Nascimento Moraes: biografia, jornalismo e narrativa literária

Ana Carusa Pires Araujo*

 

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o afro-maranhense José Nascimento Moraes, um homem singular e de grande caráter, capaz de inquietar a elite da época com a utilização da pena, posicionava-se sempre a favor dos menos favorecidos e sobre as questões causadas pelo preconceito racial. O objetivo deste artigo é apresentar a trajetória biográfica de Nascimento Moraes, destacando a sua participação como jornalista na cidade de São Luís, e também, a sua importância como escritor de textos voltados para a temática da negritude, como é o caso do seu único romance, Vencidos e degenerados, publicado em 1915 e considerado um texto de fundamental importância, sobretudo, por se tratar de episódios relacionados ao dia em que ocorreu a Abolição da escravatura no Brasil. A investigação permeia os caminhos da pesquisa bibliográfica e visa discorrer sobre a vida de Nascimento Moraes, a sua contribuição no jornalismo local e na literatura, em que os personagens negros são pessoas que têm uma história de participação e luta contra o preconceito arraigado na sociedade maranhense.

Palavras-chave: Biografia. Jornalismo. Negritude.

 

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O intelectual negro Nascimento Moraes, desde cedo, foi muito envolvido com as questões jornalísticas e literárias de sua cidade natal, São Luís do Maranhão. Ele buscava defender suas ideias, mesmo sabendo da ausência de valor que um negro tinha na sociedade em que cresceu e viveu.

Este artigo se justifica pela militância de Nascimento Moraes e a sua contribuição para a sociedade maranhense, focando na trajetória social, como um sujeito combativo, driblando o preconceito racial e sendo reconhecido como jornalista de grande expressão, devido à força da sua escrita. Foi no jornalismo que ele teve grande notabilidade, colaborando com diversos periódicos da capital maranhense.

O estudo da obra de Nascimento Moraes justifica-se, particularmente, pelo seu valor literário e pela afirmação da tradição da literatura afrodescendente. Escritura esta que se reporta às experiências sociais e aos fatos históricos vivenciados pelos africanos escravizados e seus descendentes em diásporas nas Américas. No romance Vencidos e degenerados, que fora publicado em 1915, encontramos a construção da narrativa dos episódios sob o ponto de vista do sujeito negro e a desconstrução do preconceito racial. Tal postura é assumida pelo narrador, que é retratado no romance a partir do 13 de maio de 1888 e os primeiros anos da República na cidade de São Luís do Maranhão.

 

2. TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA 

Na esteira do pensamento de Santos (2011, p. 311), o intelectual José Nascimento Moraes “nasce em São Luís-MA, em 19 de março de 1882”, viveu os seis primeiros anos de vida durante o período da escravidão e faleceu na mesma cidade, em 22 de fevereiro de 1958. “Filho dos afro-brasileiros Manoel do Nascimento Moraes (herói não condecorado da guerra do Paraguai, por ser analfabeto) e Maria Catarina Vitória”. O filho de analfabetos teve acesso a uma educação de qualidade.

Frequentou o ensino primário particular e continuou seus estudos no Liceu Maranhense, escola de grande referência na época que, segundo o poeta e crítico literário, Nauro Machado (1996), teve muita influência do professor Manuel de Bithencourt, que o incentivou nas atividades jornalísticas e literárias, principalmente, nas discussões e leituras de escritores, como: Tolstói, Dostoiévski, Émile Zola, Dickens, Spencer, entre outros. Com tais influências, tornou-se um grande escritor, jornalista, professor do século XX, que lutou bastante para conseguir seu espaço na sociedade maranhense.

Tinha origem humilde e, por ser negro, sempre foi alvo de preconceitos, lutava contra as adversidades de seu tempo. Nascimento Moraes firmou-se como um intelectual de respeito. Conforme o historiador da literatura maranhense, Jomar Moraes (1976):

Nada melhor sintetizaria a figura de Nascimento Moraes que a inscrição colocada em seu busto, na Praça do Panteon: EU SOU LUTADOR. A lembrança de ali fixar uma das afirmações mais frequentes do velho Mestre operou, numa admirável síntese, a tarefa de em três vocábulos mostrar tudo quanto, ao longo de sua vida, fez e foi Nascimento Moraes (MORAES, 1976, p. 183). 

O próprio Nascimento Moraes se definia como lutador, “na equação e adequação exatas ao contexto em que elaborou a sua obra literária e a sua vida de esgrimista verbal intimorato e temido” (MACHADO, 1996, p. 38). Era um combatente, que se posicionava sempre a favor dos mais necessitados. Seu compromisso não era com o individual e, sim, com o coletivo, “que só dispunha de uma arma, a inteligência, legando-nos o exemplo excepcional de uma vitória revolucionária contra o preconceito da cor e da riqueza [...]” (MOREIRA, 2000, s/p). Para quem Nascimento foi “preto e pobre, humilde e sem proteção, abriu caminho a golpes de talento e pela sua bravura moral”, em outros termos, fora o intelectual que incomodara seus conterrâneos através de suas críticas jornalísticas. Ainda descrevendo Nascimento Moraes, Machado expressa o seguinte:

a sua configuração mais objetiva, a sua primacial questão [...] de um homem que se realizava agindo, lutando, e que fez da sua vontade, na força titânica de autodidatismo feroz que a tudo se voltava e sobre tudo se detinha, revoluteando em torno de assuntos os mais variados, sem a retilinearidade dirigida do estudo universitário, o leitmotiv da sua obra de escritor, sobretudo, a de crítico político e sociológico do meio que o aprisionava e do qual não quis ou não pôde fugir. José do Nascimento Moraes era paradigmaticamente filho do povo (MACHADO, 1996, p. 39). 

Possuidor de grande força de vontade e desejo de vencer, Nascimento Moraes não precisou passar pelos bancos da universidade, galgou esse mérito pelo seu “autodidatismo feroz”, como aponta Machado (1996), que não o impediu de se tornar professor do renomado Liceu Maranhense, aprovado no concurso para a cátedra de Geografia, ao concorrer com os irmãos Antônio e Raimundo Lopes, grandes pesquisadores e críticos da história. “Professor, foi-o ainda de português e história, como também de matemática, na Escola Normal” (MACHADO, 1996, p. 48).

Foi no jornalismo que Nascimento Moraes dedicou a maior parte do seu tempo e conseguiu ganhar notoriedade. Ele é “a figura de jornalista mais importante das últimas cinco décadas em nossa terra” (MACHADO, 1996, p. 34), contribuiu desde jovem em vários jornais da época, como: A campanha; O Maranhão; A pátria; O jornal; A tribuna; A hora; Diário do Norte; O globo; Correio da Tarde; A imprensa; Regeneração; Notícias; Diário do Maranhão; Atenas; Correio da manhã; O Dia e O imparcial e atuou como editor e algumas vezes Redator-chefe. Utilizava diversos pseudônimos, como: Braz Sereno; Sussuarana; João Ventura; João Sem Terra; Braz Cubas; Valério Santiago; Zé Maranhense e Junius Viactor. (MACHADO, 1996).

Como literato, foi cronista, contista, romancista e poeta. Sua primeira publicação foi Puxos e repuxos (1910). Em 1915, publicou o único romance Vencidos e degenerados, reeditado três vezes, nos anos de 1968, 1982 e 2000. Como produção do autor, ainda podemos citar:  Neurose do Medo, artigos publicados em 1923. E a obra póstuma, Contos de Valério Santiago, publicada em 1972. 

Além de professor, Nascimento Moraes exerceu também a função de Diretor do Diário Oficial do Maranhão, no período interventorial de Paulo Ramos, “a quem lhe era irmão de raça e vitorioso no cargo que ocupava e ao qual os brancos se curvavam, num meio dominado, como até hoje, pelos representantes de uma etnia superior da qual Antônio Lobo se dizia lídimo representante?” (MACHADO, 1996, p. 45). Durante os dez anos que passou no cargo de diretor, escrevia diariamente sobre diversos assuntos, mesclando sempre temas políticos, sociais e literários. Ele tinha a capacidade intelectual de manusear as palavras, através do seu estilo próprio, da sua tênue ironia, atrelado à sua origem provinciana, como nos apresenta Machado:

Sismógrafo negro e antena viva (os artistas são as antenas da raça, diria o expatriado e cosmo-universal Pound), sua vida foi um campo de batalha a testemunhar, com sua prognose intuidora de rupturas profundas, a superfície mistificadora de um meio cujo fastígio econômico e cultural há muito começara a ruir, em todas as suas gamas e em seus mais variados aspectos, deteriorando-se em rachaduras solarescas e epigonismos provincianos (MACHADO, 1996, p. 33). 

Sem se deixar vencer pelas inúmeras discriminações advindas de uma sociedade racista e preconceituosa, “Moraes, espírito combativo e culto” (MACHADO, 1996, p. 47), desde jovem se envolveu em atividades literárias. Com a publicação do jornal Pacotilha, anuncia que foi “installado nesta cidade um novo grupo litterario com o nome de ‘Officina dos Novos’” (Pacotilha, São Luís, 28/07/1900), sob a presidência dele, quando tinha apenas dezoito anos. Os objetivos deste grupo eram: “culto aos vultos do passado; incentivo ao autor contemporâneo pela publicação de seus livros; promoção de solenidades cívico-literárias; organização de uma biblioteca do autor maranhense; manutenção de um periódico literário” (MORAES, 1976, p. 168).

Com esses objetivos, buscavam restabelecer o valor da literatura local, ancorados em cultuar os intelectuais do passado, bem com divulgar sua produção. Nascimento buscava defender suas ideias, mesmo sabendo da ausência de valor que um negro tinha na sociedade em que cresceu e viveu, conforme expressa Machado no trecho abaixo:

Daí não haver ele saído do Maranhão. Daí ser ele uma presença acusatória dos que o viam. Ele se sabia o reflexo da culpa que os brancos, olhando-o, tornavam mais culposa fazendo-a redobrar-se como na repartição de ato infernizado por não ter mais fim.
Ele era, assim, contrário ideologicamente com aquilo no qual acumpliciava seu destino a fazê-lo dizer, ainda e sempre: “Eu sou um lutador”! (MACHADO, 1996, p. 45).

O intelectual Nascimento fez parte da Academia Maranhense de Letras, ocupando a cadeira de número 11 (onze), cujo patrono era João Lisboa, outra figura de igual respeito no jornalismo maranhense. Foi admitido no ano de 1935 e se tornou presidente por três vezes. “Nascimento Moraes soube se fazer respeitar como professor, crítico literário, ensaísta, contista e sobretudo como jornalista a serviço do povo” (MÉRIAN, 2000, s/p). Suas polêmicas e argumentações o tornam um homem combativo, que alcançou um lugar de reconhecimento na intelectualidade maranhense.

 

2.1 NASCIMENTO JORNALISTA

Nascimento Moraes “iniciou suas atividades jornalísticas sob a orientação e o incentivo do professor Manuel de Bithencourt” (MACHADO, 1996, p. 36), que o ajudou a trilhar o caminho das letras, apresentando os grandes nomes do século XIX. A influência de Bithencourt à escrita de Nascimento “não há como negá-lo, a orientação segura que teve para entrar em contato com o que de melhor havia na vida literária de seu tempo” (MACHADO, 1996, p. 37).

Iniciou sua carreira jornalística no jornal A Campanha, em 1901, escrevendo crônicas. Em 1903 estreia com a seção literária Letras e typos, com o pseudônimo Junius Viactor, “em que comentava as produções literárias dos jornais da época. Sua análise era direta e concisa: sem rodeios, elogiava ou criticava, mostrando acertos e erros e, por vezes, corrigindo-os” (CARDOSO, 2013, p. 101).

Foi, principalmente, como jornalista que Nascimento Moraes se destacou na sociedade ludovicense. Utilizou a pena como artifício para lutar, durante toda sua vida, contra o preconceito racial dos brancos, fazer críticas à situação política, corrigir os desvios gramaticais cometidos por seus conterrâneos, falar sobre educação, entre outros assuntos, pois era um homem de conhecimento vasto, o que lhe permitia abordar qualquer temática. Machado discorre acerca da pluralidade dos conhecimentos e erudição do escritor e jornalista:

Espírito ciclópico pela plurivalência de seu talento como jornalista, crítico, moralista, poeta, cançonetista, professor, exímio e imbatível polêmico, cronista do passageiro e do eterno, e romancista de toda uma sociedade, é sobretudo como homem de jornal, subdividindo em mais de dez pseudônimos ou máscaras com que procurava moldar suas características mais variáveis e cambiantes, que o nome de Nascimento Moraes haverá para sempre de marcar sua presença entre aqueles mais nobres homens de letras deste século no Maranhão (MACHADO, 1996, p. 41). 

Moraes era um indivíduo multifacetado, “ele nos deixou uma vasta colaboração sob diferentes pseudônimos nos jornais mais importantes da primeira metade do século no Maranhão” (MÉRIAN, 2000, s/p), já mencionados no tópico anterior, mas o leitor já o reconhecia devido ao valor de sua escrita, que “vai da prosa afiadíssima, quase cortante, até descrições suaves, repleta de imagens metafóricas” (CARDOSO, 2013, p. 100). Desejava que seus textos dialogassem com o público, escrevendo do erudito ao popular. Um jornalista, que buscava o reconhecimento e a afirmação de sua identidade em uma sociedade altamente preconceituosa.

Ele sofreu diversas perseguições, principalmente, devido à sua cor e à classe social, contudo, não se deixava intimidar pelos xingamentos recebidos de seus opositores. Por meio da escrita jornalística, rebatia todos os insultos em defesa do seu grupo étnico-racial e de si na condição de negro.

Ressaltando o valor do negro, Moraes escreve o artigo “O africanismo de Bruno Menezes”, na Revista Athenas (1940), reafirmando a contribuição deste afro-brasileiro para a cultura brasileira. Ele assegura que “Bruno Menezes sente a alma do africanismo, e copiou o desconcertante do ambiente, do estranho cenário do festival dos negros” (MORAES, 1940, p. 1). Enfatiza que os poemas do poeta paraense são marcados pelo sentimentalismo com a Mãe África, que são expressados através dos hábitos e costumes dos nossos ancestrais. E acrescenta que:

vê-se bem que o africanismo apesar da doentia branquidade da maioria dos brasileiros nativos, ainda nos acompanha. Ainda vive no seio da família, ainda está na mentalidade rude do povo, ainda está em muitos aspectos de nossas relações sociais. E digo mais isso: infiltrou-se de tal geito que, sem medo de errar, affirmo, que longe de se apagar, a mais e mais, cresce, pois a medida que os annos se passam, augmenta o número de adeptos de suas crenças, de seus vultos e de suas diversões, algumas até de caráter tradicional, e por isso mesmo até hoje irreprimíveis (MORAES, 1940, p. 5, grifos do autor). 

Com isso, observa-se que o pensamento de Moraes sobre a questão racial reflete a sua luta diária contra os estereótipos impostos aos negros, sendo sua escrita marcada pelo tom de denúncia social contra a escravidão. “Nascimento Moraes, que fez da pena a arma de seu combate diário na trincheira do jornalismo, foi uma das mais importantes figuras do seu tempo, fazendo reviver na imprensa as glórias que deram ao Maranhão respeito e notoriedade” (MORAES, 1976, p. 183). Contudo, é por intermédio do seu posicionamento nos jornais que duramente critica seus opositores em prol de uma sociedade menos preconceituosa e mais justa com os seus cidadãos, sejam estes negros, brancos ou de outras etnias.

 

2.2 NEGRITUDE E ENGAJAMENTO NO ROMANCE VENCIDOS E DEGENERADOS

O romance Vencidos e degenerados é marcado com a notícia da Abolição da escravatura, mesmo sabendo que esta não assegurou ao negro a ascensão na vida social, eles foram desamparados à própria sorte. Em clima de festividade, os abolicionistas comemoravam a chegada da informação sobre a libertação dos escravos. “O movimento continuava intenso na residência de Maranhense, como em muitos pontos da cidade: em todas as casas onde moravam abolicionistas decididos e afervorados” (MORAES, 2000, p. 27). Percebemos que existe a presença de vozes que se preocupavam com a causa dos escravos. Personagens como José Maria Maranhense, “membro saliente do Clube Artístico Abolicionista Maranhense” (MORAES, 2000, p. 27), que não media esforços para lutar em prol dos negros. “Tinha decidido gosto pelas letras, pela ciência, por tudo enfim que fosse do domínio da inteligência humana. [...] como era inteligente, de uma assimilação fácil, deu força a sua loquacidade” (MORAES, 2000, p. 32).

Outro abolicionista fervoroso era João Olivier, “jornalista vibrante e orador fluente que pela imprensa muito trabalhava em favor dos oprimidos” (MORAES, 2000, p. 28). Ele também tinha gosto pelas letras e “suas crônicas eram as mais apreciadas da província e, fora dela, corria o seu nome em evidência, recomendado, pela pureza da linguagem [...]” (MORAES, 2000, p. 32). Filho dos alcantarenses, a branca Dona Rita e o mulato Francisco Jorge Oliveira, Olivier reconhecia a sua identidade e tinha orgulho de ter nascido dessa mistura, exclamando com grande exatidão:

– Sou mestiço e provera Deus que meu tipo fosse mais perfeito.
– E, às frases de contrariedade que ele proferia, respondia: - Minha mãe está redondamente enganada. Esta terra é de mestiço. Pena é que minha mãe não ocupe as horas de ócio a ler a História do nosso país (MORAES, 2000, p. 93).

D. Rita, “quando via o filho empenhado em lutas pela liberdade, em delírios pela República, que vinha a fazer do preto um cidadão” (MORAES, 2000, p. 94), fulgia de satisfação a voz de Olivier “em defesa da raça que lhe descendia” (MORAES, 2000, p. 94).

Os dois abolicionistas, não tendo medo de combater o preconceito racial que reinava na sociedade maranhense, utilizavam da intelectualidade para denunciar a situação da época. Dessa forma, “o negro intelectual descobre que uma possível solução a essa situação residiria na retomada de si, na negação do embranquecimento, na aceitação de sua herança sociocultural que, de antemão, deixaria de ser considerada inferior” (MUNANGA, 1988, p. 6).

Compreende-se que as atitudes dos abolicionistas se voltavam para o objetivo da solidariedade, sentimento este, que liga secretamente a todos os irmãos negros do mundo e ajuda a resguardar a identidade comum (MUNANGA, 1988). Com isso, Maranhense e Olivier, homens que se destacaram com a nobilíssima causa dos escravos, são considerados como modelos da luta do movimento da negritude. Foram membros ativos contra a escravidão, pessoas engajadas e dispostas na defesa do negro.

Os personagens Olímpio Santos e Domingos Daniel Aranha já eram livres, antes mesmo da libertação dos escravos. “Olímpio era um preto retinto, alto e magro, rosto redondo, de expressão carregada de tédio, cabeça seca, olhos grandes e amortecidos” (MORAES, 2000, p. 39). Residia na Rua da Cruz, onde exercia a profissão de sapateiro. Trabalhador cuidadoso e incansável, fica sozinho no mundo e volta às suas origens, quando o narrador lembra da sua tia, uma “negra africana, de família mina”, e de sua mãe, “a velha Noberta preta mina da corte maior”. (MORAES, 2000, p. 40, grifos do autor).

Seu único amigo e companheiro de ofício, Aranha, “era um mulato alto de meia-idade, mais magro que gordo, pouca barba, bigode ralo, cabelos crespos” (MORAES, 2000, p. 40). Fora liberto pela vontade do seu senhor, causando surpresa para muitos. Isso aconteceu porque ele era testemunha de todas as suas maldades e petulâncias:

[...] Aranha fora capanga de seu senhor. Andava com ele em frequentes excursões pelo interior da província e, como o senhor se entregasse a conquistas amorosas, arriscadas e difíceis, ele teve a ocasião de muitas vezes salvar-lhe a vida, poupando-a às investidas da vingança cruenta que não esmorece, nem mede perigos.
Aranha passara a exercer sobre o ânimo daquele homem uma influência extraordinária. Inteligente, penetrante de espírito, compreendera cedo que o seu senhor era um vicioso covarde, uma índole má e perversa e tão miserável que nem tinha coragem de responsabilizar-se pela miséria que derramava a mancheias no lar alheio (MORAES, 2000, p. 41).

Aranha tinha um grande controle sobre o seu senhor. Ele “ria de sua fraqueza, pensava e refletia sobre ela, como quem resolve um problema filosófico” (MORAES, 2000, p. 41). Zé Catraia também era de confiança do seu senhor e fora libertado em decorrência da Lei Áurea. Sabia dos detalhes da vida de todo o mundo, todos se perguntavam como sabia de tudo o que se passara naquele lugar. Espírito de “homem do povo, ferino e alusivo, conhecedor das misérias de sua terra, da hipocrisia de muita gente e o como dos capitais dos ricos. Aquele homem era uma preciosidade...” (MORAES, 2000, p. 154).

João Olivier tinha muito orgulho do seu filho adotivo, Cláudio Olivier, e desejava a ele ser lutador, combativo e ferrenho em favor da causa do negro. Aspirava a que Cláudio fosse o que ele não conseguira ser naquela sociedade preconceituosa e hipócrita. Desejava que não aguentasse desaforos e discriminações; que fizesse de sua escrita uma arma poderosa para o caminho de uma sociedade mais justa, igualitária e respeitável, principalmente para os mais injustiçados e aqueles que estavam à margem. Fanon (2008) expressa a necessidade de o negro fazer-se reconhecer, por meio da “atividade negadora”, como um indivíduo que luta por um mundo de reciprocidades.

Grande contribuidor pela formação intelectual destes dois (João e Cláudio Olivier) foi o professor Carlos Bento, que “era professor e jornalista. Extremadas lutas partidárias o houveram impossibilitado de trabalhar com os outrora liberais e conservadores. Afastado da imprensa, onde conquistara um nome respeitado” (MORAES, 2000, p. 74). Sua carreira foi desprezada, passando a viver de aulas particulares. “Da mesma forma que os Olivier, o professor Carlos Bento foi excluído socialmente em razão de sua militância política” (CARDOSO, 2013, p. 124). Era um crítico ferrenho da sociedade maranhense, e escrevera vários panfletos sobre a política e sociedade da época. No que se refere ao “estado de coisas”, ele escreve:

De 13 de Maio para cá começou o Maranhão a decair materialmente, não por falta de braços como vulgarmente, erroneamente, se propala por aí de toda a região brasílica; que nunca nos faltaram braços, nem os podia faltar num país que conta dezoito milhões de habitantes, no mínimo de aproximação numérica. Começou a decair, empobrecer, porque em grande parte não entendiam de lavoura e de criação os que acudiam os honrosos qualificadores de lavradores, agricultores e fazendeiros (MORAES, 2000, p. 81). 

O discurso do professor Bento declara que a culpa recai sobre a própria sociedade, que é preconceituosa; falavam que a causa do arruinamento que assolava o Maranhão era a falta da mão de obra escrava; e, com a libertação dos escravos, não tinham mais cativos trabalhando como outrora. E sabemos que o desejo da hegemonia era que o escravizado nunca deixasse de ser escravo.

Outra figura importante na sociedade daquela época é o feitor. “Era um “homem terrível e bom, perverso e leal, a um tempo, porque só se o pode considerar por duas faces, pela do senhorio aquém servia, e pela do escravo, que lhe obedecia” (MORAES, 2000, p. 82). O professor Bento continuar a descrever este homem temível:

O feitor mentia, abusava, esbordoava, e matava com o consentimento do proprietário que não se podia furtar a satisfazer-lhe os desejos e os caprichos. Conhecia o proprietário mais do que o proprietário o conhecia; era seu instrumento de todas as ocasiões e por isso ele avaliava bem da sua vilania, de sua covardia e de seus vícios e, por último, conseguira governar-lhe a vontade.
O feitor era um homem necessário e preciso, que quase sempre se impunha nas fazendas porque sabia que sem a sua inteligência e seu braço, o senhor nada valia como homem e como trabalhador (MORAES, 2000, p. 83).

Ele era o homem de confiança do senhor, além de amigo, confidente e cúmplice de suas malvadezas; “era a disciplina e o instrutor de baraço e chicote” (MORAES, 2000, p. 83). E cabia ao senhor lhe apadrinhar pelos vários atos de selvageria que realizava contra os infelizes cativos. Era injusto, facilitava a vida de uns em detrimento de outros: “A meia-dúzia de escravos de agrado, poupava, frequentemente, no trabalho. Fazia intrigas. Os escolhidos, por sua vez, pediam regalias em benefícios de alguns companheiros a quem eram afeiçoados” (MORAES, 2000, p. 84). Isso ocasionava tumulto por aqueles que se sentiam desapontados por tamanha injustiça.

Com isso, podemos perceber como era a situação nas fazendas, sob mandos e desmandos desta figura impetuosa e opressora, o feitor. Outro aspecto que vale ressaltar, neste panfleto, redigido por Bento, é que “havia nas fazendas pequenas irmandades de diversos santos. Sendo oficial uma das irmandades, as outras se debatiam entre si e contra a favorita. [...] ” (MORAES, 2000, p. 84). O proprietário da fazenda também tinha crença nos feiticeiros, que aprendera a ter com o feitor. “Não escapavam aos poderes do pajé pessoas mesmo da família do dono da fazenda; porque não raras vezes acontecia introduzirem-se no lar, qual peçonha, crenças diferentes” (MORAES, 2000, p. 84-85).

Dessa forma, percebemos que existia nas fazendas as práticas religiosas originárias da África. Essas práticas e representações eram costumes dos povos africanos e descendentes, que adentraram ao território brasileiro e trouxeram consigo as tradições realizadas no seu local de origem, isso possibilita compreender que existe uma volta às suas raízes, reafirmando, assim, sua identidade afrodescendente.

Salientamos que a prosa de Nascimento Moraes problematiza a violência, a exploração e o desprezo contra a população negra antes e após a escravidão. Munanga afirma que “a criação poética torna-se um ato político, uma revolta contra a ordem colonial, o imperialismo e o racismo” (MUNANGA, 1988, p. 47). E isso, Nascimento reafirma em seu texto, com a voz altiva e destemida da assunção da sua negritude, pois de acordo com Djamila Ribeiro (2019) os sujeitos negros têm poder e lugar de fala, capazes de expressar sua subjetividade e nossas histórias de resistência e reexistência.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de mais de um século da participação de Nascimento Moraes, os preconceitos não cessaram, pois “não é com poucos anos que se transforma uma sociedade e desenraizam preconceitos” (MORAES, 2000, p. 88). Mas podemos afirmar que houve avanços significativos com a conquista dos movimentos sociais e políticos em torno das questões raciais, isso reforça que “a identidade e o racismo não são fenômenos estáticos. Eles se renovam, se reestruturam e mudam de fisionomia, de acordo com a evolução das sociedades, das conjunturas históricas e dos interesses dos grupos” (MUNANGA, 1995, p. 17).

Não podemos deixar de mencionar a importância que o movimento de negritude teve como referência de valorização dos negros em todo o mundo. No Brasil, podemos situar o escritor afrodescendente Nascimento Moraes, que rompe barreiras sociais e econômicas e imprime na sua escrita o compromisso com a causa do negro, colocando elementos que são próprios à literatura negra.

Duarte (2013) aborda que quando atribui o complemento “afro” ao texto do escritor negro brasileiro tem mais consistência crítica, a partir de um ponto de vista particular a direcionar a abordagem do sujeito negro, seja na poesia seja na prosa. Contudo, a obra Vencidos e degenerados tem grande importância para os estudos afrodescendentes, uma vez que coloca o negro como protagonista da narrativa, dando-lhe voz e legitimando seu discurso.

Esperamos que este artigo possa apresentar caminhos para a visibilização do jornalista e escritor Nascimento Moraes, no aspecto da afrodescendência. Partindo da perspectiva de apresentar a significância desse maranhense negro, que enfrenta e rompe barreiras na sociedade maranhense, com a sua escrita forte e contundente, que pensamos que a apresentação deste sujeito irá contribuir para ampliar o universo de leitura de negros que foram significantes no seu tempo e lugar e que são pouco conhecidos.

 

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Patrícia Raquel Lobato. Lobo X Nascimento na “Nova Atenas”: literatura, história e polêmicas dos intelectuais maranhenses na Primeira República (2013). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2013.

DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: FERREIRA, Elio; FILHO, Feliciano José Bezerra (Orgs). Literatura, história e cultura afro-brasileira e africana. Teresina: Editora da UFPI, 2013.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

MACHADO, Nauro. Esferas Lineares: 4 Estudos Maranhenses. São Luís: SECMA, 1996.

MÉRIAN, Jean-Yves. Vencidos e degenerados: um documento sociológico. In: MORAES, José do Nascimento. Vencidos e degenerados. 4. ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000.

MORAES, Jomar. Apontamentos de literatura maranhense. 2. ed. São Luís: SIOGE, 1976.

MORAES, José do Nascimento. O africanismo de Bruno Menezes. In: Athenas, Revista do Maranhão para o Brasil. a II. n.19. jul.1940.

MORAES, José do Nascimento. Vencidos e Degenerados. 4. ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000.

MOREIRA, Neiva. Nascimento Moraes. In: MORAES, José do Nascimento. Vencidos e degenerados. 4. ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000.

MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos Anti-racistas no Brasil. In: QUINTAS, Fátima (Org). O Negro: Identidade e Cidadania. IV Congresso Afro Brasileiro. Recife: FUNDAJ, editora Massagana, 1995.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

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RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro: Polén, 2019.

SANTOS, Maria Rita. Nascimento Moraes. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica- Precursores. v. 1. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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* Ana Carusa Pires Araujo é Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI e Professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA. Integra como pesquisadora o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas – NEABI/IFMA e o Centro de Estudos, Pesquisas e Extensão de Linguagem – CEPELI/IFMA.