Amnésia

Eliana Alves Cruz

Benício... ou seria Bruna? Jussara estava nesta tarefa de pensar no sexo da criança e no tanto que ela e o marido Pablo estudaram e trabalharam para chegar até ali. Quando a campainha tocou, estava com tudo organizado. Ela e o marido, Pablo, finalmente haviam terminado todos os preparativos para uma viagem sonhada há muitos anos. Estavam casados, bem empregados, conceituados em suas profissões e moravam em um dos melhores bairros da cidade. Ambos estavam na casa dos 30 e alguma coisa e esperavam o primeiro filho, que também era o primeiro sobrinho, neto, afilhado... A família cobrava, os amigos cobravam, os colegas de trabalho cobravam, eles mesmos se cobravam. Chegara o momento de aumentar a família. Escreveu em sua rede social: Sentindo-se maravilhosa. Pensou em pôr um ponto de interrogação ao final da frase, mas duvidou de seus motivos para duvidar.

A campainha soou outra vez. Devia ser a moça que entrevistaria para babá de Benício... Ou seria Bruna? Absorta em seus pensamentos e sentimentos secretos dúbios sobre a maternidade, mas na obrigação de "sentir-se maravilhosa", abriu a porta displicentemente, ainda com os olhos postos nas informações sobre lugares e lojas que visitaria na América do Norte. Apenas sentiu o ar lhe faltar quando levantou os olhos para a moça que estava de pé aguardando um convite para entrar.

Sua boca enrijeceu, suas pernas e mãos amoleceram, deixando cair o aparelho que segurava; as pupilas se arregalaram e o sangue parecia ter congelado dentro das veias, pois ali, parada diante dela, estava ela mesma... aos 12 anos de idade.

Não era alguém parecida. Não era uma miragem. Era ela mesma em pouca carne, muito osso, cabelo sem alisamento e despida de roupas de grife. A menina sorriu e entrou calmamente sem ser convidada, com a naturalidade de alguém da casa, tão íntima que dispensava formalidades.

Minutos antes de encontrar com a criança que era ela mesma, Jussara refletia que haviam planejado aquela viagem para comemorar – Benício... ou seria Bruna? – е ao mesmo tempo aproveitar os últimos momentos em que seriam apenas ela e o marido. Comentários em sua rede social: Em breve você saberá o que é nunca mais ir ao banheiro sem alguém te esperando do lado de fora! Risadas acompanhavam as reações ao comentário. Compelida a responder alguma coisa, disse: A realidade mudará de forma radical, mas para melhor! Outra vez veio aquela vontade de trocar exclamação por interrogação. Um medo avançava dentro da executiva tão competente.

Encostada no sofá da sala confortável, acariciava a barriga ainda inexistente e pensava que estava tudo perfeito, exceto por um detalhe: a babá. Trabalhavam muito, diziam. Não teriam tempo, falavam. Criança dá trabalho, revelavam.

Se fosse honesta com seus desejos, estaria rumando para uma praia no Caribe, mas em Miami, diziam as colegas, o enxoval sairia por menos da metade do preço, e comprariam nas melhores lojas. Pegara as dicas mais quentes com outras executivas do trabalho.

– Pense que ele vai crescer. Compre logo muitas coisas de tamanhos maiores. As roupas americanas têm uma qualidade que nem se compara com as coisas daqui. Vão durar demais e vocês vão economizar – disse uma das amigas.

– Os Estados Unidos têm muito produto bom pra cabelo crespo. Já faz um estoque. Vai que... né?

Haveria algum produto para crianças..., pensou. Cabelos muito ponderou outra, crespos eram de difícil trato, tomavam tempo e na escola seria um problema, ponderavam. Jussara modificava a textura do cabelo desde os 12 anos. Cresceu com várias justificativas para as químicas que derretiam seus fios. A mais recente era a que dizia que O mundo corporativo exige outra imagem. Você não é artista.

Jussara era tida como uma profissional agressiva e implacável no mundo dos negócios. Sua visão para cenários futuros era muito elogiada. Para frente! O importante é daqui para frente!, era seu lema. Ela calculava, antecipava e media. A tudo parecia controlar. Planejaram bem, juntaram dinheiro e desembarcariam com as condições para voltar com a criança vestida pelos próximos quatro anos; usufruiriam de excelente hospedagem e passeios. Com a cabeça recostada em suas almofadas cuidadosamente escolhidas por uma decoradora, estava em um dos seus raros momentos de reflexões acerca do passado. Reparou que, por preencher algumas lacunas na memória, não conseguia... Poderia alguém apagar desta forma períodos inteiros da própria vida? Sim, lembrava da infância dura, mas.. faltava algo.

Ainda estava parada com a porta do apartamento aberta. A pequena Jussara sentou no sofá, no mesmo lugar onde ela estivera deitada, na ponta do assento daquele jeito que parecia que a qualquer momento se levantaria para sair.

– Não vai fechar a porta... Nem a boca? – a garota riu seu sorriso, gesticulou seus gestos e coçou a cabeça do mesmo jeito que até aquele momento ela própria coçava. Levantou o braço para acenar para ela e deixou à mostra a cicatriz ainda muito viva do corte que teve ao manusear uma faca de cozinha naquela idade. Olhou o próprio braço: a cicatriz estava lá, mas era uma fina linha gasta pelo tempo e quase sumida graças a uma plástica fizera para apagá-la. Isto a deixou ainda mais apavorada.

– Vamos! Entre. Temos muito o que falar e não temos o que dia todo.

Jussara obedeceu, automática e trêmula; sentou-se na poltrona em frente à menina, sem conseguir articular palavra. Poderia desmaiar a qualquer momento.

– Por favor, vamos pular esta parte! Qual o seu espanto? Pense no seu privilégio. Pense em quantas pessoas gostariam de ter uma conversa dessas.

 Depois de alguns minutos, Jussara parecia ter saído do transe. A menina tinha se levantado para olhar a janela.

– Uma piscina! Sempre quis uma casa com piscina! Nossa. Enriquecemos mesmo!

A piscina era do edifício e não se considerava rica. No entanto, para a menina de 12 anos que fora, estavam num palácio.

– E aí? Agora podemos finalmente ir para a praia azul que vimos naquele filme na casa da patroa. Vamos, vamos, vamooos!

A palavra "patroa" destravou sua amnésia. Jussara criança abriu os braços como que para mostrar melhor roupa surrada a que o seu número, o cabelo sem os xampus e cremes caros que estavam em seu banheiro moderno; os sapatos com a sola descolando; as unhas "no sabugo' e a pele manchada por alguma verminose. Lembranças soterradas em algum buraco fundo da mente queriam preencher as lacunas de décadas. O bebê da patroa, Dou um quarto, comida e uma folga por semana, o quarto abafado, o maior medo, o pânico, o pavor, Ela vai estudar, Vou cuidar de sua filha, será praticamente da família, a comida não repartida igual, as proibições, Vamos alisar esse cabelo! Tenha uma aparência decente!, Toma este jaleco branco novo, o bebê crescendo, a menina crescendo, o seio crescendo, o patrão olhando, as aulas depois do expediente, as provas, a aprovação, a demissão pedida, Ingrata!, Preguiçosa!, Gente assim não valoriza o que lhe dão, Agora qualquer um quer ser doutor e doutora.

Subitamente Jussara sentiu aquele gosto de lágrima na garganta. A criança se aproximou dela mesma, acariciou sua cabeça e a colocou no regaço. A infância embalando e confortando a adulta brincava de esquecer.

– O filho é nosso.

A garota foi até um aparador da sala e parou em frente a um porta-retratos em que ela e Pablo se abraçavam. Imediatamente lhe veio uma imagem que estava no fundo das reminiscências: O bebê doente. A patroa ministrando o remédio e saindo do quarto. A criança ficando roxa. Ela gritando. A patroa voltando. O tapa em seu rosto. O abraço do casal no hospital. Os dedos apontados para ela. Os olhares voltados para ela. Os ódios dirigidos a ela.

– Acalme-se, não foi nossa culpa.

As duas ficaram por um longo tempo de mãos dadas, acessando memórias uma da outra, como velhas amigas que apenas haviam se conhecido de verdade naquela tarde. Jussara mirou a menina, que devolveu o olhar. Desta vez era ela quem indagava.

– Eu quis ser você? Desejei ser o que você é? Sonhei você, Jussara adulta? Sonhei você? Ajude-me a lembrar, por favor! Deixe-me lembrar daquela que eu quis. Deixe-me, deixe-me...

Uma voz gritava seu nome e não era mais a da menina. Era Pablo. Ela levantou do sofá num pulo. Já era noite. Olhou para ele esfregando os olhos. Levantou e foi até o banheiro. Olhou suas olheiras no espelho. Que sono sentem as grávidas!, pensou. Olhou seus produtos de beleza na bancada da pia. Marcaria um corte para o dia seguinte. Voltou à sala e olhou o marido.

– Tudo bem? Quis saber ele.

– Pablo. Acho que não precisamos da babá.

– Não precisamos, querida.

Terminaram a noite refazendo os planos de viagem. Afinal, o mar do Caribe seria uma linda vestimenta para Benício. Ou seria Bruna?

(In: Olhos de azeviche: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Malê, 2020, p. 23-28)

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