A passagem

Eliana Alves Cruz

Deitada no leito acolchoado, de olhos cerrados e presa a um tubo, Carolina dos Reis refletia sobre sua vida até aquele momento. Poderia ter acabado com tudo muito antes de se ver recostada naquele local quente, apenas aguardando pela hora derradeira, numa ansiedade sem fim e imaginando, afinal, como tudo terminaria e como seria “a passagem". O filme que desenrolava diante de seus olhos mostrava a realidade sem enfeites. Era preciso enfrentar a verdade. Era o momento da carne crua. Pensava no corpo nu e no leito que a oprimia cada dia mais. Um incômodo crescente, mas ao qual ia se adaptando, pois não tinha outro jeito.

Não conseguia distinguir muito bem o que diziam, mas ouvia um barulho intenso ao seu redor. Pensou que finalmente poderia descansar e ter paz quando chegasse a hora. Entre todos os sons ao seu redor, um se destacava: o da voz de sua mãe, Antônia, que já estava no outro lado da vida. Como seria, afinal, a outra face da existência? Escutava a mãe chamar com suavidade, Minha filhinha, e cantar músicas doces. Canções ancestrais. Também ouvia chorar em suas angústias por ter carregado, durante a vida inteira, o mundo nos ombros, suportando julgamentos.

Não conseguia mover-se e a sonda incomodava. Queria mudar de posição. Até que enfim inclinaram a cama!, pensou. Estava em uma posição mais cômoda, mas... as vozes do além não a deixavam descansar. Uma delas pensou ser de Orlando. Teria ele vindo fazer uma visita? Teria essa coragem? Homens são seres nada confiáveis, pensava, Vou tratar de me prevenir contra eles no outro mundo, refletia com um sorriso irônico.

Sentia o corpo com a pele fina e enrugada. A vida era mesmo cruel. A mente entrou num turbilhão e começou a recapitular algumas passagens contadas pela mãe, em suas confissões quando estavam sós, sempre com uma ponta de amargura. Tinha tantas coisas para falar e para perguntar quando finalmente a encontrasse no além... Crescera assim, ouvindo que precisava ter o dobro dos ombros das outras. Mas que outras?, perguntava-se. Não seriam todas fêmeas a habitar o mesmo planeta inacabado? Não, não seriam todas as mesmas fêmeas, dos mesmos machos. Cedo entendeu dona Antônia, mas queria não apenas falar. Queria encontrar a mãe e dar o abraço que no momento não podiam trocar. Sorriria para ela e lhe daria ternura. Alegraria seus dias e juntas ficariam para sempre neste novo mundo.

Dona Antônia – em um tempo que agora lhe parecia distante na eternidade, quando ela ainda era bem pequenininha –, sentou-se com ela na frente de um espelho e a fez compreender que essa cor da terra que a cobria dos pés à cabeça era toda a sua beleza e seria toda a sua luta de vida. Recebeu da mãe a força e as informações de que precisava para ao menos começar a nova jornada, mas com o carinho vinha de sua voz aveludada. Carolina então prometera, de forma silenciosa, que lutaria para que no novo mundo a existência fosse menos dura para elas.

Sentia-se estranha naquela cama que se tornava mais incomodava a cada dia. A cabeça não parava. Decidiu encarar a espera não como uma tortura, mas como a chance que lhe davam para examinar o texto do que vivera até ali. Saberia em breve se outra vida realmente existia, e não queria errar. Ter esta chance seria muita generosidade do Criador. E, afinal, como seria Ele? Esperava que fosse uma Criadora, que fosse uma Deusa. Muitas vezes duvidou, embora a voz de sua mãe viesse lhe dizer Deus a que amava. Como poderia acreditar em sua existência se desde cedo aprendeu que umas e uns têm mais direitos que outras e outros? Sabia que a linda igualdade era uma ilusão que se derramava pelos papéis e discursos, mas nunca pelas vidas de carne e osso.

Ouvia pessoas apontando rancores. Gostavam de colocar palavras em sua boca e pensamentos em sua cabeça. Chegou a se engasgar com tantas coisas que lhe empurravam pela goela, que nem abrir direito podia naquelas condições. Finalmente regurgitaria tudo aquilo e se sentiria leve. Esta passagem lhe pareceria bem mais penosa se não tivesse entendido que precisava dizer o que achava que me devia e a quem era de direito. Em alguns casos, indo às últimas consequências. Dona Antônia a ensinara que era preciso aprender a guerrear com a palavra.

Fechou os olhos. Já havia passado em revista que aprendera. Por último lhe veio outra vez Orlando, no quadro mental. Também escutava sua voz vinda do além. Entenderia finalmente por que a abandonara tão cedo. Estiveram juntos no início de tudo, e quando finalmente chegara o momento de comemorar algumas vitórias, ele a abandonara. Escutava as vozes do mundo, sabia que a solidão era algo comum entre elas. Passou muito tempo a se perguntar, afinal, se teria feito de errado. Qual a sua participação naquela dor toda. Não chegou a uma conclusão muito segura, embora soubesse que sua digital também estava lá, naquela ferida que jamais cicatrizava. Chorava baixinho no acolchoado de sua cama. Nem chorar direito podia, com aquele tubo atrapalhando!

Sua mãe aparecia falando em perdão, e ela sentia culpa por não conseguir. Culpa... era duro se desfazer de toda essa bagagem. Queria ter uma nova chance com Orlando. Sentia que o meio da jornada poderia ter sido completamente diverso. Haveria outra vida? A respiração pesava. Queria se livrar daquele tubo! Subitamente o coração parecia explodir. Sentia como se a cama inteira se movesse. Estaria indo para o céu? Teria ele o nome de céu, paraíso ou orum? Não importava. Era ela, a morte. Chegara a hora.

Teve muito medo e se encolheu. Ouviu ainda mais vozes a sua volta. Seria a mãe Antônia? Seria Orlando? Seriam os médicos? O coração explodia. O sangue afluía para o cérebro. Um gelo lhe percorreu a espinha, e sentiu, de uma vez, todos os órgãos do corpo. Teve a consciência de cada um. Desistiu de lutar. Desistiu de não se entregar. Soltou o corpo. Mergulhou no nada... no completo nada.

Um silêncio do mundo se fez em seus ouvidos. Mas ainda estava lá. Havia consciência, mas nunca em sua longa vida havia ouvido tanto silêncio. Uma tênue luz rompeu aquele imenso universo de "coisa nenhuma". Uma ardência nos pulmões a fez gritar e chorar.

Então era isso o que havia do outro lado! Sentiu mãos quentes a amparando e a voz tão conhecida e amada. Cortaram-lhe o cordão. Seus olhos embaçados de lágrimas miravam a pele tão negra e aveludada da mãe Antônia. Queria perguntar ela sobre o pai, Orlando, mas preferiu lhe sugar o seio e ser o bebê tão aguardado. Sim, teria outra chance.

(In: Olhos de azeviche: contos e crônicas, 2020, p. 17-21)

 Texto para download