Reféns da metrópole

Não me espere
Devo chegar atrasada
Como tantas outras vezes.

Este que insiste em me acordar
Finge controlar o tempo
Mas não passa de um objeto amorfo
Ponteiros em busca de uma identidade.

O sol adentra a janela
Vivaz como nunca
Impondo obrigações a alguns
Criando possibilidades para outros.

Buzinas, sirenes, faróis
Compõem a poética da manhã
Nada mais que remeta
Ao baixo meretrício da noite passada.

Tijolo com tijolo, cimento e tráfego
Chico Buarque deve ter passado
Na contramão aqui por São Paulo.

Eu que a esta hora
Sou moradora do silêncio
Ando pela casa falando com os olhos
Improvisando vontades pra seguir.

Não me espere
Devo chegar atrasada
Mais uma vez.

Fico a olhar as pessoas no trem
Fones de ouvido e mudez
Por que não cantam?
Por que não cantam?!
Deve ser porque não escutam
Bezerra da Silva
Deve ser...

Fico a olhar as pessoas nas ruas
Também devem estar atrasadas
Apostam corrida com seres imaginários
Que diariamente as acompanham.

Desce do trem.
Sobe as escadas.
Sinal vermelho.
Atravessa fora da faixa.
Corre até o ponto de ônibus.
Motorista passa direto.

Não há sorriso.

O relógio finge controlar o tempo.
Na cidade, cada um finge controlar a si mesmo.

                                                   (Terra fértil, p. 42)

 

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