A SAGA DA ESCRITORA NEGRA BRASILEIRA NA BUSCA DA LEGITIMIDADE DA LITERATURA NEGADA 1

Sueli de Jesus Monteiro *

RESUMO

O silenciamento do discurso da mulher negra acadêmica decorreu da crítica estigmatizante e da subvalorização da produção literária. As escritoras, perseverantes no objetivo de serem reconhecidas, reescrevem as histórias e tentam incessantemente introduzi-las na produção textual brasileira. Nesse cenário, há um conflito interno – onde a escritora negra tenta mesclar tradição, memória e história pessoal no discurso – e o enfrentamento de barreiras externas – oriundas de um editorial excludente e de uma crítica segregadora – dos quais emergem um exercício autoficcional de valor literário inestimável. A ânsia de ser ouvida e reconhecida é peculiar no universo da escritora negra acadêmica. E nesse jogo complexo de realidades, sentimentos, traumas e revoltas, os textos literários são construídos.

Assim, demonstra-se, nesta exposição, como algumas escritoras negras lidam com as dificuldades de exporem suas histórias, ao mesmo tempo em que buscam uma identidade para seus clamores, tornando-os “dignos” de serem ouvidos por uma sociedade e uma crítica discriminantes.

Palavras-chaves: escritora negra; discurso; crítica literária; identidade.

ABSTRACT

The silencing of academic discourse black woman was due to the stigmatizing criticism and undervaluation of literary production. The writers, persevering in order to be recognized, rewrite the stories and try to constantly introduce them in the Brazilian textual production. In this scenario there is an internal conflict – where the black writer tries to merge tradition, memory and personal history in discourse – and coping with external barriers – derived from an exclusive editorial and a segregated criticism – of which emerge a self-fictional exercise of literary value priceless. The urge to be heard and recognized is unique in the world of academic black writer. And in this complex set of realities, feelings, traumas and upheavals, literary texts are constructed. Thus, it is shown, in this exhibition, as some black women writers deal with the difficulties of exposing their stories, while seeking an identity for their claims, making them “worthy” to be heard by a society and a critical discriminant.

Keywords: Academic black writer; Speech; Literary criticism; Identity.

Os conflitos vivenciados no discurso literário da escritora negra se caracterizam pela tentativa de recuperar e reescrever uma história, na realidade, a própria história (ou por conta dela?), buscando continuamente uma identidade autenticada por toda a sociedade, conforme esclarece – em palavras os sentimentos e/ou ressentimentos anímicos – a escritora Conceição Evaristo: “...A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa grande e sim para acordá-los de seus sonos injustos...”

 

A busca pela legitimação é o motivador da saga na literatura das escritoras negras, justificada pelo processo de integração do negro no Brasil, em paralelo à aceitação do modelo dos brancos onde o negro “deve tornar-se para ser aceito ‘um homem de alma branca’”. Fenômeno este constatado em toda a América Latina e denominado de “branqueamento”, o qual era alcançado por diversos meios como explicita Andrews (1991, p. 177) citado por Hofbauer (2006, p.20).

[...] por meio do sucesso econômico, por meio do cultivo de amigos e conhecidos brancos, por meio da adoção consciente das normas e do comportamento da vida dos brancos de classe média. O meio mais eficaz do branqueamento – e um dos mais buscados – é casar-se com uma pessoa mais clara (de preferência, branca) e produzir filhos mais claros (de preferência, brancos).

O fato é que o discurso de Conceição Evaristo tem fundamentos, pois há no Brasil um emudecimento dos brancos sobre o não reconhecimento de suas responsabilidades em relação às desigualdades raciais. Bento e Carone (2002), após uma pesquisa de mais de quatorze anos sobre racismo, percebem a omissão, a distorção e, principalmente, a falta de reflexão do branco frente ao legado da escravidão, o qual traz em seu bojo danos muito mais profundos ao negro, tais como: exclusão onde são desvalorizados, indignos e passíveis de exploração.

Essa desconstrução e necessidade de reformulação do eu é demonstrado no desabafo de Miriam Alves (1985, p. 32) em seu livro Estrelas no dedo:

Compor, Decompor,

Recompor

Olho-me

espelhos

Imagens

que não me contém

Perdem-se

de meu corpo

as palavras

Decomponho-me

[...]

Recompondo-me

sentada

na

sala

de

espera

falando com

meus

fantasmas .

Os fantasmas encontrados por Miriam Alves são também formados pelos estereótipos da mulher negra, a qual assumiu proporções culturais tais que a escritora afro-brasileira Sônia Fátima Conceição incorporou em seu discurso:

Lá vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela.

Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela.

Bela sei que sou e vou bela.

[...] E lá vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser bela.

Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela, bela. (CONCEIÇÃO, 1983, p. 55).

No excerto acima, a autora refaz as curvas da mulher afro-brasileira, demarcada pela constituição orgânica dos afrodescendentes, desconstruindo as estereotipias, registrando que a literatura em questão objetiva a necessidade premente em se autoafirmar dentro de uma sociedade estigmatizadora, onde a mulher negra era estigmatizada como sinônimo de lascívia e luxúria.

Igualmente a escravidão propiciou a desconstrução da identidade negra, como é descrito por Andrade (2001) de forma clarificante:

A escravização dos povos africanos foi a tática mais deprimente de inferiorização de uma coletividade. Tudo fizeram para retirar-lhe a humanidade, salvo o momento que valiam moeda. No mercado de troca e venda, os anúncios de jornais exibiam tributos à beleza física, à disposição para o trabalho, aos hábitos sadios; alcançado o objetivo de lucro retomavam à desgraça da desumanização, objetos descartáveis e entraram para a história oficial vinculados à única condição de escravos, como uma condição natural, inata, nada mais do que escravo. Foi esta história que a minha geração conheceu. O que fui encontrar escrito para as novas gerações? [...] Concluindo, o texto repete o que a história oficial faz a muitos anos – a honra à Princesa Isabel na produção literária sobre a escravidão no período anterior a 1978, aqui registrada, é um discurso bem articulado que reforça a incapacidade da população negra escravizada de fazer a sua própria libertação, o discurso do livro didático vai para a literatura para jovens e crianças, para as ruas, praças, pontes, prédios, calendários, filmes, campos e cidades, condicionando uma eterna gratidão dos beneficiados, isto é, a população negra. É reforçada a lembrança das correntes, o chicote, a senzala, o sim senhor, o sim senhora, referências para manter a memória do passado escravo vivo. Escravo sem vida própria, escravo – sinônimo de negro. O branco, ora o branco, é o dono, o superior – isto está escrito nas entrelinhas nem tanto invisíveis da história oficial e permanece como uma prática do condicionamento da memória da descendência africana. (pp. 19- 22).

O fato é que a exclusão moral – sentida pelo negro – ultrapassa os limites imagináveis, graças à criação de processos psicossociais que estigmatizam e estereotipam com extrema desumanidade, gerando a desconstrução identitária do negro brasileiro.

O produto de tais distorções provocou uma cisão na dimensão do negro, conforme enfatiza Fanon (2008) como sendo provocada pelo período colonial: “o negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que essa cissiparidade é uma consequência direta da aventura colonial”. (p. 33).

Cisão esta evidenciada no poema de Esmeralda Ribeiro denominado “Trocar de Máscara”:

Talvez temendo entrar na arena dos leões

eu esconda a coragem nos retalhos

coloridos da vida.

A pálida lua traz o sabor das provações

transformando o olho em ostra

Cismo: a pele em roupa não tem mais razões,

para ser trocada e assim

me recolho e me cubro com a mortalha

De anulações. (SOUZA e LIMA, 2006, p. 23).

A ruptura com esse modelo somente será possível, segundo Fanon (2008, p. 181), mediante o reconhecimento do negro enquanto realidade humana, transcendendo questões naturais. Esse processo deve ser efetuado pelo negro e pelo branco, pois “A operação unilateral seria inútil, porque o que deve acontecer só pode se efetivar pela ação dos dois (...) Eles reconhecem a si próprios, como se reconhecem reciprocamente”. Como, então, alcançar esse nível de integração e reconhecimento do negro para com o branco e vice-versa? Giles Deleuze (1988) traz solução a esse impasse mediante o uso da repetição no discurso literário, ou seja, a utilização de uma conduta necessária e fundada apenas naquilo que não pode ser substituído, pois concerne a uma singularidade não trocável, não substituível. A identidade do negro, em específico da escritora acadêmica negra, é insubstituível e deve ser clamada até ser ouvida e legitimada.

Os reflexos, os ecos, os duplos, as almas, não são do domínio da semelhança ou da equivalência, e assim como não há substituição possível entre os verdadeiros gêmeos, também não há possibilidade de se trocar de alma. Se a troca é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os critérios da repetição. Há, pois uma diferença econômica entre as duas. (p. 13).

O discurso literário das mulheres negras é recheado de repetição, pois enfatizam e martelam sobre uma mesma base: a necessidade de compreensão dos mecanismos de exclusão legitimados pela sociedade. Fato este notório e esclarecido por Souza e Lima (2006) da seguinte forma:

Por exemplo, quando nos referimos à literatura brasileira, não precisamos usar a expressão “literatura branca”, porém, é fácil perceber que, entre os textos consagrados pelo “cânone literário”, o autor e autora negra aparecem muito pouco, e, quando aparecem, são quase sempre caracterizados pelos modos inferiorizantes como a sociedade os percebe. Assim, os escritores de pele negra, mestiços, ou aqueles que, deliberadamente, assumem as tradições africanas em suas obras, são sempre minoria na tradição literária do país. [...] Houve, então, um momento em que se tornou inevitável discutir sobre a literatura produzida por negros ou que trata dos conflitos vividos pelos negros. (p. 13).

A crítica quanto ao discurso da escritora acadêmica negra se limita, quando o faz, demonstrando um excesso na repetição de conteúdos. É necessário, contudo, apontar a questão da crítica como uma questão de gênero, ou seja, de um discurso que revela determinadas características que fazem com que o leitor reconheça-o a partir delas. Uma dessas características é o juízo de valor explícito do crítico e o tipo de abordagem que ele faz em relação à obra ou ao autor. Essa abordagem, carregada de juízo de valor, procura refletir os aspectos técnicos, literários ou teóricos da obra com o objetivo de impor uma cosmovisão que pretende dar conta do universo ficcional do autor. Fomentando uma poesia negra brasileira carregada de significado visando:

a) a procura e/ou afirmação da identidade negra; b) a ausência de um código de cor básico e obrigatório; c) o uso de temas da vida e da população negra resultante de vivências próprias ou de estudos e observações conscientes; d) a reprodução de ritmos negros; e) a introdução na poesia de termos e palavras do vocabulário afro-brasileiro; f) a transformação e a reabilitação semântica da linguagem. (DAMASCENO, 1988, p. 69).

E é nessa construção do juízo de valor que se encontram a necessidade de silenciar as vozes negras em busca de justiça social e o não reconhecimento da própria responsabilidade no processo de exclusão.

Segundo Florentina Souza (2004), escritora afro-brasileira, o processo de construção da identidade negra abrange mais que a análise do discurso:

A construção de uma descendência textual afro-brasileira passa pela compreensão de que as identidades são constituídas no discurso, mas forjadas nos embates entre grupos que se identificam com molduras ideológicas diferenciadas, buscando, no caso dos subalternos, reverter hierarquias, representações e significados. Em vez de uma formação fixa e imutável, as identidades devem ser entendidas como estratégias resultantes de desejos ou interesses de filiação a grupos específicos e, portanto, elas são sempre passíveis de reestruturação. (p. 279).

A essência da repetição, portanto, não se deixa explicar pela forma da identidade no conceito ou na representação. Na fronteira entre os conceitos da natureza e da liberdade, Deleuze (1988) exemplifica a repetição como um motivo de decoração: uma figura encontra-se reproduzida sob um conceito absolutamente idêntico. Porém, justifica ele, o artista não procede assim, pois não justapõe exemplares da figura, mas combina um elemento de um exemplar com outro elemento de um exemplar seguinte. No processo dinâmico da construção, o artista introduz um desequilíbrio, uma instabilidade, uma dessimetria, uma espécie de abertura. Esses elementos imbricam-se ao se diferenciarem, e é no conjunto que a figura adquire a estabilidade.

Razão pela qual, Michel Foucault, citado por Machado (2000), afirma que a obra literária não vem de uma espécie de brancura anterior à linguagem, mas justamente da repetição contínua da biblioteca. Essa figura da repetição contínua da biblioteca aparece como sendo o simulacro do livro, como sendo uma série de livros.

Assim, o que se recolhe na densidade aberta e fechada do livro, nas folhas em branco e ao mesmo tempo coberta de signos, nesse volume único, mas semelhante a todos os outros, – pois cada livro é único e todos os livros se assemelham – é algo como o próprio ser da literatura. A literatura – que não deve ser compreendida nem como a linguagem do homem nem como a palavra de Deus, nem como a linguagem da natureza, nem como a linguagem do coração ou do silêncio – é uma linguagem transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio livro. (p. 146).

É essa linguagem diferenciada pelo clamor negro que se caracteriza a repetição do discurso literário das escritoras negras, marcadas por dor, sofrimento e ressentimento.

Essa sensibilidade é travada em matrizes repetitivas pelas escritoras negras, implicando a necessidade de falar sobre a identidade, que de certo modo está ligada ao conceito de repetição e diferença. E para tanto, é indispensável que tal conceito (o da identidade) seja problematizado, como faz Michel Foucault (2002), quando o homem nasce para o saber, ele forma um par empírico-transcendental, qual seja, o de que ele é o sujeito que conhece, ao mesmo tempo, em que é o sujeito a ser conhecido. Um duplo. Essa posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece faz do homem “um soberano submisso, um espectador olhado”, que indicam limitações concretas à sua existência. E uma dessas limitações é a sua finitude. Para Michel Foucault, essa finitude marca o ser do homem e aponta como a primeira marca dessa finitude, exatamente a da repetição:

E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição – da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá, a mim mesmo, minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que aloja meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. (pp. 434- 435).

Essa inseparabilidade dos contrários é o que permite entender com mais propriedade o conceito de diferença: a repetição implica a diferença, não no Mesmo, não na identidade. Na literatura, a repetição jamais poderá ser a mesma coisa repetida, pois cada verso reiterado, cada passagem repetida é diferente. É, assim, sempre a multiplicidade que encontramos, e a sensação de repetição é um efeito da polifonia, da teatralidade, do dialogismo, e não da uniformidade. É, por assim dizer, um artifício da própria repetição em seu mimetismo.

No texto literário, a repetição de sinais, letras, palavras, frases, imagens, é também sintoma, pressentimento, presságio, indício de um signo, de um símbolo, de um arquétipo, de uma coerência, de uma profundidade, de uma estrutura que flui e escapa para a superfície, para uma forma do visível e para um visível da forma, para uma espécie de manifestação, de uma “rede organizada de obsessões”. Mas redes, estruturas e obsessões da personagem, do texto, não do escritor ou da sociedade.

Obsessões que fluem, mergulham e reaparecem exigindo nos pontos de irrupção, nas configurações que estabelece com outras conjunturas, com outros momentos ou outras imagens sempre outra interpretação.

Nesse sentido, Duarte (2007) explica que o escritor tem necessidade de expor o seu eu poético, reforçando-o até falar por si e pelos seus: Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão. (p. 25).

Assim, a repetição seria como uma tentativa da personagem do narrador dizer suas preocupações existenciais. Se se repete é porque não é superficial, não é uma exceção. No entanto, a repetição jamais é realmente uma repetição, pois há reagrupamentos, rearranjos, e o conjunto repetido está sempre em outro contexto e qualquer gramática da repetição advém de uma teoria, como a de Deleuze e não da matéria literária. Há sensações, impressões, vivências, emoções que precisam, para se dizerem em sua dimensão, para dizerem o mundo a partir de sua perspectiva, se repetir e tornarem a se repetir. Algo que não se satisfaz com um dizer, não se define com uma aparição, não aparece com uma descrição, não pode obedecer a uma gramática, a uma sintaxe. E esse algo repetido não é simplesmente uma repetição, mas um complexo em suas várias arestas. Essas arestas (a diferença do Mesmo) aparecem pelas modificações provocadas pela repetição, pelo contexto sempre diferente ou igual, mas em outra circunstância, alargando o repetido e iluminando os veios interiores do texto, invertendo-o, iluminando planos escondidos, todos reinventados pela leitura.

Para Halbwachs (1990) o escritor só lembra e relembra aquilo que faz sentido dentro do seu próprio grupo social, conservando lembranças identificadoras e para chegar nesse nível faz-se necessário “reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança”, seria um movimento de reconstrução até que o espírito do escritor se una ao do leitor, agindo reciprocamente até a completa sensação de pertencimento a uma mesma e única sociedade.

Levando em conta a teoria deleuziana, pode-se dizer que a repetição no discurso literário da escritora negra não é um “voltar a andar o mesmo caminho”, ou “reviver o já-vivido”, é um clamor em busca de legitimação. Não é a imitação de uma primeira manifestação e nem se esgota em sua última aparição. Seu primeiro momento é apenas formal (não há início nem fim, apenas meio). Todas as repetições são primeiras e finais: o dentro que se expõe e força uma reflexão por parte do leitor.

Afinal, segundo Deleuze (1997, p. 13), “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”. As ponderações do filósofo sobre a escrita estão ao lado do devir, do deslocamento, do inacabamento que um texto proporciona aos que dele se aproximam em grande número e de várias maneiras. Em “A Literatura e a Vida”, Gilles Deleuze fala dessa complexidade da escrita que não cessa de dizer nunca o que tem a dizer, que não é finito o seu campo de atuação, que faz transbordar o vivido e o vivível.

Exemplo da necessidade do devir é o poema “Com o verbo na carne” de Cristiane Sobral (2010), onde é possível observar a necessidade da autora em transcender mediante o ouvir e o compreender de sua realidade, tornando-se una com toda a sociedade, independente de raça, por isso a necessidade do bisturi – internamente todos os humanos são iguais:

Esse texto deve ser aberto com bisturi

Para refletir sonhos alheios

Nas palavras, deixarei pistas de salvação

Letras a abrir caminhos

Sílabas de decisão

Esse texto deve ser aberto com bisturi

O verbo cheio de carne vai derramar sangue negro em seu rosto Suas mãos brancas serão salpicadas de um vermelho quente e vivo Nas palavras deixarei pistas de salvação

Esse texto deve ser aberto sobre a mesa

Para que reflita toda a sua luz

Depois, que seja oferecido

como o melhor tecido da última estação

Valorizado como pérola

Nunca distribuído aos porcos

Depois da refeição.

Pela literatura, a personagem de ficção também conquista seu devir, porque ao mesmo tempo em que traz traços marcadamente individualizados, sabemos que essa “aparente pessoa” pode superá-los, tornando-se, pela técnica narrativa, pelos recursos da ficção, além do estritamente pessoal. O ser ficcional permite o transbordamento de si mesmo, na medida em que é lido por um número elevado de leitores que o imaginam, considerando apenas o seu tipo físico, de maneiras diversas. A atenção de Gilles Deleuze se move no sentido de mostrar que a literatura trabalha minando o campo do possessivo atrelando o escritor e para o qual tudo parece convergir.

E nessa ânsia de satisfazer as lacunas identitárias da escritora negra é que emerge o recurso da repetição enquanto discurso literário, esboçando novas formas de compreensão e de apreensão de realidades, por parte do leitor e exigindo em contrapartida, uma reflexão sobre a realidade do negro brasileiro.

REFERÊNCIAS

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CARONE, Iray & BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.). Psicologia social do racismo - estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CONCEIÇÃO, Sônia Fátima. Cadernos Negros, n° 6, 1983, p. 55.

DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. São Paulo: Pontes Editores, 1988.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildongsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. In: ALEXANDRE, Marco Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: UNESP, 2006.

MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

SOBRAL, Cristiane. Com o verbo na carne. In: RIBEIRO, Esmeralda & BARBOSA, Márcio (orgs.). Poemas afro-brasileiros. Cadernos Negros, vol. 33, São Paulo, 2010.

SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira. Afro-Ásia, 31, 277-293, 2004.

SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (orgs.). Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

* Sueli de Jesus Monteiro Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal do Paraná; Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutorado em Teoria Literária na área de Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina; Pós- doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina. Professora do Instituto Federal do Paraná. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

1 In: MACHADO, Rodrigo Vasconcelos (Org.). Panorama da literatura negra ibero-americana. Curitiba: Imprensa UFPR, 2015, p. 380-391.

 

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