Serão sempre as terras do Senhor?

É invasão
quando gente do campo
planta o espírito de Palmares
e dá vazão ao desejo de criar
um Quilombo
e trabalhar com seus pares?

É invasão
se as terras do Senhor
cobrem-se de mato
enquanto olhares à espreita
esperam que uma estrela
traga-lhes justiça e
desfaça o temor?

É invasão
quando em Luiza Mahin
outra mulher se transforma
pra acabar com a dor
de ser tratada como
coisa-ruim?

É invasão
o homem
fincar os pés na terra, pois
será a própria Terra que
vai devorá-lo como
um joão-ninguém?

Um dia, quem sabe,
depois dos 300, 400, 1000 anos de Palmares
gestaremos novos Zumbis, Acotirenes
para redesenhar
a Nação
e talvez do rubro solo
verdes frutos surgirão.

(Cadernos Negros 17, p. 20-21).

 

Olhar negro

Naufragam fragmentos
de mim
sob o poente
mas,
vou me recompondo
com o Sol
nascente,

Tem
Pe
Da
Ços

mas,
diante da vítrea lâmina
do espelho,
vou
refazendo em mim
o que é belo

Naufragam fragmentos
de mim
na coca
mas, junto os cacos, reinvento
sinto o perfume de um novo tempo,

Fragmentos
de mim
diluem-se na cachaça
mas,
pouco a pouco,
me refaço e me afasto
do danoso líquido
venenoso

Tem
Pe
Da
Ços

tem
empilhados nas prisões,
mas
vou determinando
meus passos para sair
dos porões

tem
fragmentos
no feminismo procurando
meu próprio olhar,
mas vou seguindo
com a certeza de sempre ser
mulher

Tem
Pe
Da
Ços,

mas
não desisto
vou
atravessando o meu oceano
vou
navegando
vou
buscando meu
olhar negro
perdido no azul do tempo
vou
vôo,

(Cadernos Negros: os melhores poemas, p. 64-66)

 

Sálùbá

Nanã Buruku
Divindade do povo Ashantí
embala com dignidade
àqueles de tez escura
jogados em qualquer vala dura
na lua sua banhe com altivez os corpos
daqueles sem rosto na multidão.

 

Sálùbá

Divina mãe
leva pro lago os segredos
encantados das avenidas
na brincadeira violenta da rua
o enredo termina em nó atado
nem minha, nem tuas sitiadas crianças.

Ancestral mãe revela pro mundo
porque há presentes letais:
cola, crack, outros tantos mais ofertados
para aqueles de tez escura
cuja figura é contornada pela lâmina
afiada do desprezo.

Afetuosa mãe, cuida desses filhos
que não são seus
agora, grandiosa mãe
só você zela em cerimônia secreta
corpos esquecidos que repousam
na fria cama do asfalto.

(Cadernos Negros 29, p. 112).

 

Interapresentação

Temos aparência de felino
de dia esconde suas presas
para soltá-las à noite,
com mios de canções solitárias
que atordoam a todos,
admirados com a Negrice e o
Negrume da N O I T E. 

(Cadernos Negros 7, p. 53).

 

 

Tenho cem razões entre mil para querer ser feliz.

 

A criação me pega, me abraça e beija minha testa. Daí um frenesi me domina. Quando passa a explosão, rasgo páginas, xingo, dou porrada, me desquito de vez da palavra. Mas, no entanto, a criação vem como paixão bem nutrida, me pega, me abraça e beija minha testa.

Tenho cem razões entre mil, para querer ser feliz.

Ligo a tv para me encher de ilusões e viro super-homem limpando janelas. Viro mulher maravilha, mas meus sonhos acabam, quando alguém grita do reino encantado: Epa! Super-herói preto aqui não entra.

A gente vale tantos milhões de dólares que até nos deixam morrer de fome.

Todos os dias em ponto, o click do relógio fotografa-me como o padrão de operária.

Almoço cheesburger com molho burguês, batata frita e arroto indigestão.

Não sinto vontade nenhuma de tomar água, me encho de palavras.

Tenho cem razões entre mil para querer ser feliz.

Beijo minha mãe com a sensação de estar beijando o chão da África. Meu pai, de um griôt, meus irmãos, de comunidade.
Tenho cem razoes entre mil para querer ser feliz.

(Cadernos Negros 11, p. 30).

 

 

 GUARDE SEGREDO

 

Prezada Senhora:

Recebo com surpresa sua carta perguntando-me so­bre vovó. Como descobriu o meu endereço? Vim para cá logo depois que presenciei aquela cena. Aqui ninguém sabe quem sou, mas, mesmo assim, estou atordoada. Sim, essa é a palavra certa, atordoada. A insônia me persegue. Sabe, fatos estranhos aconteceram enquanto morei naquela casa. "Foi ele quem pediu pra voltar", foi a última coisa que vovó disse.

Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados da nossa quitinete em Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Moráva­mos na Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos. Eu devia ter uns onze anos na época. Apesar de mamãe ser a filha única de vovó, as duas eram geniosas. Quando ficavam juntas, brigavam sem parar. Embora pa­pai adorasse vovó, eles foram obrigados a morar com um irmão de papai. A casa de vovó era antiga. Engraçado, nunca havia me prendido a esse detalhe. Percebi isso quan­do fui residir lá. Era de manhã, caía uma chuva fina. Na­quele dia fui a pé pra casa dela. Queria sentir a chuva miúda caindo em meu rosto. Demorei menos de uma hora para chegar lá. Levei comigo apenas a mochila da escola e uma pequena trouxa de roupa. Quando cheguei para abrir o portão, ele estava trancado e com cadeado. Não me lem­bro quantas vezes chamei por vovó. Parada ali fora, ob­servei a arquitetura da casa. O portão e o muro eram de madeira e bem altos. As paredes de concreto eram altas também. As janelas, amplas e com cortinas. As cortinas deviam ser muito pesadas, pois estavam todas fechadas. Conforme circulei ao redor da casa, contei sete janelas. Uma para cada cômodo. Em alguns momentos, podia ju­rar que ouvia sons vindos de um dos cômodos. Conver­sas, risos e um tec-tec-tec. Porém... Batia palmas e mais palmas com força, chamava e gritava, e nada. Acho que minha voz se perdia entre as folhas daquela jabuticabeira, porque quando tentava espiar pela fresta do portão, as fo­lhas da árvore se agitavam sem parar. Olhei daqui, olhei dali. De repente uma mulher surgiu lá na esquina. A mi­nha alegria foi logo embora. Parecia, mas não era vovó Olívia. Tinha a mesma cor, o rosto igualmente sem ne­nhuma ruga. Magra e baixinha, e cabelos de algodão. A diferença entre as duas estava nos óculos. A firmeza e a segurança no andar daquela senhora aliviaram um pouco a minha angústia. Fiquei muito envolvida na dança lenta da vida e, quando dei conta, ela passava por mim, res­mungando alguma coisa. Talvez consigo mesma. Meus olhos não desgrudavam daquela mulher. A partir daí co­meçaram a acontecer coisas estranhas. Quando virei o corpo, vovó Olívia se encontrava ali parada. Com o susto, caí pra trás com a mochila e a trouxa de roupa. Me recom­pus. Nem consegui especular por que havia demorado tanto para me atender. Ela sorriu e disse: "Eu te esperava. Entre”. Continuei com a mochila e a trouxa nas mãos. Ela havia dito aquilo como se já soubesse sobre o nosso des­pejo. Como se estivesse nos olhando sempre. Caminha­mos.

– Temos visita, vovó? – perguntei.

– Não. "Ele" já foi embora – respondeu.

– Por onde "ele" saiu, se a única saída era pelo portão? – insisti.

Deu uma pausa, fez um muxoxo e retrucou: "Vê se não me amola". Procurei com os olhos, mas não o encon­trei. Elas tinham o mesmo gênio. Mamãe também era fir­me e autoritária. É, vovó não respondeu. O silêncio pre­valeceu naquele momento. A cozinha e o quarto estavam limpos e arrumados. Parecia que sempre estivera sozinha. Usávamos apenas a cozinha e um quarto. Por causa da imensidão dos cômodos, sussurrávamos para evitar eco. Os outros quartos da casa estavam abandonados. Não. Não tão abandonados. Vovó guardava, além de cacarecos, al­gum segredo, porque eram todos trancados. Andava com o molho de chaves no bolso, não o largava nem para dor­mir. Eu achava essa atitude estranha, porém se a interro­gasse, com certeza ela diria: "Vê se não me amola". Sem­pre dizia essa frase. Acordávamos cedo um dia sim, outro não. Eu varria e passava vermelhão nos dois cômodos e lavava o banheiro. Só não limpava o quintal, porque vivia sempre coberto por folhas e flores das árvores. Depois da faxina, cuidava da horta, apanhava algumas mangas e brin­cava no balanço, na gangorra. Brincava sozinha. Sozinha, não. Um homem sempre aparecia pra gente brincar. Como surgia, também sumia, de repente. Parecíamos velhos co­nhecidos. Quem é ele? - pensava. Vovó Olívia costurava uma colcha de retalhos. Costurava ponto por ponto. Não tenho certeza, pois nunca vi a colcha pronta.

Certa vez, limpando o nosso quarto, olhei pra cima e lá estava, bem no alto da parede, um pequeno quadro. Apesar de empoeirado, reconheci os mesmos cabelos, rosto e terno daquele homem das brincadeiras no quintal. Vovó se encontrava no banho. Então aproveitei a oportunidade, subi na cadeira mas, quando estiquei a mão para pegar e ver melhor a foto, só consegui ler as iniciais L.B. Bati o corpo no prato de uvas pendurado um pouco mais abaixo. A porcelana se espatifou no chão. Vovó chorou e me xin­gou tanto por causa do incidente! Depois disso, fui cuidar dos meus afazeres e brincar lá fora, como de hábito. Eu não disse: a janela do nosso quarto era voltada para o quin­tal. Como dormíamos no mesmo espaço, conseguimos le­vantar a janela até a metade. Porém, quando olhei lá den­tro, no lugar de vovó costurando sobre a mesinha, vi o mesmo homem do quadro e que brincava comigo. Ele da­tilografava alguma coisa apressadamente. Espiei pela ja­nela, ele conversava e ria sozinho. Percorri o olhar pelo quarto e não a vi. Fui correndo para lá. Entretanto, quan­do cheguei, vovó Olívia costurava seus retalhos. Gritei não sei quantas vezes o seu nome, mas sua voz saiu baixa e abafada: "ô que foi, menina?" Talvez fosse impressão, porém ela tinha no rosto o mesmo sorriso daquele homem.

– Quem é o homem do quadro, vovó? – Perguntei. Ele foi uma pessoa muito importante para mim. Seu nome era Lima Barreto - respondeu, com a voz embargada de emoção.

Aproveitei a sua disposição e bombardeei-a com perguntas: "Por que a senhora nunca disse isso antes? Por que ele ainda vem aqui em nossa casa?"

Foi processando uma pergunta de cada vez. Fez um muxoxo. Quando ia responder, chegou um telegrama di­zendo que mamãe havia passado mal. Fomos correndo para o hospital. Nós duas não tínhamos o hábito de ir à casa de ninguém. Apesar da crise financeira ter levado papai a perder o emprego de carteiro e deixá-lo muito doente, ele aparecia uma vez ou outra para nos visitar. Sabíamos de mamãe através de papai.

Os anos foram passando, eu estava com dezessete anos, mas meu corpo parecia de uma mulher. Estudava à tarde no Ginásio Nacional e chegava à noitinha. Certa vez, quando voltava da escola, surgiu à minha frente aquele rapaz. Ficamos conversando horas e horas. Depois de al­guns dias começamos a namorar. Cassi Jones era sarden­to, usava goma nos cabelos e andava bem vestido. Íamos para lanchonetes e barzinhos. Ele morava num bairro de classe média no Rio de Janeiro, entretanto não acreditei quando contaram que não gostava de trabalhar. Não o amava, mas não conseguia resistir a todo aquele charme. Havia dias e semanas que não assistia às aulas. Não co­mentei com vovó sobre o meu romance, mas acho que já sabia. Um dia de manhã, me disse: "Como vai Cassi Jones?" Fiquei apavorada e não lhe respondi. Ela também não insistiu. Porém eu não conseguia entender.

 

***

 

Nunca mais esquecerei aquele dia, porque tudo aconteceu tão rápido. Era Dia de Todos os Santos. Come­çou de manhã, quando tomávamos chá. Vovó se encontra­va numa total absorção. Ficou assim por minutos, meia hora, não sei. O corpo estava ali sem alma. Suas mãos contornavam lentamente a xícara na boca. Ora os lábios davam a impressão de pronunciar frases, bem baixinho, ora ela abria a boca para engolir o líquido. Nunca havia reparado, já não controlava com firmeza os seus movi­mentos.

– O que a senhora tem hoje, vovó? – Perguntei.
– Hoje é o Dia D – respondeu.
– Como? – Insisti.
– Gosto da morte porque ela é o aniquilamento de todos nós – disse.

Ela falou todas essas coisas sem olhar pra mim. Procurando entender tudo aquilo, me distraí. Quando per­cebi, estava na hora de ir para o ginásio. Peguei minha mochila e corri pra escola. Era gostoso sentir a chuva miú­da caindo no rosto. Justamente naquele dia não havia nin­guém no colégio. Aproveitei e fui buscar umas coisas que mamãe tinha comprado para mim. Presenteou-me com um pacote de roupa. Quando voltava pra casa de vovó, fui interpelada por uma senhora gorda. Parecia muito com Cassi Jones. Ela cruzou o meu caminho e ficou parada na minha frente. Insultou-me tanto!... Disse coisas horríveis do tipo: "Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não vai ficar com ele. Nesse exato momento está com outra garota". Além de outros absurdos, cuspiu em mim e eu também cuspi nela. Odiei aquela mulher e seu querido filho. Todos saberiam que eu não poderia olhar mais para a minha família. Não iria deixar por menos. Então fui ao mercado e comprei uma faca. Não tomaria nada, coragem eu tinha de sobra. Procurei, igual uma lou­ca, o desgraçado. Encontrei-os na saleta de um hotelzinho. Ela fugiu, mas ele não teve tempo de reagir. Foram tantas facadas!... Parei quando caiu aos meus pés. Também ar­ranquei de seu pescoço um cordão de ouro. Guardei a faca no pacote de roupa e saí tranqüilamente. Demorei menos de uma hora para chegar à casa de vovó. Foi daí que vi, tenho certeza. A sala, antes trancada a chave, estava aber­ta. Escutava um tec-tec-tec. Entrei pela cozinha, passei pelo quarto e parei em frente à porta da sala. Gritei, cha­mando vovó. Fui entrando, entrando e ouvi o Lima Barreto escrevendo à máquina. Conversavam e riam muito. Por um momento, juro tê-lo ouvido dizer: "Esperávamos por você. Entre". Eu pensava: "Tudo está acontecendo ao mesmo tempo".

– Você matou Cassi Jones? – Ele interrompeu o meu devaneio.
– Matei – respondi. "Como soube disso?", inter­roguei-me.
– Bravo! Esse era o outro final que eu queria para o cafajeste do Cassi Jones.

O escritor tirou da máquina o papel, rasgou em pe­dacinhos e jogou no lixo. Olhou para vovó e disse: "Obri­gado. Eternamente obrigado". Então vóvó Olívia falou aquilo: "Tinha de ser assim, minha neta", e continuou: "Nós não devemos aceitar o destino com resignação". Fi­quei parada, olhando para os dois. Vovó prosseguiu: "Não tive culpa, foi ele quem pediu pra voltar".

- Como o trouxe de volta? - Perguntei à quei­ma-roupa.

Ela fez um muxoxo, resmungou consigo mesma. Quando ia me responder, escutamos um barulho de sirene bem longe dali. Alguém mandou: "Vá esconder a faca no pé da jabuticabeira! Vá depressa!" Eu estava muito ner­vosa, mas fui. Quando voltei, eles não se encontravam mais lá. Vi uma caveira perto da estante. Uma coisa bran­ca, quase do tamanho da sala, vinha pra cima de mim. Não sei como consegui escapar. Só deu tempo de sair cor­rendo do recinto e trancar a porta. Eu tinha de sair daquela casa rapidamente. Chamava por vovó, gritava, gritava e ela não me ouvia. Uma voz cantava uma música na cozi­nha. Cada vez que a chamava, a canção aumentava de tom. Não tenho certeza, mas senti as paredes vibrarem. Corri, corri, quando cheguei na esquina percebi que havia dei­xado a mochila e o pacote de roupas lá na sala. Depois daquele dia, nunca mais voltei àquela casa. Nunca mais soube de vovó Olívia. Sei que ainda existe o balanço e a gangorra, apesar do mato ter tomado conta de tudo.

Tenho muito medo. A insônia me persegue. Aqui onde moro ninguém sabe desse fato. Troquei meu nome.
Obrigada por ter escrito. Foi melhor ter contado isso a alguém.
Não sei como conseguiu me achar. Mas, por favor,

 guarde eternamente este segredo.

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 65-72.).

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