Relato de uma guerra que (não) acabou

(Fragmento)

Simone: Dona Rosane, a senhora sabe que a minha pesquisa é sobre a violência. Tô tentando entender como é que as rádios comunitárias...

Ro: Fala tudo num folego só. A senhora não vai entender nada. Vocês não vão entender nada nunca. Porque não querem. Porque vocês tem dinheiro, casa, carro, educação, médico quando precisa, comida e conforto. Vocês agora ficam com esse negócio de ajudar. De solidariedade. Pensa que a gente é besta? Acham que vão salvar a gente dando bolsa de cinquenta reais e ensinando reciclagem? Dando quilo de alimento? Vocês querem é se salvar. Porque têm medo. Vocês acham que todo mundo que mora em favela é bandido. Mas não é não. Tem bandido também. Mas quem faz os bandidos daqui é a necessidade. Quem faz os bandidos daqui são vocês mesmos, que não respeita a gente. A gente tem dignidade. É por isso que não quero ter filho nessa porra! Construí meu barraco sozinha e moro lá sozinha, pra ninguém encher meu saco. Vivo como posso e não peço nada a ninguém. Me defendo. Tenho minha arma e meto a bala no primeiro que vier me sacanear. E isso todo mundo quer. Todo mundo. Não posso atirar em todo mundo. Principalmente nos bacanas de fora que só quer enrabar a gente. Aponta para Tito nos braços de Esmeralda. Por isso não vou ter filho. Nessa porra. Porque ele não vai consertar o mundo e nem eu. Eu não vou botar mais um neste mundo, pra levar a vida de merda que eu levo. Tenho só a arma como salvação. E uma arma só não dá pra acabar com essa cambada toda de filho da puta.

(Meirelles, 2002, p. 37).