Oitenta e Oito

Eliana Alves Cruz

O grupo estava reunido havia horas sem chegar a uma conclusão. Um burburinho percorria o ambiente e, vez por outra, uma voz queria dominar e fechar a questão. A Dra. Josefina, mãos postas sob o queixo e olhar cansado, parecia alheia a tudo aquilo. Estava em qualquer outro lugar, menos em uma sala do IPS — Instituto de Pesquisas dos Sentimentos. Deixou o debate acontecer por um bom tempo, sem interferir, até aquele momento em que lentamente se levantou e, com sua figura pétrea, de olhos cerrados, impôs o silêncio e tomou a palavra.

— Mil anos se passaram ... Mil anos! Estamos nes­te esforço eterno de empatia e ainda não conseguimos de forma totalmente eficiente. Esta reunião é a prova inequívoca disto.

As palavras da pesquisadora-chefe tiveram força de açoite no grupo formado pelas melhores cabeças que estudavam o tema em três planetas. Alguns não estavam presentes em corpo e este fato, ao invés de amenizar, por vezes acirrava o debate, pois o senti­mento de intangibilidade dava uma coragem que o olhar do oponente por vezes suprimia.

— Observem a vocês mesmos. Estão comportan­do-se como aqueles homens primitivos do século 21, em que a bravura se apresentava apenas na virulência das palavras digitadas nos teclados de seus velhos computadores ou dispositivos.

A comparação constrangeu o grupo de respei­tados cientistas, mas eles não conseguiram rebater a chefe que, aliás, por isso mesmo, ocupava esta função: por seu profundo senso de observação e análise acu­rada, para além de toda sua capacidade técnica.

Josefina fora uma das pioneiras nas chamadas "Experiências de Vivência”; viagens no tempo para ver in loco acontecimentos históricos e observar como al­guns fatos realmente ocorreram. Nessas jornadas, viam os acontecimentos como num filme, mas estavam lá, invisíveis na cena. Tinham um tempo determinado para permanecer e regras de conduta rígidas comandadas por um código de ética severo. Anos de treinamento eram necessários para integrar uma expedição. Ela era a encarregada de fazer a análise psicológica dos perso­nagens envolvidos, mas agora a proposta radicalizou-se.

A doutora prosseguiu como numa preleção de general para a tropa antes da batalha.

— Seremos o primeiro grupo a levar as "Expe­riências de Vivência" a um nível nunca antes experi­mentado. Seremos o primeiro grupo a vestir a pele.

Neste ponto, fez uma pausa dramática, para dei­xar que suas palavras surtissem efeito. 

 Quando retornarmos da nossa missão, tra­remos na bagagem, com toda a plenitude, o que nos falta: o tesouro dos mistérios da empatia. Agora é chegado o momento derradeiro. Quem de vocês prossegue? Se acharem que devem, o tempo de de­sistir chegou.

O professor Tomás estava inquieto desde o início e levantou-se abruptamente, falando com rispidez.

— Eu desisto. Não vejo sentido em voltarmos ao sofrimento. Não vejo como poderemos ajudar as gerações futuras ou mesmo os planetas e nações que ainda sofrem hoje o flagelo da escravidão apenas por "vestir a pele" dos que vivenciaram isto em passado tão remoto. Já possuímos informação suficiente para auxiliar nesta luta sem precisar passar por algo assim. A dor precisa ser sublimada e não revivida. Vocês todos são loucos de voltar por este caminho! O que provaremos com isso? Após intensa reflexão, vi que não compactuo com esta ideia. Desisto de forma ir­remediável.

Outros três mestres levantaram com Tomás. A Dra. Josefina atalhou.

— Desistência aceita. Você está certo.

A assistência de pesquisadores não entendeu nada. Depois de tanto tempo de trabalho e estudos, como ela poderia dar razão a Tomás?, pensavam al­guns. Mas ela prosseguiu.

— A máquina Oitenta e Oito está pronta. Sugeri este nome para batizá-la numa menção ao ano de 1888, no planeta Terra, no Brasil, visto que se comple­tam exatos mil anos daquela data. Não preciso dizer a uma plateia de doutores o que ela significou. Pois bem, Tomás, digo que você está correto porque nem eu e muito menos seus colegas queremos outra vez a dor. Isso é insanidade. Quando eu e eles entrarmos naquela máquina, o que vamos sentir é exatamente a mesma coisa que sentiu Francisco José do Nascimen­to, o Dragão do Mar, no momento exato em que pela primeira vez desistiu de transportar um escravo em sua jangada, em 1881. Que sorte de sinapses fez seu cérebro? Que emoções saíram de sua mente para o peito, e vice-versa, no momento em que liderou a greve de jangadeiros contra a escravidão? Há muito tempo não temos em nossa sociedade nada semelhante. Não sabemos mais sentir... e muito menos contagiar com esse fogo por liberdade! Precisamos ser irremedia­velmente contaminados pela coragem do engenheiro negro André Rebouças, por exemplo, ao dizer, em uma sociedade de senhores de terra, que o acesso do escravizado à terra era libertação; e ser profundamente contaminados pelo mesmo ímpeto que fez o advogado Luiz Gama se debruçar sobre leis e livrar 500 pessoas do cativeiro, ou ainda José do Patrocínio soltar suas contundentes palavras na Gazeta da Tarde. A máquina Oitenta e Oito vai nos fazer voar nas asas do tempo e nos colocar no pulsar do coração de Zumbi dos Palma­res. Ela nos porá na ponta da lança de Dandara. Sim, amigos! Nossas experiências de vivência já provaram que existiram de fato, pois restavam dúvidas. Agora precisamos de mais! Precisamos vibrar junto com eles verdadeiramente, e não com a frieza distante das pes­quisas. Vamos pisar também as pedras e os caminhos de alguns anônimos em séculos passados que foram contagiados por este "vírus" do desejo de mudanças e agiram de forma absolutamente decisiva. Queremos — ora bolas! — descobrir os segredos da empatia.

A Dra. Josefina bebeu um gole de água. Todos estavam um tanto surpresos com o viés do trabalho. Ela prosseguiu.

— Sei que você, Tomás, e muitos aqui estavam se preparando para sofrer e extrair da dor o que nos move em direção ao outro, mas nossa proposta não é esta. Vamos entrar na pele dos que foram empáticos o suficiente para sair da inércia. Não detalhei antes porque precisávamos dos que tivessem a coragem sufi­ciente para, se for necessário, sentir dor, pois, segundo tudo o que já sabemos, este é o primeiro requisito da empatia: a bravura em vestir a angústia do outro.

Finalmente, depois de décadas de preparação estavam prontos. Sob o olhar desconcertado de To­más e seu grupo de desistentes, os que optaram por prosseguir sentaram-se ao redor da máquina, um po­liedro com cronômetros e uma tela com imagens dos personagens que seriam estudados. Cada um ajustou o cronômetro para um momento da história e para um personagem. Deram-se as mãos. Este toque de mãos era necessário, pois todos os pesquisadores partilha­vam, cada um ao seu modo, o mesmo sentimento de amor pelo ser humano.

Antes da partida, porém, o Dr. Natanael, o espe­cialista em religiões, após observar tudo calado disse ao grupo dissidente:

— Tomás, nunca se esqueça: Exu matou um pás­saro ontem com a pedra que atirou hoje.

E impulsionados pelo coração, que era a máqui­na Oitenta e Oito, estavam prontos para navegar na corrente sanguínea do tempo.

                                                                                                                                                                                     (In: Cadernos Negros 40, p.179-181)

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