A história de Inferninho

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Nuvens jogavam pingos sobre as casas, no bosque e no campo que se esticava até o horizonte. Busca-Pé sentia o sibilar do vento nas folhas dos eucaliptos. À direita, os prédios da Barra da Tijuca, mesmo de longe, mostravam-se gigantescos. Os picos das montanhas eram aniquilados pelas nuvens baixas. Daquela distância, os blocos de apartamentos onde morava, à esquerda, eram mudos, porém parecia escutar os rádios sintonizados em programas destinados às donas de casa, a cachorrada latindo, a correria das crianças pelas escadas. Repousou o olhar no leito do rio, que se abria em circunferências por toda sua extensão às gotas de chuva fina, e suas íris, num zoom de castanhos lhe trouxeram flash-backs: o rio limpo; o goiabal que, decepado, cedera lugar aos novos blocos de apartamentos; algumas praças, agora tomadas por casas; os pés de jamelão, assassinados, assim como a figueira mal-assombrada e as mamoeiras; o casarão abandonado que tinha piscina e os campos do Paúra e Baluarte – onde jogara bola defendendo o dente-de-leite do Oberom – deram lugar às fábricas. Lembrou-se, ainda, daquela vez que fora apanhar bambu para a festa junina do seu prédio e tivera que sair voado porque o caseiro do sítio soltara os cachorros em cima da meninada. Trouxe de volta ao coração a pera-uva-maçã, o pique-esconde, o pega-varetas, o autorama que nunca tivera e as horas em que ficava nos galhos da amendoeira vendo a boiada passar. Remontou aquele dia em que seu irmão ralou o corpo todo, quando caiu da bicicleta no Barro Vermelho, e como eram belos os domingos em que ia à missa e ficava até mais tarde na igreja participando das atividades do grupo jovem, depois o cinema, o parque de diversões... (...) Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para Miami tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram, uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás. Recordou-se de dona Marília, de dona Sônia e das outras professoras do curso primário dizendo que, se estudasse direito, seria valorizado no futuro, porém estava ali desiludido com a possibilidade de conseguir emprego para poder levar seus estudos adiante, comprar sua própria roupa, ter uma grana para sair com a namorada e pagar um curso de fotografia. Bem que as coisas poderiam ser como as professoras afirmavam, pois se tudo corresse bem, se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina e uma porrada de lentes. Sairia fotografando tudo o que lhe parecesse interessante. Um dia ganharia um prêmio. A voz de sua mãe chicoteou sua mente:

– Esse negócio de fotografia é pra quem já tem dinheiro! Você tem é que entrar pra Aeronáutica... Marinha, até mesmo pro Exército, pra ter um futuro garantido. Militar é que tá com dinheiro! Não sei o que você tem na cabeça, não!

[...]

[...] Estava era muito puto com a vida. Prendeu um choro, levantou-se, esticou-se para aliviar a dor de ter estado muito tempo na mesma posição, já ia perguntar ao amigo se estava a fim de descolar mais um trouxa, quando notou que a água do rio encarnara. A vermelhidão precedera um corpo humano morto. O cinza daquele dia intensificou-se de maneira apreensiva. Vermelhidão esparramando-se na correnteza, mais um cadáver. As nuvens apagaram as montanhas por completo. Vermelhidão, outro presunto brotou na curva do rio com um guaiamum devorando as suas tripas. A chuva fina virou tempestade. Vermelhidão, novamente seguida de defunto.

[...]

Busca-Pé chegou em casa com medo do vento, da rua, da chuva, do seu skate, do mais simples objeto, tudo lhe parecia perigoso. Ajoelhou-se diante da cama, jogou a cabeça no colchão, as mãos sobre ela, e numa súplica infinita pediu a Exu que fosse lá avisar a Oxalá que um dos seus filhos tinha a sensação de estar desesperado para sempre.

(Cidade de Deus, 2007, p. 14-17)

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Segunda-feira à noite, Inferninho foi tomar um passe no terreiro do Osvaldo:

– Tá com medo de morrer, esse menino?! Tá com medo de virar Exu?!? – gargalhava. – Quanto tempo faz que você não vem falar comigo? – gargalhava. – Eu não cobro a mais do que trato. Dou proteção aos moços e os moços não liga pra mim. Quando a coisa melhora os moços esquecem do que eu peço. Mas fui eu quem foi lá no teu sonho – gargalhava. – O butina preta tá com vontade de fazer tua passagem, mas não ligue não, que ele tá amarrado no meu pé! – disse a pombagira.

Em seguida, pediu ao cambone que escrevesse o nome de Cabeça de Nós Todo num pedaço de papel, atravessou o papel com um punhal e colocou-o dentro de um copo com cachaça. Deu baforada de charuto no copo, gargalhou e continuou: –Tu vai ter que enterrar isso aqui em Calunga Grande na segunda-feira e deixa o resto comigo. Depois de vinte tempo o butina preta vai se foder na sete encruzilhada que passar. Depois você volta aqui pra falar comigo. Agora você bebe um pouco disso aqui e pede em pensamento o que você quer.

Inferninho pediu proteção das balas, sorte com dinheiro, muita mulher em sua vida e saúde para ele e a esposa, que, no caminho para o terreiro, anunciara gravidez.

(Cidade de Deus, 2007, p. 164-165)

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– Sou playboy! – dizia Pardalzinho a todos que comentavam sua nova indumentária. Tatuou no braço um enorme dragão soltando labaredas amarelas e vermelhas pelo focinho, o cabelo ligeiramente crespo foi encaracolado por Mosca.

Sentia-se agora definitivamente rico, pois vestia-se como eles. O cocota pediu a Mosca que comprasse uma bicicleta Calói 10 para que pudesse ir à praia todas as manhãs. Rico também anda de bicicleta. Iria frequentar a praia do Pepino, assim que aprendesse o palavreado deles. Na moral, na moral, na vida tudo é uma questão de linguagem. Alguns bandidos tentaram fazer chacota do seu novo visual.

O traficante meteu a mão no revólver dizendo que não tinha cara de palhaço. Até mesmo Miúdo prendeu o riso quando o viu dentro daquela roupa de garotão da Zona Sul.

(Cidade de Deus, 2007, p. 285)

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[...] sua mãe conseguia uma casa em Cidade de Deus logo nos primeiros dias de sua fundação, depois de ir ao Mário Filho, na época das grandes enchentes, passando-se por flagelada.

Iria de qualquer jeito para a Cidade de Deus. Ter água encanada para poder fazer comida e tomar banho e ter luz em casa facilitaria sua vida, mesmo tendo que acordar de madrugada para trabalhar: deixaria comida pronta para as crianças e que Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus tomasse conta delas. Sim, iria abandonar a Macedo Sobrinho, lugar que desgraçara sua vida, lugar de bandidos desalmados que dão armas paras as crianças saírem por aí fazendo besteiras. Confiava em Deus, que Inho iria aquietar o facho longe dali, daquele inferno.

Mudou-se para uma casa Lá em Cima, levou consigo a esperança de bonança que nunca sairia de seu sonho, a disposição de levar a vida sozinha com os três filhos, a determinação de fazê-los pessoas de bem, nem que parasse de dormir e comer e somente trabalhasse.

(Cidade de Deus, 2007, p.190)

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