Por um fio

Nasci de cabeça feita.
No começo, não sabia.
Entre os hábeis dedos maternos
via os meus crespos fios
domados por um laço,
que me prendia também por dentro. 
Cresci sob um mito,
medo de me ver refletida 
no espelho do que sempre fui. 
Mas ainda menina, meu desejo
já se enroscava, virava trança
e me protegia.

Quando me vi desnuda
olhei demoradamente:
os pés plantados no chão
as pernas, troncos fortes
o ventre escuro
pleno de inquietações.
Mãos e braços regidos
por nossos ancestrais
seios fartos
da seiva que alimenta o mundo.
Vi em mim o riso de meu pai
o olhar de minha mãe.
De repente, me encontrei.

Soltos, meus cabelos
diziam de mim
mais do que qualquer palavra,
raízes que me conectam
com uma gente que veio antes de mim
reinventada na menina que pari.

                                        (Nós, p. 44)