TERRA PRETA

Aidil Araújo Lima

Não foi de repente. Sua confiança no rio há muito vinha se enfraquecendo, como corpo sem alimento. Na verdade foi perdendo a certeza. Antigamente, sentava a sua margem com a água a lhe molhar as feridas da alma, aliviando a vida. Foi percebendo que ele não tinha sinceridade em suas marés. Mentia, assim como os homens dessa terra, escondendo as verdades dissimuladas por nomes. Nasceu preta, mudou-se negra, agora afrodescendente. Sem dúvida alguma, esse não era seu lar. Crescia dentro de si um desejo exacerbado de ir do outro lado, atravessar o oceano, talvez fosse lá sua casa, onde negros eram pretos e a terra lhe pertencia. A pessoa se perde quando vive em terra alheia, é como se fosse ninguém. Uma mulher precisa se sentir parte de alguma coisa. Foi assim que Cândida começou a sonhar com a terra que era sua. A vontade era uma só, atravessar o oceano, e se encontrar. Precisava de dinheiro para atravessar a água doce, de sabor amargo. Único caminho conhecido. Acostumada a esperar os artesanatos de barro que o rio trazia de Nazaré das Farinhas, mercadorias que vendia na sua loja. Tinha uma intimidade com ele, sabia das suas horas, quando enchia e vazava. Decidiu-se por vender a loja, já teria uma parte do dinheiro para comprar o barco. Foi morar perto do rio, na casa das mulheres de vida deslembrada; elas ganham dinheiro esquecendo-se, deixam que os homens gozem enquanto elas viajam com os pensamentos em outros caminhos. Cândida era muito boa na arte de viajar, enquanto os homens faziam o serviço, ela deixava o corpo quente na cama e sua alma aventurava-se nas águas geladas do oceano, o corpo tremia de frio, deixando eles alucinados. Ganhou preferência, aumentou renda, o dinheiro já estava quase completo, logo atravessaria a fronteira. Foram tantos clientes numa noite que chegou a África pela demora, o gozo da alma confundia o corpo. Até que a alma se soltou ao pegar a terra preta. O corpo se apercebeu desta astúcia e entrou no rio esbaforido no alcance da satisfação. Sentiu-se tão feliz, nem percebeu a frieza da água. Alheia aos gritos de salvamento seguia certa de tudo. Eles enlouqueceram querendo salvar-lhe, ela finalmente havia se encontrado.

(In: Mulheres sagradas, p. 71-72)

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