O crime do Cais do Valongo
(excertos)

 

“O senhor Bernardo Lourenço Viana, conhecido comerciante do Valongo, foi achado morto na Rua Detraz do Hospício N. 137, em frente a huma morada de cazas de sobrado com três janellas de frente, que encontra-se vazia para venda. A Intendência Geral da Polícia está a investigar as estranhas circunstâncias em que foi encontrado o corpo.”

Gazeta do Rio de Janeiro – Avisos –  23/08/1809


Escrevi a notícia inteira com luxos de detalhes, mas sabia que não sairia na Gazeta do Rio de Janeiro. Este libreto de repórter enfadonho, de um palmo de medida, que só falava das guerras e conflitos da Europa, dos assuntos ligados a Dom João e sua família ou, ainda, de avisos de compras, vendas, viagens... Queria que este periódico fosse como os que o marujo Caetano me trazia entre os seus contrabandos: moderno. Se assim o fosse, não escaparia de ter nele escrito que o todo poderoso Intendente-Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana em pessoa, coçava a cabeça e franzia s testa enquanto comprimia um lenço de linho bordado no nariz, se defendendo dos odores da decomposição que já fazia seu trabalho corrosivo.

Acompanhado de dois guardas da Divisão Militar da Guarda Real, olhava a face intumescida de seu parente distante e vizinho na chácara Andarahí Grande sem entender nada. O morto estava envolto em uma colcha sob medida, com uma faca cravada na barriga e com duas partes do corpo decepadas. Era o defunto mais estranho de toda São Sebastião do Rio de Janeiro.

Ele, que despachava a cada dois dias com D. João VI em pessoa e dominava a área de segurança pública, nunca vira nada parecido. Palavras deles. E era a sua responsabilidade patrulhar as ruas, expedir passaportes, vigiar os estrangeiros, fiscalizar as condições sanitárias dos depósitos de escravos e providenciar moradia para os novos habitantes que a cidade recebeu com a chegada da corte ao país.

– Há menos de uma semana estava este gajo na chácara oferecendo uma festa “daquelas” dignas de um vice-rei! Mas o que terá passado...? Murmurava Paulo Fernandes, enquanto verificava o defunto.

O corpo do comerciante Bernardo Lourenço Vianna estava acomodado em um caixote, a um canto da Rua Detrás do Hospício, ali bem perto da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, que, além do mais, ficava muito próxima da residência do intendente, uma imponente casa da Rua do Conde, perto do Campo de Sant´Anna. Sua famosa carroça estava estacionada a poucos metros. O intendente pensava que o primo, próspero negociante do Valongo era, decerto, uma figura presunçosa e bastante desagradável. Conhecia-o bastante bem das históricas desavenças familiares e também porque a sua hospedaria –a Vale Longo – um pulgueiro bem próximo aos armazéns, trapiches e tabernas daqueles subúrbios, por vezes recebia quem chegava fugindo dos conflitos da Europa e atraído pela presença da Família Real em solo brasileiro, mas não tinha dinheiro para ocupar os lugares nobres da cidade. Também tivera vários arranca-rabos com ele por conta dos depósitos de escravos; o intendente estava a fiscalizar as condições daqueles locais.

Ficou famosa uma briga entre ambos após a inspeção do armazém 23, quase defronte à hospedaria. Bernardo não queria gastar um único vintém para fazer as modificações recomendadas e sempre se valia do parentesco distante com o intendente para escapar. Desta vez foi multado. O bate-boca entre os primos aumentou o tom e ganhou as ruas, para assombro dos transeuntes. Bernardo apelou para os assuntos familiares e privados. Pronto. Por muito pouco o comerciante não saiu dali direto para a prisão.

Paulo Fernandes sempre achou que o temperamento de Bernardo o colocaria em desventuras infinitas ao longo da vida, mas nunca imaginou que o acharia morto daquela forma tão estranha e justo naquele momento, em que parecia estar no auge de suas posses, finalmente com o título de barão, cuja obtenção tanto o perturbara, e prestes a se casar com uma moça belíssima, de uma das famílias mais tradicionais da cidade, Emerenciana Campelo D´Ávila. 

(O crime do cais do Valongo, p. 7-11)

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Certo dia, no princípio da noite, os feitores trouxeram um homem que diziam ter feito algo abominável. O senhor Lima de Azeredo, dono daquelas terras, reuniu os pretos da casa e da lavoura e também os brancos seus convidados. Todos se acomodaram como que em um teatro igual àqueles a que vez por outra meus senhores iam assistir nas casas distintas. Ficamos todos ao redor de um enorme caldeirão com água fervente. Eu estremecia imaginando o que estava para ocorrer. Nenhum dos pretos queria ver, e percebi que alguns brancos, principalmente senhoras, também não, mas o senhor Lima de Azeredo nos obrigava com voz enérgica e uma ameaça no olhar. O senhor Bernardo e dona Ignácia estavam entre os mais excitados da assistência.

O homem foi trazido por dois capatazes enormes, cada um segurando em um braço. Estava altivo, mas só começou a gritar quando viu o que seria feito. O senhor falava muito exaltado.

– Se em sua terra selvagem permitem-se estas imundícies e sujidades, vestidos como mulheres e servindo de pacientes uns aos outros, não o farão em minhas terras! Não o farão em terras de verdadeiros cristãos de bem!

Este senhor não sabia o que estava a fazer. Enquanto era conduzido para o caldeirão, entre os gritos, o homem maldizia toda geração dos senhores e jogava encantamentos. Ele era um jimbanda¹ e muitos tinham tradições em feitiçarias. Dizia as coisas fortes em sua língua, que aprendi a reconhecer um pouco nos meus tempos do mercado em Quelimane, na minha Moçambique. Ele era acusado de somitigo. Se fossem pretos fazendo outros pretos de mulher, não sei se o castigo chegaria àquele ponto, mas o condenado estava de caso com um sinhozinho branco, embora no caldeirão tivesse apenas uma cor.

Quando finalmente foi mergulhado, o pobre desmaiou de tanta dor antes de a água lhe chegar aos joelhos. Não sei o que foi pior, os gritos ou aquele silêncio cheio de odores, sons da noite e respirações ofegantes. Os rostos de uns escondendo a todo custo o medo e a aflição e os outros aproveitando o espetáculo.

Senti as tripas revirando e uma nuvem passou em minhas vistas. Calafrios de pavor percorreram meu corpo. Estava pela primeira vez em um engenho e nunca mais esqueceria aquele momento porque ele, o escravo escaldado, viria a se juntar aos muitos que me cercavam chegados do outro mundo. Disse que se chamava Joaquim Mani Congo e pediu uma coisa que eu sabia como dar: a paz no mundo dos ancestrais.

1. Homossexual 

(O crime do cais do Valongo, p. 21-23)

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Fechei os olhos para ver as imagens dentro de mim e elas surgiram límpidas como cristal fino de uma taça da cristaleira do engenho Tamarineiras. Como diz um proverbio da minha terra “é melhor perder a vista que a alma” e sempre nesta mesma hora – sim, conversamos muito cedo... ou seria muito tarde? – eu desperto, pois, esse céu de escuridão quase clara faz meu espirito enxergar o meu povoado num momento mágico em que apenas três coisas havia: a imensidão úmida da planície verde, o silêncio de doer os ouvidos e o monte dominante na paisagem. Posso sentir o ar fresco depois de muitas chuvas abundantes caírem no sopé do monte Namuli. Nunca mais esquecerei essa sensação e o cheiro de natureza misturado com a terra encharcada.

O verde que domina a paisagem no meu local encantado impressiona. Todo o povoado transborda com uma abundância de espécies de plantas e animais que só existem lá. O solo fértil onde minha família plantava milho e criava cabras abrigava dezenas de casas circulares de terra batida e telhado de palha. Havia um rio, o Licungo, com milhares de pedregulhos em sua extensão onde nós, crianças, nos divertíamos quando ele não estava muito cheio e bravo. Nos trechos em que as mulheres lavavam as roupas, as pedras ficavam cobertas pelos panos estampados secando ao sol, o que dava um colorido especial e inusitado à paisagem.

(O crime do Cais do Valongo, p. 44-45)

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