Protesto        

Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar

Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar

Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis

Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis, mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da Pátria

 Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia

Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é

E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vítima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do País
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou

Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
Sou eu meu irmão aquele
Que viveu na prisão
Que trabalhou na prisão
Que sofreu na prisão
Para que fosse construído
O alicerce da nação 
O alicerce da nação
Tem as pedras dos meus braços
Tem a cal das minhas lágrimas
Por isso a nação é triste
É muito grande mas triste
E entre tanta gente triste
Irmão sou eu o mais triste

A minha história é contada
Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava

Para uma prisão mais ampla
Foi um cavalo de Troia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria
 
Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade

Irmão sou eu quem grita

Eu tenho fortes razões
Irmão sou eu quem grita
Tenho mais necessidade
De gritar que de respirar

Mas irmão fica sabendo
Piedade não é o que eu quero
Piedade não me interessa
Os fracos pedem piedade
Eu quero coisa melhor
Eu não quero mais viver
No porão da sociedade
Não quero ser marginal
Quero entrar em toda parte
Quero ser bem recebido
Basta de humilhações
Minh'alma já está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Quero a vida que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me fazer calar.
                       (In: Quilombo, p.33-38)


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A Cor da Pele: apresentação

Fábio Lucas*

A Cor da Pele de Adão Ventura explora um campo novo da literatura brasileira, ao poetizar o nosso complexo racial a partir da herança africana. O poeta assume a tragédia do negro “sem perfumar sua flor sem poetizar seu poema" (João Cabral de M. Neto): contempla o ser-no-mundo de sua sensibilidade negra sob o impacto de uma sociedade mestiça, habituada à ideologia colonialista europeia, presumidamente branca e intrinsecamente agressora. O poeta, assim, vê o mundo do lugar onde a cultura é expressão monopolítica do poder colonial branco.

É claro que a consciência da cor, embora dê origem a uma consciência social e a protesto, não faz o poeta. O poeta, em Adão Ventura, já vem feito ao chegar à temática negra. Só que, agora, alcança uma realização mais depurada, mais dirigida, mais carregada de História, pois sai do mundo neutro da magia.w

O poeta assume a biografia soterrada por montanhas de preconceitos. Daí, talvez a força com que brota e se manifesta. Adão Ventura faz o lirismo da revolta, um Cruz e Sousa às avessas. E paulatinamente ingressa na órbita da poesia social, exprimindo os obstáculos de uma raça, de uma cor e de uma situação humana insuportável. Versos curtos, diretos, nada descritivos do mundo exterior nem de indecisões interiores:

para um negro
a cor da pele
é uma faca
       que atinge
muito mais em cheio
o coração.

O poeta é quase escolástico em sua ânsia de definir o estado geral dos negros:

faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

A Cor da Pele tem a agudeza e o corte de um bisturi. E desloca a poesia de Adão Ventura para novo horizonte.

* Fábio Lucas é escritor, crítico literário e professor aposentado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Este texto foi retirado da 5a edição de A cor da Pele, de Adão Ventura, publicada em 1988, com edição do autor.

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Cor de fogo

Aidil Araújo Lima

A alegria da mulher foi sumindo dentro do corpo a olhos vistos, até desaparecer inteira. Uma tristeza estranha se esparramou como água em sua alma. Alguns diziam ser castigo por descumprir promessa. O marido desconversava essa invenção de preceitos. Procurou motivo nas ideias, e teve uma certeza: a alegria de viver da mulher foi arrancada no parto em hospital da cidade. Deitaram sua florzinha em cama estranha, a menina amuada na barriga, tão sem nascer e já com medo do mundo. O médico mexeu com a mão por dentro de sua intimidade e puxou Maria Aparecida. Ela ficou assim acabrunhada e nunca mais voltou para antes, foi-se entrando em si mesma, até sumir lá dentro. Os outros nasceram em casa, na cama cheia de lembranças; agarrava-se às recordações, fazia força e a gente via a cabeça, fazia outra força e ele vinha completo. Ela pegava o filho no peito e sorria, já esquecida da dor. Passados os dias de respeito, ela se afogueava. Cedo embalava as crianças com voz de ninar, depois vinha com o corpo ardente, fazia um cafuné acabar meu para cansaço e despertar o desejo. Logo, logo, eu já estava tinindo no ponto. Ela sempre queria mais. Assim não desse jeito tu vais me matar. E agora parece sempre queria mais. Tinha dias que eu dizia: mulher. aguento, que virou freira, não posso nem encostar um dedo, que faz cara de ofensa. Imagina se encosto outras coisas...A casa parece uma igreja, só falta o altar. Para distrair a raiva, falava com o vento. O vento, já cansado de tanto lamento, soprou-lhe no ouvido uns conselhos. Que comprasse um vestido vermelho, cor de fogo que acende a vida apagada. Saiu desalentado pela rua, viu um vestido vermelho na vitrine, se mostrando, provocando o juízo, comprou com seu último recurso. Deitou nos braços cansados da mulher o presente. Com gestos amolecidos, ela abriu a caixa. Seus olhos, quando viram o vestido, brilharam que nem relâmpago, seu corpo tremeu como já havia quase esquecido. Ele sorriu em gozo pensado. Rapidamente, colocou o presente no corpo e dançou. Num rodopio, chamou o vento que se espalhou por toda parte, chamando muita gente. Chegaram por todos os lados, trazendo ofertas de comidas e bebida quente. Vieram tocadores com os atabaques. O céu mandou seus raios e relâmpagos para a celebração. Nesse dia, sua voz voltou a cantar para embalar as crianças. Desentristeceu-se. Era madrugada, um grito rasga o silêncio.

(In: Olhos de azeviche: contos e crônicas, Rio de Janeiro: Malê, 2020, p.11-12).

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Coisas ausentes

Aidil Araújo Lima

Sentada no galho da mangueira, corpo calado no tronco, Antônia procura na memória lembranças de alegria. Aquilo sempre lhe socorria quando a tristeza vinha. De tanto usar esse alento, ele foi se gastando, ou se abrigando, como palavra escrita alcance. ao vento, largada no tempo, sem ter pensamento subiu mais uns galhos até sentir a força do vento no rosto; se que esperançou na volta das lembranças de enxotar desalento. Sentiu um aperto na emoção. Como se espremesse o resto da lembrança, a clareza anuncia a vinda do Natal. Do alto vê pessoas correndo, árvore plástica na mão, cara de espanto. Desistiu de entender a expressão doe outros, evoca os casamentos já idos, nenhuma palavra, nenhum, nada ficou. Tanto tempo, pensou, a vida levou tudo. Os gestos, filhos estão dentro do peito, não se esquece, eles é que não tinham mais tempo para visita, telefonema; muito ocupados. Uma folha cai no colo, se vê mais nova, filhos pequenos, acordando cedo para preparar o lanche da escola, fresco, ensinando o dever de casa, correndo no parque, segurando a bicicleta, gargalhando com os primeiros passos, a festa das mães na escola quando eles declamaram um verso que fizeram; a lágrima escapulida, as mãos limpando rápido para não borrar a emoção. Quando deu acordo de si, estava em casa, no quarto, revirando roupas num desejo insano de se ver bonita como no dia das mães, da emoção sentida ao ouvir os versos. Acordou cedo, nem tomou café, saiu e se precipitou em meio aos passos desesperados. Comprou árvore de Natal plástica, peru, passas; já estava voltando quando lembrou os presentes; largou as compras com conhecido, comprou presente para filhos, netos, nora. Riu, por isso viu de lá de cima da mangueira, aquelas expressões estranhas, cara de quem faz contas, imaginando se o dinheiro vai dar. Preparou a ceia, correu para se arrumar. O batom, tanto tempo sem uso, ainda fez efeito. E se entendi errado a mensagem da folha? pensou meio aflita. Esperou, esperou, bateram a porta; o coração acelerou; era Jorge, um vizinho amigo de infância. Foi dar um recado dos filhos. Não poderiam vir, estavam em viagem de férias, mandaram um abraço para ela. Antônia ainda tinha esperança de que os seus chegassem; convidou o vizinho para entrar. Ele disse que passaria o Natal sozinho e não tinha preparado ceia. Ela se deu conta, sem nenhum alarde, de que os seus também não viriam. Conversaram e riram do destino. Saíram para admirar a noite de lua cheia. Dançou sob a mangueira, uma folha cai em suas mãos. Riem como tempos atrás.

 (In: Olhos de azeviche: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Malê, 2020, p.13-15).

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Bai Bai, Pelô

(Fragmentos)

Dona Edna - Ah, meu Deus, Negócio Torto voltou, Pró?

Professora - Voltou e a senhora precisa ver que condições está. Oh, minha querida, você não tem aí um quartinho pra ceder para esse rapaz se abrigar, meu amor?

Dona Edna - Oh, meu amor! Né nada não, viu, Pró! Mas quando começou essa reforma, aqui no Pelourinho, as portas do IPAC pareciam as portas do céu, que todo mundo queria reservar espaço para morar. Agora então, parece delegacia, que todo mundo vem prestar queixa. Negócio torto tá aí. Como todo mundo sabe, Negócio Torto é desabrigado. E cabe a quem assistir os desabrigados? Cabe à Prefeitura, Pró. Ao IPAC, cabe preservar pelo patrimônio artístico e cultural de Salvador, da Bahia, do diabo a quatro. Chegue lá, procure a CODESAL, a URBIS, a 13ª e dê queixa, Pró. Não, Pró, desculpa. Você não vai sair daqui sem auxílio não, viu, Pró? (Escreve alguma coisa no papel) Pronto – aqui estão dois telefones, um da ONU, outro de Deus. Se não resolver, o outro é batata. Pró, me deixe quieta, porque eu vou tomar o meu sorvete e bater o meu ponto.

(As duas descem do praticável)

[...]

Chandinha - Agora você avalei a minha situação, Maria! Largada naquela Canabrava, minha filha, com sete filhos, morando de favor na casa da minha irmã que já tem oito. É, tô morando de frente pro lixão. Menina, é uma agonia, é um desespero, quando aquele povo começa a catar aquele lixo, aquelas crianças a brigar por um pedaço de carne pôde. Maria, até cachorro morto, minha filha, eu já vi mãe pegar pra dar o filho pra comer. É tanta agonia, tanta consumição no juízo, que se você não tiver fé em Deus, você sai doida! E ainda para completar me vem este sobrinho pra eu terminar de criar.

(Meirelles, 1995, p. 163-164).

[...]

Marcelo - Tá vendo aí? O que está acontecendo com Negócio Torto serve de exemplo. Serve de exemplo para que tomemos consciência da importância da nossa união num momento tão importante como este que estamos passando agora. Na nossa primeira reunião com o IPAC que discutimos a questão dessa reforma, tivemos uma presença apoteótica – mais de 360 moradores! Já na segunda reunião, completamente solapada pelo poder público, compareceram menos de 20. E enquanto isso, os demais desavisados e afoitos estavam sendo enganados pelo poder público, que está aí não para resolver nossas causas, nossos problemas, e sim se livrar da gente. Porque sabem que aqui, na maioria, somos negros e pobres, dona Edna...

(Meirelles, 1995, p. 172).

[...]

Neusão - (Vê Negócio Torto e fica desesperada) Brigadeiro! Ô, Brigadeiro! O que foi isso aqui, rapaz? Mataram o cara aqui, dentro do meu estabelecimento? Porra! É Negócio Torto! Vão me chamar de ladrona, de assassina! Olha a cara dela no jornal! Rapaz, as tripas do cara tá saindo toda! (Reclamando com Negócio Torto, aos berros) Seu porra! Seu sacana! Como é que você faz isso comigo, Negócio? Vem morrer logo aqui dentro do meu estabelecimento? E eu gostava até de você! (Para o público) Vim para essa cidade, ralei como a porra, passei até fome, resistí a essa reforma e vem esses cambadas de morto de fome e acaba com tudo! Eu vou voltar a ser violenta e dar peixerada em todo mundo aqui dentro! Não tem desculpas! (Para Negócio Torto) E não fique me olhando com a sua cara de sacana, seu porra! Eu já sei o que vou fazer... (Empurra o cadáver de Negócio Torto, rolando pelo chão, até a beira do palco) Vou jogar você pra fora! Fechar meu estabelecimento! Todo dia aparece um morto aqui no Pelourinho. Quando a polícia chegar não vai saber que ele morreu aqui dentro. Ai, meu coração! É hoje que eu morro!

(Meirelles, 1995, p. 215-216).

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