Quilombismo: um conceito científico histórico-social

Abdias Nascimento

 

Para os africanos escravizados assim como para os seus descendentes "libertos", tanto o Estado colonial português quanto o Brasil – colônia, império e república – têm uma única e idêntica significação: um estado de terror organizado contra eles. Um Estado por assim dizer natural em sua iniquidade fundamental, um Estado naturalmente ilegítimo. Porque tem sido a cristalização político-social dos interesses exclusivos de um segmento elitista, cuja aspiração é atingir o status ário-europeu em estética racial, em padrão de cultura e civilização. Este segmento tem sido o maior beneficiário da espoliação que em todos os sentidos tem vitimado o povo afro-brasileiro ao longo da nossa história. Conscientes da extensão e profundidade dos problemas que enfrenta, o negro sabe que sua oposição ao que aí está não se esgota na obtenção de pequenas reivindicações de caráter empregatício ou de direitos civis, no âmbito da dominante sociedade capitalista-burguesa e sua decorrente classe média organizada. O negro já compreendeu que terá de derrotar todas as componentes do sistema ou estrutura vigente, inclusive a sua intelligentsia responsável pela cobertura ideológica da opressão através da teorização "científica" seja de sua inferioridade biossocial, da miscigenação sutilmente compulsória ou da criação do mito "democracia racial". Essa "intelligentsia", aliada a mentores europeus e norte-americanos, fabricou uma "ciência” histórica ou humana que ajudou a desumanização dos africanos e seus descendentes para servir os interesses dos opressores eurocentristas. Uma ciência histórica que não serve à história do povo de que trata está negando-se a si mesma. Trata-se de uma presunção cientificista e não de uma ciência histórica verdadeira.

 Como poderiam as ciências humanas, históricas – etnologia, economia, história, antropologia, sociologia, psicologia, e outras – nascidas, cultivadas e definidas para povos e contextos socioeconômicos diferentes, prestar útil e eficaz colaboração ao conhecimento do negro, sua realidade existencial, seus problemas e aspirações e projetos? Seria a ciência social elaborada na Europa ou nos Estados Unidos tão universal em sua aplicação? Os povos negros conhecem na própria carne a falaciosidade do universalismo e da isenção dessa "ciência". Aliás, a ideia de uma ciência histórica pura e universal está ultrapassada. O conhecimento científico que os negros necessitam é aquele que os ajude a formular teoricamente – de forma sistemática e consistente – sua experiência de quase 500 anos de opressão. Haverá erros ou equívocos inevitáveis em nossa busca de racionalidade do nosso sistema de valores, em nosso esforço de autodefinição de nós mesmos e de nosso caminho futuro. Não importa. Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo "científico", os seus dogmas impostos em nossa carne como marcas ígneas da verdade definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento "branco” da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista.

O negro tragou até à última gota os venenos da submissão imposta pelo escravismo, perpetuada pela estrutura do racismo psicossócio-cultural que mantém atuando até os dias de hoje. Os negros têm como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos, na liberdade; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e os deserdados deste país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviriam unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes de sociedade capitalista e de classes. Esta não é a solução que devemos aceitar como se fora mandamento inelutável. Confiamos na idoneidade mental do negro, e acreditamos na reinvenção de nós mesmos e de nossa história. Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo. Enfim reconstituir no presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do passado. Um futuro melhor para o negro tanto exige uma realidade em termos de pão, moradia, saúde, trabalho, como requer um clima moral e espiritual de respeito às componentes mais sensíveis da personalidade negra expressas em sua religião, cultura, história, costumes e outras formas.

A segurança de um futuro melhor para a população negra não se inclui nos dispositivos da chamada "lei de segurança nacional". Esta é a segurança das elites dominantes, dos seus lucros e compromissos com o capital interno ou estrangeiro, privado ou estatal. A segurança da "ordem" econômica, social e política em vigor é aquela associada e inseparável das teorias “científicas" e dos parâmetros culturais e ideológicos engendrados pelos opressores e exploradores tradicionais da população afro-brasileira.

Tampouco nos interessa o uso ou a adoção de slogans ou palavras de ordem de um esquerdismo ou democratismo vindos de fora. A revolução negra produz seus historiadores, sociólogos, antropólogos, pensadores, filósofos e cientistas políticos. Tal imperativo se aplica também ao movimento afro-brasileiro.

 Um instrumento conceitual operativo se coloca, pois, na pauta das necessidades imediatas da gente negra brasileira. O qual não deve e não pode ser fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco um elenco de princípios importados, elaborados a partir de contextos e de realidades diferentes. A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e de praxis da coletividade negra. Incorporar nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta.

Precisamos e devemos codificar nossa experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos interesses da população negra e de sua respectiva visão de futuro. Esta se apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a ciência histórico-humanista do quilombismo.

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico. Os precedentes históricos conhecidos confirmam esta colocação. Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação ao meio brasileiro do comunitarismo e/ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho, chamada capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos, articulando os diversos níveis da vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano. Nem propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza. Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho e antes uma forma de libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social. Liberto da exploração e do jugo embrutecedor da produção tecno-capitalista, a desgraça do trabalhador deixará de ser o sustentáculo de uma sociedade burguesa parasitária que se regozija no ócio de seus jogos e futilidades.

Os quilombolas dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade. Um método de análise, compreensão e definição de uma experiência concreta, o quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que este derramou enquanto pés e mãos edificadores da economia deste país. Um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva, tanto da população negra como das inteligências e capacidades escolarizadas, para a enorme batalha no fronte da criação teórico-científica. Uma teoria científica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente contribua à salvação da comunidade negra, a qual vem sendo inexoravelmente exterminada. Seja pela matança direta da fome, seja pela miscigenação compulsória, pela assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro ocidental. Não permitamos que a derrocada desse mundo racista, individualista e inimigo da felicidade humana afete a existência futura daqueles que efetiva e plenamente nunca a ele pertenceram: nós, negro-africanos e afro-brasileiros.

Condenada a sobreviver rodeada ou permeada de hostilidade, a sociedade afro-brasileira tem persistido nesses quase 500 anos sob o signo de permanente tensão. Tensão esta que consubstancia a essência e o processo do quilombismo.

Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo. Deve-se assim compreender a subordinação do quilombismo ao conceito que define o ser humano como o seu objeto e sujeito científico, dentro de uma concepção de mundo e de existência na qual a ciência constitui uma entre outras vias do conhecimento.

(In: O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. 2. ed. Brasília / Rio de Janeiro: Fundação Palmares / OR Editor Produtor, 2002, p. 269-274).

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