A insônia da moça

 

Quinze horas. Talvez desse para fazer mais duas viagens. Dezoito horas. O dia estaria ganho. Dormiria na garagem e pegaria no volante às seis da manhã, no fim do mês estaria com uma boa grana de horas extras.

Primeira, segunda terceira. Ponto. Primeira, segunda, sinal. Terceira, quarta, cigarro, ponto. Corcel, caminhão, fusca, guarda. Motor, suor, atenção.

Motorista de ônibus é tudo assassino. Porrada! Porrada! A multidão querendo mais sangue. Vinte anos de volante, uma mulher, uma amante, oito filhos e a merda do sindicato na mão dos pelegos. Vinte anos de primeira, segunda, ponto. Sem nenhum acidente.

Não dormia há uma semana. Talvez duas. Três. O corpo caído, meio torto no ar, olhos fundos, inexpressivos. Era um retrato medíocre. Precisava dormir de qualquer jeito, fechar os olhos e corpo na doce maldição do sono. Um sono eterno, de pedra, inviolável. Sem sonhos.

Já dividia a noite com fantasmas, com pequenos monstros cotidianos que, pela rotina do dia a dia, se tornaram parte de seu mundo sem que percebesse. Um alarido de ecos perturbava as coisas sem sentido. Uma mulher com insônia vê o mundo de uma forma lógica, mas depois se arrepende. Se culpa e finge que não sabia como mexer no destino. Elas pensam que os machões não sabem dessa artimanha.

Caminhou como se fosse a algum lugar ali dentro do quarto. Caminhou decidida e deu de cara com a parede. Voltou-se em busca de um caminho. Parou. Duvidou de tudo por um instante. Andou em si. Parou. Fez isso muitas vezes. Desistiu. Em vão. Qualquer um sabe que caminhar num quarto semi escuro não diminui a

Olhou pelo buraco da fechadura certa de espreitar um fato. Alguém. Qualquer coisa com vida, até mesmo uma daquelas ratazanas que sempre surpreendiam, brotando do assoalho cheio de rangidos e cupim. Nada. Silêncio esquisito lá fora. Voltou-se desiludida e olhou a cama. Acariciou o pulso esquerdo vendo a gilete sobre o travesseiro. Os cabelos marrons caiam-lhe desalinhados pelo rosto. Olhou a cama inútil. Inútil. Com aquele lençol branco e encardido. Desconfiada de si repetiu os mesmos movimentos tentando dominar o espaço. Caminhar, ir voltar, parar...A parede com restos da cara de Roberto Carlos, a jarra da mesa, flores de plástico salpicadas de cocô de mosca, a Bíblia, o urinol ágata com as beiras lascadas, a bolsa de nailon na cadeira, o litro de álcool. Passou por dentro das mesmas coisas sem nenhuma migalha de imaginação para qualquer outro ato. Que ato idiota! “Chego a ficar furioso, mas para uma mulher desesperada caminhar é um bom destino.”

Siririca violenta, como se tecesse apressadamente um ato de vingança com aquele gesto escroto e desmedido. Depois sentiu nojo de tudo. Um nojo imprestável, murrinhento que se diluiu com a imagem do homem. Um homem não tem mistério e qualquer um vale o gozo, são todos diferentes. ...Miserável, sabia disto e chorou baixinho. Parecia um bichinho abandonado. Levantou-se arrogante, impôs-se diante da própria tragédia. Uma semana de insônia, talvez um mês. Não resistiu e jogou-se sobre o colchão de molas barulhentas. Chorou mais .

Pequenos duendes bailaram diante dos seus olhos, dentro das lágrimas. Milhares deles pendurados pelas coisas do quarto. Fez um sinal obsceno para tudo, com descaso espalho uma gargalhada feia que pulverizou os macaquinhos. aliviou-se, mas lá no fundo do peito, o medo permaneceu estático.

Caminhar. Deu movimento ao verbo. Parecia uma condenada com tanta certeza. Cabeça baixa, olhos no chão, caminhando. Olhos no nada, caminhando. Olhos para dentro, caminhando. Olhos sem razão, caminhando. Olhos mortos caminhando. Não perdeu o movimento até que o sol clareou.

Uma, duas, três, talvez quatro semanas sem dormir. Um absurdo. Abriu o móvel tirou a blusa, a calcinha verde – fundo encardido - , a saia quadriculada colocou tudo sobre a cama. Deu um pontapé. Odiava a cama pela sua inutilidade. Talvez um ano, oito meses, nove dias. Vinte e nove anos e nem príncipe encantado, nem casa arrumada, pinguim sobre a geladeira, e um casal de crianças. Perdera a razão, os sonhos, a esperança. Vinte e cinco anos. Enxoval, convites. O príncipe encantado, sargento do Corpo de Bombeiros, era casado e tinha quatro filhos. A mãe morreu de desgosto por sua culpa. O enterro foi simples.

Arreganhou as pernas na pia do quarto e lavou a xoxota. O rosto. Os sovacos. Maquiou-se . Sobre as olheiras usou algo azul. Cresceu os cílios. Passou batom vermelho. Vivo e moderno. Vestiu-se. Admirou-se no espelho e sentiu-se jovem e resignada. Sorriu das coisas, de tudo, mas não havia fantasmas nem doentes. Só as coisas de pegar, usar, quebrar, coisas de coisas sem outros sentidos. Mesmo assim ela insistiu em sorrir como se valesse a pena. Não valia. Tudo que lhe valia, o pecado e a insônia tinham matado. Ela sabia disto e não impediu as lágrimas. Borrão. Maquilagem. Sentiu tristeza de mulher solitária. Inconfessável. Resignou-se e dominou o dilúvio que ameaçava vazar pelos olhos.

O tempo estava passando o caos lá fora em pouco teria sentido. O guarda da esquina apitando e os pombos na calçada. Tanto tempo sem dor não lhe causava cansaço. Havia vida lá fora, árvores, carros, pessoas, bares e esperança. Pegou a bolsa e saiu decidida a viver. Havia vida, compreensão e esperança. Tudo lá fora esperando e ela se daria de corpo e alma.

Cruzou com uma ratazana no corredor. Um susto. Desceu as escadas. A luz do dia doeu nos olhos, mas a vida pulsava. Obrigado, meu deus! e caminhou misturando-se às outras pessoas. Era a multidão. Parou embaixo de uma placa de siga em frente. Estava calma e o ônibus vinha na curva, veloz, de quarta. Ela estava calma e pertencia à multidão sem rosto. Ninguém viu. Só depois, dez segundos depois, quando alguém disse: ela parece que está dormindo. O motorista pálido, afirmava que não teve culpa.

“Ela parece que está dormindo”. Quanta ironia!