos, levantou-se lentamente, o rosto desfigurado. Era eu, Déia, Maria Déia.

– Nada de choro e baboseiras! – alteei a voz, deixando a todos atônitos. – É isso o que eles querem. Beber nossas lágrimas.

O enterro parou a cidade. Coroas de flores foram enviadas por bicheiros, pastores, umbandistas, comerciantes, políticos, chefões de outros morros e de outros Estados: todas sem identificação. O cortejo se estendeu por quilômetros. Panos pretos nas janelas em sinal de luto. Netos, filhos, afilhados que chegavam perto de cem; tanta gente para dar o último adeus ao benfeitor, rostos exauridos de sofrimento e admiração. O céu encoberto onde se via uma profusão de fogos de artifício. Isolaram aquela morte. Lançaram-lhe um monte de abafo. Enterro anônimo coberto por um só programa de televisão.

Em verdade, não fez milagres, não ressuscitou ao terceiro dia, não está sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso, nem morreu para salvar a humanidade.

De longe, a praia do Flamengo tem um brilho de cristal que lembra o gelo. Aqui do alto contemplo a cidade. A favela cresce como uma árvore desenvolvida em diversos sentidos. O equilíbrio foi rompido.

Nenhum rio volta à nascente de onde veio; nenhuma rosa, à roseira que lhe deu a vida. Todo fogo arde em flamas para o alheio prazer.

O que você faria para enfrentar o hiato, quando tantos precisam de você?

De repente, eu me sinto só como uma loba, que fora da alcateia é mais ativa, é mais feroz, é mais forte e que se compraz com a solidão contida. Estar só não é estar sozinha. Aos meus pés brinca o menino que tem a cabeça raspada, como é moda agora, neste outros sombrios tempos. Apesar da pouca idade, já tem a estatura malê do avô. Muito alto, como um varapau. E por isso ganhou o apelido de Marquinhos VP.

(Cadernos Negros 24, p. 65-79)

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