A Paixão e o Vento

 

O morro desceu para o grande triunfo. Saiu nos cabeçalhos dos grandes jornais, dez em tudo, a escola foi a primeira.

Bira procurou um ponto mais alto em meio ao povo. Queria, precisava encontrar a Ritinha, impossível aquilo ter acontecido... Escapar entre os dedos...

Recordou a moça, menina ensaiando os primeiros passos na quadra, pernas crianças tropeçando, desafiando o repique do tamborim. Apreciava-a, ela olhou para ele ingênua no pedido de ajuda, me ensina a fazer moço! Largou o instrumento, rodopiou em volta dela, é assim menina, os pés rápidos desenharam na quadra o sapateado do samba nascido com ele, compassos que os ouvidos levavam aos calcanhares. Ela procurou imitar os volteios com graça, riu feliz, tu levas jeito, criatura, é só soltar o corpo, o ritmo faz o resto, assim que nem eu, rodou mais algumas vezes, o apito parou a batucada, algumas palmas, foi para o barraco pensando na menininha com um sorriso nos lábios, poxa, essa vai longe ...

Agora estava à sua procura, a menina crescida, a passista número um, a melhor da ala, Ritinha, que desabrochou pouco a pouco na frente de seus olhos, tomara o corpo de uma deusa, os quadris sinuosos que se fizeram assim, com o chegar da idade, a estreita fita dividindo as nádegas salientes, os seios ao léu.

Afastou com os cotovelos a multidão, que se comprimia no desejo de participar da comemoração... queria dizer-lhe que a queria depois de tudo, coisa fora de moda, respeito, remorso, sei lá, dúvidas que não existiam mais depois do último ensaio, foi ela quem provocou, saíra com ele, ainda comentou, não disse que tu ia ser a melhor passista, taí, tá vendo, a rapaziada toda se amarra em tu, ela mostrou as continhas brancas brilhando entre os lábios carnudos, um sorriso infantil. Bira foi tu que me deu força, aí deu uns requebros na frente dele, roçando a bunda nas calças dele, as mãos deslizaram pela pele lustrosa da cintura dela, fez mais devagar se apertando de encontro ao corpo dele, deu vontade de espremê-la, trazê-la para mais junto... Te vi menina, garota, pirralha... Eu sei que só num sou mais, sente só, deixou o pescoço dobrar em volta do ombro dele, olhou dentro dos olhos de Bira, quase um apelo, forçou o braço para estreitá-lo contra o corpo suado, fervente, saiu baixinho, parecia dizer sem querer... Me possui, Bira... Empurrou-a bruscamente para desvencilhar-se, toma tenência garota, tu ainda é uma fedelha, pô, aí ó, adepois tu fica cheia, o morro todo vai saber, e aí como é que fica o papai aqui... Saiu se ajeitando enquanto ela, lépida, foi se esgueirando pelo labirinto dos barracos em busca de água para abrandar-lhe as chamas... Naquela noite, Mirtes, nega de fé, até achou que seu homem amava mais ela do que antes, nem ouviu quando ele a chamou de Ritinha!

 

***

 

Cara de idiota, coração pequenino, à cata de Ritinha. Fechou os olhos, os refletores incendiando, as arquibancadas aplaudindo, o surdo marcando, os taróis rufando, ala evoluindo com precisão e ela girando debochada em volta dele, o corpo negro se contorcendo sensual, no samba rasgado se inclinou num passo que ela sabia dar. Ela repetiu o gesto, desafio, estava mais mulher que nunca, tremeu os peitos... Tu tá vendo só... Tomou pela cintura, foi deixando que o corpo escorregasse, se desdobrasse até ter-lhe o ventre seminu deslizando pelo seu rosto, as coxas que se abriram para que ele deixasse a dança executar sua coreografia, o dor acre do suor veio forte, trouxe-lhe a realidade... Instinto, abandonou-o em busca de outro componente da ala, chegou o fim da passarela, a escola em bloco foi dispersando, fim de festa, voltou ao morro pensando na glória, na Mirtes e na Ritinha. Olhou com ar de enfado a companheira, tinha outro cheiro, tirou a fantasia, adormeceu com a outra... Logo seria dia, então iria mostrar àquela foguenta quem era o Bira!

 

***

 

Sabe, num é por nada, mas achava que tu era uma criança, os olhos iam acompanhando, estreitando, enquanto Ritinha ia tirando as peças, um corpo desconhecido, embora já o tivesse visto e sentido diversas vezes, mas só que agora parecia diferente, real, tentação sedutora na brejeirice dos anos, viu-a nua, tesão, a ânsia de extravasar o gozo prometido... Bira puxou-a contra seu corpo, rolaram sobre o carpete macio, refez o quadro, a menininha tropeçando na quadra, o sorriso criança, ela pediu baixinho, faz gostoso Bira, a paixão dele era tão grande que após tanto tempo se convertera em fogo, quis fazer... No dia em que finalmente se deram a conhecer, de suas entranhas brotou uma língua flamejante que reduziu o membro tão esperado a um montinho de cinzas.

 

***

 

Levantou-se da cama, foi à janela e, do parapeito, com carinho, começou a soprá-las ao vento... Bira, você brochou... Ele vestiu a roupa em silêncio, falou para o moço da portaria, vê lá o que a menina quer, subiu seu morro, no caminho vendeu o tamborim...

(Cadernos Negros: três décadas, p. 217-219)

 

Texto para download