VIDA PELO AVESSO

Aidil Araújo Lima

 Com olhar no longe, dona Santinha acomoda o corpo num cochilo, o pensamento adormece nas lembranças do marido morto, até escuta seu pisar afagando a terra, rumaram tanto por ali que o mato desistiu de nascer, virou direção, rota de gente. Era nessa passagem estreita que o seu homem fugia da tristeza de ser individuo sem importância, desvalorizado na pessoa, era ninguém, menos que a enxada arrancando mato, que a praga destruindo plantação. Às vezes quedava para o lado, a cachaça embaralhava o juízo, seu corpo entortava os olhos calados, como se mudasse para outra vida, maneira de esquecer o desprezo. E as mulheres... Seu homem teve filhos com mulheres da rua, raparigas, naquele tempo não tinha lei de reconhecer sua cria. Os machos daquela época faziam filhos fora de casa, não afirmo serem todos, só sei que eram muitos. E, dona Santinha, sua mulher verdadeira, apelidava imprestável, amarrotava com palavras, como se tivesse culpa de derramar o suor na terra arrancada da família por fazendeiros astutos, faziam os enterros depois cobrava com a terra. Engolia seco. Foi um dia bem cedo, a vida andava devagar, a mãe não aguentou a espera e desertou desse mundo, o pai se desatinou, sem dinheiro para a cerimônia, aceitou ajuda do compadre. Esse, passado os oito dias de resguardo, veio cobrar a ajuda, o coitado só plantava para o sustento da vida nada tinha guardado para a morte, o compadre lhe tomou as terras e juntou as tantas que já tinha. Resignada com o destrato, silenciava de jeito a não assustar os filhos, sabia que depois de ver sua briga recusada, ele pegava o charuto, arredava fora de casa buscando resposta. Sentava-se na pedra do lajedo, acho até conversava. Vez em quando balançava a cabeça. José era homem de coragem, saía cedo para a lida, dia a dia, nunca teve falta por motivo que fosse: doença, nascimento de filho, morte de parente. Engoliu o pão que o diabo não quis, não deixou faltar comida para a família. Homem bom. Sentia pena dele, sem terra para tirar o sustento, trabalhava na terra dos dominantes, arrancadas dos pequenos produtores, enganados perversamente, derramava todo suor, chegava com o dia anoitecido sedento de agonia. Mas o pior se assucedeu numa festa de Nossa Senhora do Rosário, não era dos pretos, era dos brancos mesmo. O patrão lhe convocou para ajudar na labuta da casa, quando receberiam os parentes da capital para a festa. Chegou toda gente, José nem avistou esse povo. Num espanto avistou policias, foram direto a ele, o arrancaram da labuta sem dizer o acontecido. Só quando chegou lá no lugar de exclusão foi perguntado onde estavam as joias. Numa resposta perdeu alguns dentes, durante os nove dias de missa, mais um de festa, ele foi perdendo parte de sua pessoa. Dona Santinha era só reza, chamou por Nossa Senhora da festa, suplicou que acudisse seu José, homem puro de mãos limpas. Tardou um pouco para resposta, só mesmo quando terminou a festa, eles estavam de regresso para a cidade grande, ao deitarem as malas no carro avistaram a maleta das joias. Foi o milagre da Santa, eles foram à delegacia e explicaram o que não tinha explicação, prender um homem inocente, sem flagrante, nem prova que fosse. José chegou igual aos dias de cachaça, escorregava para um lado que nem quiabo, nesse dia ele trocou o sentido, seu corpo decaía para o lado esquerdo, não tinha cheiro de bebida forte. Ficou assim calado, arrastando a vida, sem querer contas do que ia adiante. Um dia, olhou enviesado, ensaiou palavra de desculpa ou despedida, não teve tempo, a alma saiu do corpo, ereta, desentortada, seguiu pela rota de costume. O sol desce, afogando de luz suas pálpebras, despertando o sono. Joga para longe as lembranças, enquanto ouve o passo sereno de Pedro, seu companheiro. O compasso do caminho era de resistência, a espera de afeto sem sobressalto.

(In: Mulheres sagradas, p. 91-93)

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