Paixões Crioulas*

[...]

Votavam, nesse instante, a favor da passeata e o clima de entusiasmo espalhou-se de novo. Mas, então, Glória das Tranças já percebera a implacável fome, quando Bélico Iorubano sentou-se, visivelmente derrotado. A fome despejava-se também , como minúsculas gotinhas, do sorriso de Pacífico. Glória das Tranças observou ainda que entre os dois enraizava-se a vaidade, mas não deu muita importância a isso, e sorriu com os outros quando saíam dali seis horas depois de terem começado. Estavam todos otimistas e acharam estranhas ou divertidas as palavras de Ayodele: “Parece que durante toda a reunião havia mais alguém aí dentro, e não podíamos ver quem era.” Enquanto o restante não dava a mínima atenção, Glória das Tranças pensou um pouco e falou: “Laroiê!” “o que é isso?”, perguntou Ayodele “Não sei direito”, respondeu, “uma saudação, acho. Ouvi em algum lugar e não me esqueci mais.”

E Glória das Tranças não teve tempo para recordar onde ouvira aquelas esquisitas palavras, pois trabalhou sem cessar nos vinte e um dias que teceram a passeata na lentidão das horas. (...) Procuraram a gráfica para fazer os panfletos, organizaram um almoço e conseguiram montar um precário fundo financeiro para cobrir os gastos iniciais.

Os três enfrentaram os pequenos obstáculos com otimismo. Deram-se conta dessas dificuldades quando elas se mostraram com mais nitidez. Foi depois de percorrerem várias gráficas com o texto dos panfletos nas mãos. Todos liam e recusavam-se a fazê-los. Glória das Tranças solicitou a ajuda de Pacífico, mas, tanto ele quanto Bélico Iorubano pareciam despreocupados.

Ela e Velho Benevides resolveram fazer a última tentativa e, certa manhã, foram a uma gráfica imunda e pequena. Enquanto esperavam, Glória das Tranças confessou a Velho Benevides estar preocupada, pois parecia-lhe que, entre Pacífico e Bélico Iorubano enraizava-se uma forte vaidade, além do que, os dois pareciam divergir em alguns princípios básicos.

Velho Benevides respondeu-lhe que repetir os mesmos erros era um hábito humano, pois, quando entrara para a Associação da qual agora só guardava o nome, tudo se dera de idêntica maneira. Ele e o velho Leônidas vinham de antigas Associações de Homens de Cor. Disse, entretanto, que havia conseguido identificar diferenças com sua época. Parecia-lhe, por exemplo, um propósito exótico unificar as Associações Negras espalhadas pelo país, no entanto, fora uma das principais motivações da reunião. O próprio nome, Grupo de Movimento Negro, a que altos vôos levava?

Velho Benevides foi interrompido pelo gráfico que entrou na sala e dirigiu-se a Glória das Tranças:

“Olha, ‘morena’, nós podemos fazer isso, mas esse texto... nós achamos isso aqui meio racista...”

Glória das Tranças não o esperou terminar. Ouviu-o chamá-la de “morena” e lembrou-se de uma antiga chefe, que a tratava desse modo quando queria parecer agradável. Mas, era visível seu ódio. Glória das Tranças sabia, portanto, o quanto havia de hipocrisia naquele tratamento. Além disso, não pedira um julgamento sobre o conteúdo daquele panfleto. Assim, disse-lhe “obrigado” e, praticamente, arrancou o papel das mãos do homem. No dia seguinte, descobriram uma gráfica pertencente a um velhinho e rodaram aí os panfletos.

(Paixões crioulas, p. 16-17)

* Neste momento da narrativa, os personagens programam um protesto contra o racismo.