DADOS BIOGRÁFICOS

Historiadora, editora, poeta e tradutora. Nina Rizzi nasceu em Campinas, em 1983, e atualmente reside em Fortaleza. Formada em História pela UNESP, Rizzi desenvolveu diversas pesquisas junto ao MST – Movimento dos Sem Terra – nas áreas de História, Cultura e Educação. Atua também como editora da revista Ellenismos e alimenta o seu blog pessoal, que permite acesso às suas obras, capazes de tocar os leitores com toda a força, singeleza e nuances da sua escrita.  

Além de uma robusta produção em livro, Nina Rizzi tem escritos autorais e traduções publicadas em revistas, jornais e antologias. Seu primeiro livro, tambores pra n’zinga, foi publicado em 2012. Depois, em 2013, a poeta publica caderno-goiabada, uma prosa-ensaística que compôs uma das edições da Revista Ellenismos. No mesmo ano, Nina presenteia os seus leitores com “Susana Thénon: Habitante do Nada” – uma tradução para a revista que edita. No ano seguinte, vêm a público a duração do Deserto,  Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona!  e geografia dos ossos, publicado em Portugal. Em 2017, surgem: quando vieres ver um banzo cor de fogo, que permite ao leitor ir descortinando o sentimento de liberdade sobre o corpo, e sereia no copo d’água, que tem como centro a questão de gênero no Brasil.

Com inegável talento de poeta, Nina Rizzi passa longe de criações de traço deslumbrador. Em versos carregados de força e contundência, não perde a ternura jamais. Trata de pessoas e dramas comuns, habitantes de um cotidiano singelo, mas, ao mesmo tempo, marcado pela dureza que põe à prova a resistência do sujeito subalternizado. A escrita de Rizzi parte dessa realidade e do cotidiano feminino e negro para construir uma poesia densa de reflexão, e em constante diálogo com o pensamento crítico voltado para a condição do ser mulher no devir negro no mundo.

 

PRA NÃO SENTIR (AUTO)PIEDADE: ENTREVISTA COM NINA RIZZI*

1) Nina, conte-nos da sua formação como historiadora.

Fiz o curso bacharelado e licenciatura nos anos 2003-2007 na UNESP/Franca. Quem me deu muita força pra entrar no curso foi o pessoal do MST de Ribeirão Preto, com quem eu vinha travando algumas lutas, antes mesmo de estar na universidade praticamente já tinha tido um curso de introdução aos estudos históricos... Um ano após o meu ingresso, o curso teve alterações em sua grade curricular (qualquer coisa que tenha grade no nome não pode ser boa, hein?); mas durante todo meu curso não tive as disciplinas (como são terríveis os termos da educação) história da África, Ásia, Índia, e mesmo a da América pré-colombiana/ portuguesa foi coisa de duas ou três aulas... tive professores incríveis, outros nem tanto, um deles extremamente reacionário (de Economia). Lá na UNESP tinha vários grupos de extensão muito atuantes na comunidade, como o NATRA – Núcleo Agrário Terra e Raiz, do qual eu fazia parte, por ser junto ao MST, mas também grupos de Direito Alternativo, onde vez e outra eu aparecia.

Eu sempre fui bem pobre, não tinha ajuda da família para estar ali, nos três primeiros anos morei na moradia estudantil e nos três últimos anos tinha bolsa de iniciação científica, o que ajudou, mas mesmo assim era bem difícil. Minha pesquisa inicial era sobre pessoas em situação de rua, mas quando fiquei grávida tive que mudar, porque eu fazia a pesquisa junto à população que era volante e isso ficou inviável, então no último ano mudei os rumos e conclui o bacharelado com pesquisa sobre as representações das classes subalternas (indígenas, negros e brancos pobres), na segunda metade do século XIX e a licenciatura sobre o tratamento dado às crianças negras em escolas estaduais em Franca no ano de 2007.

2) Nina, como e quando sua história literária começou?

Nasci em Campinas/ SP, em 1983. Vivi lá até os 3 anos, quando minha mãe se mudou para Ribeirão Preto, onde morei toda infância e parte da adolescência. Moramos bastante tempo na zona rural, essa geografia influi diretamente em minhas primeiras leituras, porque não tendo colegas, brincava muito sozinha nos pastos, rios, com os animais da fazenda (onde meus pais eram caseiros), até que aprendi a ler. O único livro que tínhamos em casa era a bíblia. Devorei-a algumas vezes e nessa leitura percebi que existem histórias de vida que se parece com a minha, então não estou sozinha no mundo, mas compartilho sentimentos e modos de estar, mas também o contrário: existe uma diferença no mundo, se sentir, de estar, de fazer. Essa potência me moveu de uma maneira irreversível: entendi que podia superar estados de coisa e de “alma”. Nunca mais deixei de ler.

Muitas leituras me atravessaram profundamente nessa “primeira fase”, mas uma antologia de Manuel Bandeira (ainda lembro que era da José Olympio! e com a capa com letras marrons!), foi um marco. Com ele aprendi que poesia não é uma coisa que está distante de nós, guardada em livros inalcançáveis que ninguém entende, mas que pode ser feita com o prosaico, que matéria de poesia é tudo, é o mundo, são as pessoas, é a vida, sou eu! Uma leitura cabal para que eu mesma começasse a escrever, ou melhor, para que eu percebesse que o que escrevia podia sim ser literatura. Eu já escrevia coisas desde uns 6 anos, e como não tinha colegas, quando precisava conversar, pegava lá umas folhas de papel e escrevia, escrevia, escrevia, contando coisas, segredos, sonhos, medos... E com a descoberta da poesia entendi que essa escrita podia ultrapassar o diário (que ainda hoje escrevo, como diários alheios, exercício para experimentar outras vidas), e se tornar beleza (ou feiura): essas minhas amigas palavras tinham potência de vida, de morte, e de vida de novo. E nunca mais deixei de escrever poemas.

3) Poderia nos contar como funciona o seu processo criativo?

Não tenho rituais de escrita; cada poema surge de maneira muito independente: alguns eu quero escrever, fico muito tempo cm alguma ideia na cabeça; outras coisas me surgem como imagens, como num sonho, ou uma imagem enquanto pedalo; outras coisas são suscitadas pela vida real: a cidade, as quebradas, a vizinhança, o mundo, a política, as relações de poder e como me relaciono com tudo isso... às vezes leio um livro e me dá muita vontade de escrever... primeiro eu escrevo e deixo que as poemas se digam como se querem dizer, procuro não bloquear a “onda criativa”, só depois faço cortes/ revisão/ edição. Às vezes essa edição leva um dia apenas. Noutras vezes, quando vou formar um livro, se este poema vai compor o livro, por exemplo, talvez eu mexa novamente, mas pouco, geralmente a revisão é logo após a escrita mesmo.

Escrevo todos os dias, mesmo quando não tenho caneta ou lápis, deixo tudo de alguma maneira emaranhado na cabeça e escrevo depois, quando já é outra coisa... gosto mais de escrever pela manhã, mas nem sempre consigo. Sempre escrevo primeiro no papel, mesmo textos acadêmicos, depois passo para o computador. Escrevo principalmente poemas, mas também cartas, ensaios breves, contos. Escrevi uma narrativa poética que ainda não veio ao mundo...

4) Como surgiu o convite para participar dos projetos “Escritoras Suicidas” e “Putas resolutas”?

E como aconteceu a inserção dessas produções que, apesar de suas nomenclaturas, possuem uma estratégia completamente inclusiva? Comecei a escrever primeiro no Putas Resolutas, junto com Líria Porto e a Roberta Silva, duas poetas mineiras incríveis. A ideia do blogue era publicar poemas eróticos de nossa autoria, isso em 2003, quando os blogues estavam começando. Foi um projeto que nos deu visibilidade como poetas (embora alguns dissabores, já que muitos homens passaram a me escrever fazendo convites e até um TCC foi feito, sem qualquer rigor acadêmico, sobre como mulheres prostitutas relatavam literariamente sua profissão, mas nós nunca fomos prostitutas...). E foi justamente por causa do Putas Resolutas que fui convidada a integrar o Escritoras Suicidas, projeto capitaneado por Silvana Guimarães e Mariza Lourenço, que na época fez bastante alarde – como você sugere, o nome faz ironia com o fato de as mulheres escritoras serem taxadas como loucas, “mimizentas” e suas produções açucaradas ou de menor valor; primeiramente como escritora convidada, depois como escritora “fixa”. Lá eu publiquei principalmente contos.

5) Nina, você como mulher negra, como vê/sente a produção literária feminina no Brasil, hoje?

Acredito que as mulheres sempre escreveram, sempre cantaram, sempre pintaram... talvez você pense que pintar fosse mais difícil: pintavam com barro, pintavam com a borra do café, com o sangue da menstruação... mas as mulheres sempre fizeram arte, ainda que esta arte estivesse guardada dentro de um livro de receitas, dentro de suas próprias cabeças, ainda a gente ouça como um canto anônimo do século XV... Claro que hoje estamos ouvindo muito mais as vozes dessas mulheres, elas não dizem mais, as pessoas estão as ouvindo mais. Mais livros estão sendo publicados, mais editoras de mulheres e de mulheres negras estão surgindo, mais selos fonográficos, mais coletivas... E essa arte traz muito dessa força ancestral, nós ouvimos e lemos e vemos e sentimos o eco forte das que vieram antes de nós e foram silenciadas. Ainda assim, quem poderá dizer que isso não é linguagem, que não é arte? Ninguém poderá dizer, querendo a casa-grande ou não, é arte!

6) Para você, quais as histórias as mulheres negras e empoderadas devem contar? E celebrar?

As histórias que elas quiserem! As suas próprias histórias!

Costumo ir para saraus e slams e a maioria dos poemas e performances são de teor de luta e resistência, mas há espaço para o amor, para o erótico, para os cuidados e para as festas. Nós fomos por tantos séculos obrigadas a ser assim ou outrossim, devemos ser quem quisermos e como quisermos.

Algo muito comum também é mulheres pretas serem convidadas para eventos para falar apenas coisas relacionadas luta da mulher negra, como se não pudessem falar e fazer qualquer outra coisa, conheço mulheres negras que são físicas, químicas, pintoras, dentistas, etc. e poderiam falar sobre inúmeras coisas...

E quando apresentam um livro ou um disco esperam que seja uma porrada, mas a gente também quer e pode amar. E é assim que devemos contar e celebrar nossas histórias, como quisermos, por nós mesmas.

7) Adentrar em sua produção literária seria fazer um mergulho em que mundo(s)?

Na linguagem, na poesia.
No corpo, no desejo.
No feminino, no feminismo.
Na política, no anti-poder.
No selvagem, em algo que quer se destruir.

8) Como você acredita que deveriam ser discutidas as questões de gênero, raça e classe com jovens?

A partir das próprias vivências deles. Isso é tão freireano... Noutro dia fui à uma escola discutir essas questões e comecei perguntando quem já tinha desenhado um pênis na cadeira da escola (risos), ninguém se acusou. Então perguntei quem já tinha visto um desenho desses, todos levantaram a mão; aí perguntei, “e uma vagina, quantas vaginas vocês viram desenhadas”, quase ninguém levantou a mão, a partir dessa representação começamos a discutir a desigualdade de gênero e depois raça e classe. Com uma simples provocação, elas e eles contando suas experiências, que não são poucas, participando ativamente do debate. Tendemos a acreditar que adolescentes pouco têm a dizer ou que são pouco participativos, ou pior: temos medo que participem, mas aí está a verdadeira aula: ouvi-los, ser junto.

9) Nina, em seu livro “Quando vieres ver um banzo cor de fogo”, você diz: “... o amor é trégua; os bichos y a poesia ensinam: para viver amor é preciso se entregar. y amo. y ardo. até voltar a ser bicho.” O amor pode fazer com que deixemos de ser bicho? E que poesia é essa que nos faz pensar na entrega tão ardente e transformadora?

O amor faz com que voltemos a ser bicho. O bicho aqui não tem conotações negativas. O bicho é livre, o bicho ama, o bicho gane, o bicho uiva, o bicho deseja, o bicho é. o bicho é um coiote e apenas mata se realmente for necessário... salvar a matilha.

Eu quis escrever esse livro que fosse ao mesmo tempo um experimento de uma linguagem que ainda não tivesse alcançado antes, pelo menos na segunda e terceira parte. Na primeira parte o experimento se dá em sua publicação impressa: embora eu tivesse tido a experiência com o Putas Resolutas, em meus livros anteriores (tambores pra n’zinga e a duração do deserto), eu não tinha exatamente me lançado em poemas exatamente eróticos, e muito disso se deve ao fato dos convites sexuais que recebi na época do blogue. Então decidi que este livro seria um livro erótico em todas os seus modos, na temática e na linguagem – na linguagem, porque sua forma experimental, para mim, se abre para o amor.

Eu queria tanto uma poesia que pudesse ser um petardo na sala de jantar. Uma poema-bomba nas boas-consciências e nos homens-de-bem. Um livro-hecatombe que salvasse o mundo de si mesmo até ser selvagem. Selvagem é tudo que não pode ser medido, taxado, preso, decido por outro: o amor é assim, os bichos são assim, a poesia é assim. Ardente, transformadora, é verdade. Eu sinto, talvez eu seja um bicho.

10) O livro “Sereia no copo d’água” (2019) nos traz verdades que são mascaradas e jogadas pra debaixo do tapete, dos juízos de valor (e das mentalidades), que todos os dias matam mulheres, à custa de preconceitos velados. Para você, Nina, como a poesia pode transformar essa realidade?

Tem um gif no instagram que uma mulherzinha vai puxando outra e que por sua vez puxa outra e mais outra, num looping sem fim. Eu acredito que a poesia, uma poesia que traga essas questões é como esse gif. Dá forças para mulheres se perceberem dentro de opressões, dá forças para mulheres escreverem suas próprias poemas (que é o que eu quero que façam, inclusive faço laboratórios de escrita criativa com mulheres com esse intuito). Poesia não é só bibelôs bem arranjados na estante, poesia é essa coisa que mexe cá dentro na gente, nos move, nos põe doidos a pensar e a querer escrever também, a pensar no que temos feito.

Um texto, uma canção, um livro pode parecer muito pouco, mas foi também um texto, um livro, uma canção que se juntaram num repertório afetivo e mudaram a minha vida, fizeram de mim o que sou. Podia ser bem pior.

11) “... o mundo condecorava o grande poeta quando mais uma mulher morria.” Que sentimentos lhe vieram ao escrever o poema “Salmo negro”?

Arquíloco, Bernardo Bertolucci, Woody Allen, Ko Un, Pablo Neruda… Morrissey! Aquela história de separar autor de obra, sabe? Também temos os tupiniquins. Quanto a mim, separo não. Há tanta e tanta coisa pra se ler que nem dez vidas dariam conta, então vou tratar de ler e assistir e ouvir gente massa!

12) E por último, conte-nos se há novos livros e/ou projetos vindo por aí?

Tenho pronta a narrativa que disse antes, chama-se “caderno-goiabada”, é um livro de receitas de uma mulher que escreve escondido em forma de diário e conforme vai se libertando das opressões, sua escrita também vai se transformando. Acredito que no início de 2020 a publique.

Além deste, estou escrevendo um livro de ensaios e exercícios literários baseado no laboratório de escrita criativa com mulheres, mas não sei quando deve ser publicado.

E é claro, novos livros de poemas devem vir.

Muito obrigada, Nina, pela entrevista.

*Entrevista realizada através de portal eletrônico (e-mail), com a poeta, no dia 14 de outubro de 2019 pelos pesquisadores Davi Pereira Gomes, Eliane Cristina Testa e Patrícia Karla de Morais. Reproduzida da Revista Humanidades e Inovação, v.7, n.3, p. 404-407, 2020.


PUBLICAÇÕES

Obra Individual

tambores pra n'zinga. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012. (poesia).

a Duração do Deserto. São Paulo: Editora Patuá, 2014. (poesia).

Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona!. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2015.

geografia dos ossos. Lisboa: Editora Douda Correria, 2016. (poesia).

quando vieres ver um banzo cor de fogo. São Paulo: Editora Patuá, 2017. (poesia).

sereia no copo d'água. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2017. (poesia).

Não Ficção

caderno-goiabada. Fortaleza: Edições Ellenismos, 2013.

Traduções

Susana Thénon: Habitante do Nada. In: Revista Ellenismos, 2013.


TEXTOS

Nina Rizzi - ceciliana

Nina Rizzi - quando vieres ver um banzo cor de fogo

Nina Rizzi - das vezes que me tornei branca

Nina Rizzi - pastoral da ribeira

Nina Rizzi - sereia no copo d'água


CRÍTICA


FONTES DE CONSULTA

GOMES, Davi Pereira; TESTA, Eliane Cristina; MORAIS, Patrícia Karla de. Pra não sentir (auto)piedade, entrevista com Nina Rizzi, Revista Humanidades e Inovação, v. 7, n. 3, p. 404-407, 2020.


LINKS

Nina Rizzi, uma leitura

Nina Rizzi no blog Letras Pretas

Poemas de Nina Rizzi na Revista Pixé

Poemas de Nina Rizzi no Escritoras Suicidas

Poemas de Nina Rizzi no Germina Literatura

Poemas de Nina Rizzi no e-cêntrica

sereia no copo d'água

A voz necessária - Revista Rascunho

Um texto sobre Nina Rizzi, por Ana Miranda

Lançamento de Seria no copo d'água

Mermaid in the glass of water de Nina Rizzi traduzido por Rafaela Miranda 

Poemas de Nina Rizzi no Jornal do povo