O Protagonismo do Mulato – A Construção dos Personagens Raimundo e Isaìas Caminha

Luciano Antonio

A figuração do mulato na literatura brasileira parece acompanhar sua posição social subalterna na efetivação da sociedade pré e pós-abolição. Contudo, em alguns momentos, esses seres “invisíveis” deixam a posição secundária passando para o papel principal e centro das discussões pela pena de alguns escritores. Na tentativa de observar melhor dois casos em que o mulato ganha status de protagonista e a questão de sua identidade emerge do subsolo para maior visibilidade no palco da ficção, por conseguinte na pauta dos inúmeros leitores que a cada novo contato com a obra ressignificam os seus sentidos, propomos uma análise mais detida dos personagens Raimundo de O mulato, publicado em 1881 por Aluísio Azevedo e Isaías em Recordações do escrivão Isaías Caminha, protagonista do romance de Lima Barreto em 1909. A fim de melhor compreender o papel de cada um nas respectivas obras, apresentaremos esses personagens separadamente. Na sequência, cotejaremos as aproximações e diferenças entre eles.

1.Raimundo: o mulato

Em 1881, o jovem escritor Aluísio Azevedo aparece nas letras nacionais com romance cujo título O mulato por si só chama a atenção, especialmente num período em que afloram teorias racialistas e intensificam-se discussões em torno da escravidão no Brasil. De certa forma, o livro resvala nestas questões com a protagonização do personagem mulato que, pelo menos no tratamento literário, parece deixar a posição de figurante.

Trata-se, como veremos, um modo especial de delinear essa figura que não pode ser entendida sem levarmos em consideração o projeto estético ideológico do autor, o contexto em que ela foi produzida e as especificidades da região brasileira que serve de cenário para a inserção dos personagens, a cidade de São Luís do Maranhão, na segunda metade do século XIX. Outro fato importante a se considerar é a posição do próprio escritor como intelectual abolicionista que antes da estreia de romancista já “militava” pelas páginas dos jornais O Pensador e Pacotilha. (OLIVEIRA, 2008).

Esse romance, lido de forma mais interessada, pode revelar em sua estrutura diálogo entre as perspectivas do autor embasadas pelas correntes científico filosóficas europeias, como o darwinismo e o evolucionismo, que fomentaram paradoxalmente as discussões sobre o racialismo no Brasil a partir de 1870 (SCHWARCZ, 1993) e ecos de uma trama no mais puro estilo dos romances românticos com o impedimento do amor entre o casal protagonista.

E é envolto nessa luta entre os apaixonados e o núcleo familiar, empecilho para a efetivação do amor, que Aluísio Azevedo foge da mera construção de um caso fatídico. Isto porque há atrás a organização familiar e a sociedade construídas sobreestrutura escravista, conservadora que fornece bases para as discussões de um escritor fértil, com pena carregada de preceitos extra literários Embora, não possa ser considerado propaganda abolicionista, por diversos motivos que destacaremos mais adiante, o livro parece se encaminhar para construção de um painel da sociedade maranhense com a descrição dos tipos que a habitam, uma contundente crítica à posição do clero e mais detidamente trata do racismo que impera nesse meio social, principalmente em relação à figura híbrida do mulato.

Neste quesito, destaca-se que Aluísio construiu um protagonista estigmatizado pela mestiçagem, sendo filho de português com a escrava. Nesse sentido, o mulato se inscreve no romance como figura representativa do processo de mestiçagem que caracteriza a sociedade brasileira, “uma sociedade de raças cruzadas” (ROMERO, 1895 apud SCHWARCZ, 1993 ), e “um festival de cores” (AIMARD, 1888 apud SCHWARCZ, 1993 ). Mestiça também era a imagem negativa que Louis Agassiz tinha do Brasil: “(...) Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental” (AGASSIZ, 1868, apud SCHWARCZ, 1993, p. 71 ).

Dentro desse aspecto de mestiçagem, mas por outro ângulo, insere-se a figura de Raimundo que embranquecido herda da genética paterna boa parte dos seus traços físicos:

Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não fosse os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina. Dentes claros que reluziam sobre a negrura do bigode: estatura alta e elegante; pescoço lago, nariz direito e fonte espaçosa. (AZEVEDO, 1977, p. 35)

Este é Raimundo, figura que embora reúna características híbridas, destaca-se pelos grandes olhos azuis, o mais belo e significativo de seus atributos físicos. Com isso, o escritor opera na configuração física selecionando os traços que colocam esse personagem, pelo menos no porte físico, como uma bem sucedida mistura de raças. E assim, essa imagem inicialmente construída no livro, parece ir de encontro às perspectivas de Louis Agassiz e de outros estudiosos que viam nessa mistura a desconfiguração das raças, atribuindo ao mulato pecha, ser defeituoso, justamente pela impureza de raça.

Do passado para o presente, da Europa para o Maranhão, de orgulhoso bacharel para mulato, eis o movimento do personagem Raimundo dentro da trama construída por Aluísio Azevedo. Tais transformações servem para pesar a força do preconceito racial que irá marcar toda sua existência.

Essa base híbrida do personagem o coloca em posição fronteiriça que, se por um lado entra em choque com os preceitos raciais enraizados na tradicional estrutura da oligarquia maranhense, por outro ilustra a posição do autor dentro do debate na época. Essa construção do mulato parece estar em consonância com a posição de muitos homens da ciência, como ilustra Lílian Schwarcz ( 1993, p. 18) : "(...) e na brecha desse paradoxo – no qual reside a contradição entre a aceitação da existência de diferenças humanas inatas e o elogio do cruzamento – que se acha a saída original encontrada por esses homens de ciência, que acomodam modelos cujas decorrências teóricas eram originalmente diversas".

Assim, o que parece estar no cerne da discussão travada ao longo da narrativa, com os discursos, posicionamentos e sentimentos dos personagens diretamente envolvidos na trama, é o jogo em que por um lado há a defesa da raça pura com base na “ciência” da época. Ideia essa que se concentra na posição de Gobineau ao defender a inviabilidade da nação composta por raças mistas. Esse discurso “científico” adotado pela elite branca ecoa na obra por meio da família de Ana Rosa, em especial na veemente voz de Maria Bárbara, sogra de Manuel Pescada. Por outro lado, temos a inevitabilidade do movimento de mestiçagem do povo brasileiro e a defesa de que tal mistura pode ser benéfica, especialmente quando significar “branqueamento” da população, caso de Raimundo. Outro ponto de vista importante que perpassa a narrativa é a frustrada tentativa de apagar as fronteiras desses conceitos de raça e ainda mostrar que estes possuem peso no julgamento das pessoas dentro do contexto abordado no romance.

Vejamos, então, se nos é possível entender a posição híbrida de Raimundo para a discussão esboçada acima. Parece-nos muito claro e já foi apontado por críticos como Guilherme Cesar (1977) que, na sua introdução da obra, declara ter o mulato de Aluísio recebido do autor “enxerto” de branqueamento. Essa injeção de cor, embora atinja de certo modo a verossimilhança do personagem, passa a dar maior nitidez ao tipo de mulato que melhor se adéque à construção de sua tese. Isto porque não bastasse o amor e proteção do pai, tratamento pouco comum para os filhos dos senhores com escravas, o menino ainda teve a fidelidade do tio ao irmão que cuidou da refinada educação do sobrinho. Assim, a sua formação intelectual, a admiração que de certa maneira goza da sociedade, com o título de bacharel em direito, a cultura europeia que torneou sua visão de mundo, todos esses aspectos dão à figura de Raimundo especial contorno. Nesse sentido, ele se coloca como exemplo de mulato que tendo vida diferente daqueles oriundos do seu meio, não decepcionou, ou melhor, fez brilhante papel igualando-se aos outros estudantes que, se diferentes na origem, dividiam com ele o mesmo banco escolar. Esta primeira luta com esplendorosa vitória de Raimundo talvez funcione como base da tese do escritor de que a diferença entre brancos e mulatos pode estar na posição marginalizada deste último. Embora esse argumento tenha enfraquecida sua validade pela inverossimilhança no “branqueamento” de Raimundo, não se pode desconsiderar sua origem mestiça.

Após passagem pela Europa, o personagem retornará para segunda luta, aquela em que se fundamenta a denúncia do preconceito arraigado na estrutura da sociedade escravista. Interessante notar a forma como o padre Diogo anuncia Raimundo: “O Mundico! O filho do José, homem! Teu sobrinho! Aquela criança, que teu mano teve da Domingas...” (AZEVEDO, 1977, p 21). Fica claro que não é ao nome do rapaz, nem a posição desse, o que identifica: é a origem da mãe, escrava. Outro trecho importante, ainda dentro do discurso do cônego Diogo que acentua sua posição racista é a declaração sobre alguns aspectos da sociedade, para ele vexatórios:

Ora o quê, homem de Deus! Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? Você queria, seu Manuel que a dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina? Ora, seu compadre,você as vezes até parece tolo! Manuel abaixou a cabeça derrotado.(AZEVEDO 1977, p. 23-24)

Este trecho nos parece sintomático e expõe a visão de toda sociedade escravocrata que em nenhuma hipótese permite ao negro outro papel senão o subalterno. Também se extrai o fato de sequer ter sido cogitada pelo cônego a hipótese de a filha do compadre casar-se e ter filho com um mulato. Importante destacar que esse representante do clero, ademais das circunstâncias que envolveram sua relação com o pai de Raimundo, será, junto com dona Maria Bárbara, porta-voz e advogado de defesa da superioridade da raça branca. Já no plano diegético, tal discurso é materializado por um personagem que pode funcionar como o mais nítido exemplo de que em qualquer circunstância o homem branco é superior ao negro ou mesmo ao mulato. Esta nobre função está a cargo do caixeiro Luís Dias, funcionário de confiança de Manuel Pescada, que, entre outras qualidades, tem posição privilegiada por ser, como o patrão, português. Se isso pode ser considerado predicado, parece que o Dias, aos olhos de Ana Rosa, não dispõe de outros: “Mas qual! Ela nem queria vê-lo Tinha-lhe birra; não podia sofrer aquele cabelo à escovinha, aquele cavanhaque sem bigode, aqueles dentes sujos, aquela economia torpe e aqueles movimentos de homem sem vontade”. (AZEVEDO, 1977, p. 18).

Para entendermos melhor como esse personagem faz contraponto à figura do mulato, vejamos algumas de suas características arroladas pelo narrador: “Havia, empregado no armazém do pai de Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís Dias: muito ativo, econômico, discreto, trabalhador, com bonita letra, e muito estimado na praça.” Está nítido, no trecho destacado, que, antes de todas as qualidades, a primeira que talvez substitua todas as outras era a insígnia: “um rapaz português”. Esse aspecto é fundamental para entendermos de que forma os dois personagens são trazidos a cena pelo narrador. Por seu lado, Raimundo, ao retornar da Europa, possui além das qualidades físicas já destacadas, o título de doutor (bacharel em direito), modo como é tratado. Também sabemos que veio para São Luís com o intuito de vender a fazenda e outras propriedades do pai. Em síntese, trata-se de homem que além de todas as outras “condecorações” possuía qualidades suficientes para ser genro de Manuel Pescada. Contudo, a preferência por Luís Dias coloca na questão racial o maior peso que sucumbe outros valores como os pertencentes ao personagem mulato descrito no romance.

Esses aspectos levam ao cerne da tese encampada no livro e ao ponto em que o preconceito, antes no nível do discurso, passa propriamente ao plano da diegese. Dentro deste, também ganha vulto o papel de Ana Rosa, personagem chave que devido a sua posição parece encarnar, de início, o principal argumento a favor da mistura de raças ou da insignificância dessas questões. Isto porque ela é colocada, assim como Raimundo, numa posição fronteiriça, pois mesmo com o sangue português ela age pelos sentimentos independente de outros preceitos. Ainda que Raimundo seja um tipo romanesco de mulato e Ana Rosa tenha, de certa forma, aceite a imposição do pai, depois do assassinato de Raimundo, ela tornar-se-á o ponto de contato e de litígio entre o mulato e a família portuguesa. Importante também ressaltar que surge dela a iniciativa de quebrar a barreira que os cercava. Assim, ela primeiro investiga o homem amado, invadindo seu quarto, quando este lá não estava e declara seu amor quando este não esperava. Importante sublinhar que tal iniciativa da mulher branca é algo incomum na própria literatura escravista da época, pois tal papel é sempre destinado ao mulato. (GOMES, 1994).

Impulsionado por está iniciativa de Ana Rosa, o mulato, ao pedir sua mão em casamento, ouve do pai desta a sentença que detonará em intenso conflito consigo e com a sociedade que o envolve. É Fundamental destacar que a cena capital que mostra claramente a distinção racial tem forma ácida tanto dentro da tese do escritor como na autoimagem de Raimundo. Mesmo que o tio hesite em alguns momentos, tal justificativa é insinuada como naturalmente aceitável: “- Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é...é filho de uma escrava...- Eu?! – O senhor é um homem de cor!...Infelizmente esta é a verdade... (...) Eu nasci escravo?!...- Sim, pesa-me dizê-lo, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.” (AZEVEDO, 1977, p.179).

A partir desse momento, a arena do debate se instala no interior do próprio personagem quando ele se vê inferiorizado com a sentença que desnuda o lugar incômodo ocupado por ele nessa sociedade escravista. Assim, a partir de um narrador onisciente, temos acesso tanto à autopunição de Raimundo, quando este parece revoltar-se consigo, aceitando a posição que lhe era imputada, como também sua revolta para com a sociedade que não lhe enxergava qualidades.

A opção de ficar e lutar por Ana Rosa, mesmo tendo saída mais confortável, porém menos digna de desfrutar uma vida de bacharel no Rio de Janeiro, o conduzirá dentro da narrativa, para a posição de herói, a lutar sozinho contra a engrenagem social que lhe é desfavorável. E a partir do momento em que escolhe o amor da moça, simbolicamente, ele não só satisfaz desejo pessoal, mas também luta em nome de todos aqueles que possuem igual origem. Podemos visualizar nessa posição de Raimundo uma hipótese para o título do livro em que pese o autor não ter colocado o nome do personagem estendendo a situação não a um indivíduo, mas à coletividade.

Armado o conflito, postos os lutadores em seus lugares, temos para o destino do jovem mulato a tese de que o meio, ou melhor, o lugar de sua origem define a vida do indivíduo. É assim que Raimundo sucumbe à força da sociedade representada pelo cônego Diogo.

Contudo, é com o post mortem do mulato que podemos medir ou avaliar o significado de sua existência. Fica claro que passado o susto de Ana Rosa, a vida volta ao normal. Importante destacar que a morte não é só de Raimundo, mas também estende ao fruto de seu amor com Ana Rosa, que chocada com a visão do amante morto, aborta o filho que esperava do amante. Por esse viés, entende-se que eliminado o elemento destoante do conjunto ou a retirada da peça que perturbava o bom funcionamento do sistema, a tendência é que a engrenagem volte a funcionar de maneira correta. E não é com surpresa que o leitor vai encontrar no final da narrativa essa ordem renascida com toda a força, quando o narrador, no fechar das cortinas, focaliza Ana Rosa toda feliz e prestativa com o marido, desfrutando honrarias da alta sociedade:

O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a carne esperta (...) e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos que ficaram em casa, a dormir. (AZEVEDO, 1977, p.190).

A “normalidade” se restabelecera, Ana Rosa que, ao contrário de outras personagens com história idêntica, refizera-se rapidamente, casara-se com o homem que lhe causava repugnância, porém o mais viável para aquela situação. Nesse trecho, o narrador aponta para a sujeição dessa personagem e sinaliza as bases da sociedade escravista que trata as diferenças raciais pressupondo inevitável superioridade do homem branco. Com o final “feliz”, fica resguardada a continuação da raça com os três filhinhos que expressam os frutos da união desejada, pelo menos para aqueles defensores do puritanismo racial.

Desse modo, fica patente que a discussão apresentada no transcorrer do romance só pode ser entendida se levarmos em conta o contexto em que a mesma é travada e o final da narrativa que aponta não só para a anulação da pretensa ideia de Raimundo em sair de sua posição subalterna devido à origem racial, como também derrota para a categoria dos sujeitos híbridos, de raça impura e degenerativa. Por isso, não é só a morte do filho de José Pedro da Silva que o texto alude, mas estende à própria figura do mulato. Também aqui vislumbramos um outro sentido para o título do livro.

2. Isaías Caminha: um mulato em busca de (re)conhecimento

Destacamos na parte anterior a obra de Aluísio Azevedo que não só estampa o tema do mulato na capa do livro como também coloca esse personagem na posição de protagonista e centro das discussões. Também ficou evidente que transpassa as páginas do livro a construção da tese do autor sobre as bases do racismo no contexto do Maranhão, fortemente ligado a uma sociedade escravista.

Ainda em nosso objetivo de observar o protagonismo do mulato na literatura brasileira, importa verificar outra obra que traz de modo especial as peripécias de um “homem de cor”. É no início do séc. XX, período de movimentado cenário político e socioeconômico, que nas letras surge Recordações do escrivão Isaías Caminha de Afonso Henriques de Lima Barreto, publicada em 1909. Assim, quase três décadas depois, imprime-se outro livro que protagoniza o mulato e de certa forma retoma a discussão do racismo já empreendida pelo romancista maranhense.

Vale frisar que essa obra de Lima Barreto surge em diferentes circunstâncias tanto no contexto histórico como na posição do escritor que se reflete na própria estrutura da obra. Se o mulato de Aluísio Azevedo foi escrito num período em que se agitava a campanha abolicionista que sete anos após a publicação do romance veio culminar com a abolição da escravatura, o mulato que protagoniza a obra de Lima Barreto está inserido em outro contexto, ou seja, duas décadas após a assinatura da Lei Áurea. Por outro lado, ressalta-se que há substancial mudança de foco com a narrativa em primeira pessoa, ou seja, trata-se de um mulato que depois de estabelecido como escrivão imprime no livro suas memórias. Feitas essas observações em linhas gerais, compete-nos observar de forma mais detida a construção desse personagem que, inserido em outro contexto, pode-nos trazer em realce a posição do mulato logo após a libertação dos escravos.

A leitura das primeiras frases do romance não deixa dúvidas de que tanto o leitor quanto o narrador personagem desempenharão papeis claros e distintos ao longo da narrativa. Isaías Caminha, como sugere o próprio título do romance, irá recordar em tom biográfico sua vida, o que traz ao texto dimensão subjetiva importante para aanálise de sua visão de mundo e a forma como descreve seus encontros e desencontros ao longo da trajetória. Esse percurso que atravessa o romance origina-se de um exímio estudante interiorano que sonha ser doutor, passa pela posição subalterna como contínuo de importante jornal do Rio de Janeiro até chegar a repórter no mesmo jornal. Para o leitor está reservado papel de “interlocutor”, servindo de confidente para um personagem que mesclará em seu discurso uma narrativa minuciosa de espaço e pessoas tendo visão particularizada do Rio de Janeiro, assim como fará do leitor companheiro para suas lamentações, confidências, dividindo com ele as angústias da voz que não é ouvida pela sociedade sua contemporânea.

Dentro da ideia de que esse romance tem como título a própria natureza e estilo do que será narrado, uma autobiografia, temos em destaque dois pontos que podem ser considerados fios condutores. O primeiro aspecto seria a própria motivação do livro em que a tese do escritor parece ser a inércia de entusiásticos começos para as “pessoas de cor” no Brasil, não se deve a problemas étnicos e sim a barreiras histórico-sociais. E no resgate dessa dolorida experiência pessoal surge o grande mote do livro: o personagem frente a própria identidade.

Para entendermos melhor como estas duas premissas estão contidas na arquitetura do romance, devemos partir da ideia de hibridez ou mestiçagem circundante da própria origem do personagem que, desdobrada, será fonte de tensão a envolver tanto sua inserção social como formação da autoimagem. O próprio Isaías tem essa percepção ao destacar, no início da narrativa, o fato de seu nascimento frutificar a partir de seres com identidades marcadamente distintas. Das recordações do pai, que significativamente antecede à de sua mãe, temos o perfil de sujeito fortemente ilustrado que lhe traz admiração e distanciamento. Assim, a figura paterna não está registrada em sua mente pela força afetiva e sim como modelo de sapiência. Da mãe lembra ser mulher triste e humilde que, embora tenha outras qualidades, está para o pai num estado de ignorância. Desta, ele herdara alguns dos traços físicos e psíquicos que a princípio estariam totalmente subordinados à sua peculiar inteligência, legado paterno. Nessa hibridez surge sua realidade de menino mulato e pobre, vivendo com limitações financeiras, encoberta pelas frutíferas possibilidades que sua fé nos estudos parece não ver limites. Esse último aspecto torna-se a base, o ponto de partida para falsa premissa que sofrerá, ao longo da narrativa, diversos ataques até ser suplantada por outra a que Isaías reluta aceitar.

Esta outra premissa não lhe vem dos estudos ou de aprendizado acadêmico, mas é sentida na pele ou na carne com dissabores que lhe são pertencentes. Trata-se, no plano diegético, dos eventos em que o racismo vai se desnudando e é combatido por Isaías numa escala que vai da indignação muda até o revide desastrado.

Importante destacar que ao observarmos os diferentes contextos, as distintas figuras que estão envolvidas e o efeito que elas vão tomando na construção da personalidade do protagonista, verificar-se-á que esse preconceito racial está espalhado por diferentes camadas sociais e pode surgir de forma mais velada ou estar escancarada pela situação ou ainda mesmo declarada via discurso direto.

Dentro das inúmeras situações que Isaías percebe-se vítima de preconceito, destacamos uma que pode nos dar a impressão não só dos níveis e raízes dessa distinção racial como as reflexões do narrador personagem que ao focalizar o fato pelo ângulo da vítima, do mulato, algo inédito na literatura brasileira, dá ao relato grau maior de força discursiva. A primeira cena em que a distinção entre branco e “homem de cor” sobressai a outras diferenças foi sentida por Isaías logo cedo, aosdezenove anos, na viagem ao Rio de Janeiro. Deixemos que o próprio narrador conte-nos o caso:

(...) Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: “Oh!”, fez o caixeiro indignado e em tom de desabrido. “Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo”. Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazerosamente entregue. (BARRETO, 1984, p. 26)

Ademais do destaque dado ao discurso do caixeiro, impregnado de altivez gerada pela percepção negativa, rebaixada do interlocutor, além do uso de advérbio por parte do narrador que modula as impressões subjetivas, este primeiro caso ilustra que essa diferenciação ecoa de uma sociedade com base escravista, na qual esta conduta, mesmo que marcadamente segregadora, parece algo corriqueiro devido à espontaneidade do ato. Todavia, o que nos chama a atenção é a forma como tal cena foi digerida por Isaías. A primeira reação foi instintiva com raiva muda, principalmente quando os presentes lhe lançaram olhares. Em seguida, e o que nos parece ser mais significativo, foi a forma como ele buscou entender o ocorrido. Nas suas conjeturas, chama atenção o discurso ao mesmo tempo ingênuo e mortificante por se tratar de autoavaliação. Interiormente percebendo o que ocorrera, preconceito pelos seus traços amulatados, mas tentando afirmar-se ou desviar o foco para a terrível conclusão que teria de chegar, ele se vê como homem fisicamente igual aos outros, com destaque aos traços herdados da combinação de genes paternais.

Porém, o que parece pesar para ele e que foi desvalorizado pelo seu interlocutor é a nobreza de seu caráter, a beleza da alma: “Demais, a emanação da minha pessoa, os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude, de timidez e bondade...Por que seria então, Meu Deus?” (BARRETO, 1984, p. 26). Trata-se de pergunta que não espera ser respondida.

Além dessa, parece-nos importante observar que as outras cenas de preconceito protagonizadas parecem funcionar como contraponto à imagem que como diz o próprio narrador era artificial e blindada pelo meio familiar. Também pode ser considerado mote para desvelar que tal atitude está enraizada em diversos segmentos sociais. É assim que podemos entender a mudança de tratamento e o desprezo velado que recebe do deputado Castro, representante do poder legislativo, funcionando como signo da política de favores e proteção que não foi estendida ao mulato Isaías Caminha. Já no caso em que ele sofre o grande golpe de ter lhe sido preterida vaga para serviço subalterno de entregador de pão, mostra que para tal atividade comercial a aparência substitui outros predicados.

Adentrando a esfera do poder judiciário temos a cena do roubo no hotel em que Isaías se hospedava, quando ele, sem motivo aparente, torna-se suspeito do delito.

Já na delegacia recebe do inspetor Viveiros, mais uma desfeita, pois sem sabê-lo presente refere-se a Isaías como “mulatinho”. Também no interrogatório feito pelo delegado, fica nítida a impressão de que a aparência física de Isaías é o seu “cartão de visitas”. Se, na cena do deputado e do padeiro, Isaías limitou-se ao repúdio dentro de limites, no caso da delegacia temos o ápice de sua indignação. Desta vez, responde a uma figura que segundo ele não poderia ter agido de tal forma. Contudo a força da lei o levou à prisão e ao momento máximo das humilhações.

Com este episódio, chegamos ao ápice da narrativa em que na superfície do texto afloram vozes sobrepostas. Nesse ponto, surge dentro do romance autobiográfico opresente do narrador quando este já casado e, trabalhando como escrivão, mira o seu passado. Assim, a voz de Isaías jovem se entrecruza com a fala do escrivão e do próprio Lima Barreto que escancara seu projeto literário. Isto porque, ao cruzar as vozes e tempo da narrativa, o escritor não só traça a posição do personagem, como em metonímia traz sua própria situação de escritor preterido pela ortodoxa academia. Na voz do Isaías adulto, já no final de sua trajetória de vida, a situação enunciada desvela um reencontro com o passado e além de reacender sua revolta resume o conflito central projetado ao longo da narrativa. O cerne do embate reside no encontro do narrador com os estigmas sociais, gerando uma espécie de jogo entre a essência e a aparência. Após diversas humilhações em silêncio e punido por reagir apenas uma vez, o narrador consciente de sua situação social, parece absorver o discurso preconceituoso, ressignificando os valores que fertilizaram em sua infância:

Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto (mulatinho) daqueles feria como uma bofetada. (BARRETO, 1984, p. 51).

Também aqui temos o divisor de águas entre um personagem que, idealizando o mundo a partir das promessas que sua distinção intelectual havia projetado, descobre-se cercado por uma sociedade preconceituosa que ignora suas qualidades como homem e intelectual. Depois da ênfase às cenas em que sofrera preconceito, o narrador descreverá como conseguiu sobreviver na redação do jornal. Assim, ele observa os pseudointelectuais da época, concentrando seu foco nos homens de imprensa que naquele período possuíam papel importante no destino político da nação. Vale frisar que, antes até de se conformar com posição subalterna e aguardar oportunidade fortuita que viera com a morte do Floc, temos a passagem de um Isaías “jovem” ingênuo e cheio de fé na sua essência de intelectual à procura do lugar para desenvolvê-las, para um “adulto” já modificado pelas condições de vida: “Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído de meus sonhos, sujo imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. (BARRETO, 1984, p. 51) (grifo nosso). Essas alterações no seu caráter, como se percebe, custaram-lhe a dor de se ver amputado do merecimento que sua formação intelectual lhe concederia, sem ter que adequar-se à posição “naturalmente” subalterna por detrás da falaciosa “democracia racial”1 (FERNANDES: 1978) que lhe foi desvelada, e, que o livro, mais do que ficção, testemunha a dolorida derrota do personagem Isaías, espécie de sombra, alter ego de Lima Barreto.

A partir dessa posição por sobre os ombros do narrador personagem, temos a saída de cena do “ser de ficção” para entrada do “ser escritor” que contaminado pelas recordações das dores passadas, reflete sobre a validade de sua escrita, reforçando seu projeto de torná-la comunicativa e profundamente verdadeira pelo processo de “escrevivência” assumido pelo próprio Lima Barreto no interior do romance. Destacamos como sinal deste escrever a vida, o início do capítulo VI, pós a passagem pela prisão, quando o personagem abandona o narrar para falar no presente do narrador, sobre o mal causado pelo exercício de recordar as passagens mais doloridas de sua vida. Por traz do narrador, temos o escritor num exercício de metalinguagem colocado na posição de leitor privilegiado do próprio livro. Para Isaías Caminha, a motivação do seu “escreviver” está mais no plano dos significados que nos significantes: “Talvez mesmo seja angústia de escritor, por que cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é sua utilidade para o fim que almejo” (BARRETO, 1984, p. 56).

Se, de um lado, esses trechos destacados denunciam o tom autobiográfico, considerado por muitos críticos defeito do livro ao fugir do terreno ficcional e cair no desabafo de escritor que pouco se esconde atrás do personagem de ficção, de outro, o embaralhamento entre realidade e ficção, declaradamente em alguns trechos do romance, insere-se no projeto de Lima Barreto de que ser intelectual é falar por e para um segmento social. E se esse ideal foi frustrado na realidade, a ficção serve de alento, já que o diálogo com os contemporâneos e os demais leitores é ressignificado a cada novo contato com a obra. Assim, a despeito da crítica de homens como José Veríssimo que entendem ser Lima Barreto demais personalista, o escritor mulato parece imputar à literatura algo mais do que simples fruição.

Depois dessas incursões do narrador personagem pelo terreno da meta ficção, temos a continuação da narrativa. O fato curioso a se frisar é o papel destinado ao jornalista Gregorovitch, estrangeiro, homem viajado e signo da cultura híbrida, que funciona como padrinho do jovem mulato quando este entra de contínuo no jornal O Globo. Podemos extrair dessa situação dois pontos: o primeiro é que Isaías só conseguiu ajuda de um homem que teoricamente vê de fora o contexto em que ele e o mulato estão inseridos. O segundo ponto é a possibilidade que se abre para o narrador realizar o sonho de se aproximar de figuras que ele ideologicamente admirava. Assim, por entre sua posição ambígua de proximidade e distanciamento, descreve o universo artificial dos jornalistas que se estende de forma caricata à intelectualidade carioca na virada do século XX.

Devemos sobrepor que a inserção de Isaías na lógica da sociedade que camufla a segregação e torna-se cínica no trato com as diferenças raciais, fez-se visível pelas circunstâncias que cercaram a “ascensão” deste no jornal. Isto porque sua projeção social não acontece pela aceitação de seus dotes intelectuais, mas pelo seu envolvimento num caso fortuito de suicídio com a descoberta dos pecados orgíacos do patrão. Este, sabendo ser o simples funcionário guardião do segredo, o envolve no jogo da compra do silêncio por promoção no jornal. O caso nestas circunstâncias acaba sendo construído pelo signo da ambiguidade que, de um lado, pode apontar para a quebra do heroísmo de Isaías, sua fraqueza e adesão ao jogo dos favores que tanto ele combatia. Por outro lado, também pode funcionar, pensando no conjunto da narrativa, como única saída ou busca se adequar a situações que ilustram esvaziamento de palavras como: “igualdade”, “democracia”, “liberdade” e “justiça”, num contexto republicano e pós-abolição.

Assim, tanto para Isaías dentro do seu contexto ficcional, como para o escritor Lima Barreto, as bases de uma sociedade escravista, preconceituosa e excludenteparecem não ter saído do poder com a descida da Monarquia e a ascensão da República. Destaca-se também que essa visão da sociedade não provém de contra discurso oficial vazio de verdade, pois o livro exala, desde suas primeiras linhas, análise in loco da posição do mulato como personagem e escritor protagonistas da experiência também ambígua de aceitação e combate das estruturas sociais. Isto se dá pelo ponto de vista do “homem de cor” vítima e herói, no caso de Isaías. Para Lima Barreto, ressalta-se a audácia de colocar o mulato protagonista em contexto tão adverso.

3. Raimundo e Isaías: mulatos.

Ademais da diferença de quase três décadas e importantes mudanças no contexto político-econômico que separam as obras O mulato e Recordações do escrivão Isaías Caminha, outros aspectos relacionados diretamente com a posição dos protagonistas e o projeto político-ideológico de cada autor, trazem fraturas consideráveis que sobressaem tanto na superfície do texto como nas estruturas que sustentam ambos os discursos.

Antes de nos determos em tais diferenças, é importante ressaltar alguns aspectos na construção dos personagens que aproximariam as duas obras. Primeiro e mais saliente é a posição dos mulatos que, embora em graus diferentes, são protagonistas nos dois romances. Para Raimundo, o título do livro já indica tanto seu papel saliente como da própria temática. Embora a narrativa seja em terceira pessoa e ele divida espaço com outros personagens a sua volta, o mote do romance é demonstrar o racismo incrustado nas bases da sociedade. Já no caso de Isaías, temos não só o personagem mulato como protagonista, mas também função nobre de escritor em texto autobiográfico. Esse aspecto traz ao romance o tom de aproximação entre fato narrado e personagem que ultrapassa a narrativa resvalando no biografismo.

Outro aspecto, também aproximativo, é o foco no tema do preconceito racial que envolve os “homens de cor”. Ainda que com propósitos, pontos de vista e projetos distintos em ambos os textos, o leitor não pode sair impune das reflexões expostas e sugeridas ao longo das narrativas. Seja como expectador privilegiado dos embates e fim trágico que envolve a trajetória de Raimundo, seja como estranho que se torna íntimo e confessor do personagem que se sente desnudo em frente ao leitor, no caso de Isaías, quem lê é convidado a participar do feitio das obras.

Após essas considerações dos aspectos que unem as duas obras, importa cotejar alguns pontos que, inseridos na especificidade de cada narrativa, apontam para tratamentos diferentes na construção dos personagens que protagonizam os respectivos romances. Como tentamos demonstrar nos comentários anteriores, o que significativamente coloca as obras em perspectivas diferenciadas é a posição de cada autor diante do tema tratado, tendo como mote a figura do mulato. Na obra de Aluísio Azevedo, em que pese seu contexto social de escravidão, o personagem Raimundo, com algum grau de inverossimilhança, se encarrega de sustentar duas “máximas” que se situam paralelamente. Primeiro, de que a hibridez que envolve o “homem de cor” está relacionada com a positividade dessa mistura de raças, especialmente quando tende ao “branqueamento” do homem pardo, tanto nos traços físicos como na sua conduta de sujeito apto para a europeização. Como nos aponta Heloísa Toller Gomes, esse aspecto do personagem mulato se aproxima à ideia de louvor da miscigenação que foi utilizada para interesses etnocêntricos que pregavamesse hibridismo como solução para o problema racial no país, dentro de uma teoria do branqueamento (GOMES, 1994). Em segundo lugar, temos essa mesma ideia sendo combatida com a defesa do puritanismo racial ecoando na obra pela voz da personagem Maria Bárbara, caricatura do conservadorismo de raiz escravista, que resume sua posição preconceituosa quando diz não querer seu descendente “coçando a orelha com o pé” (AZEVEDO, 1977, p 163.). Além dessa voz, temos as atitudes de Cônego que arquiteta o assassinato e extinção de Raimundo, signo da mestiçagem.

Essas posições em tenso conflito, a simbólica vitória final do purismo com a morte de Raimundo e o aborto espontâneo de Ana Rosa, parecem aproximar essa obra ao que Heloisa Toller sinaliza como vertente da “literatura de escravidão”. Por esse viés, podemos dizer que o romance de Aluísio Azevedo se insere no conjunto dos textos de tese que abordam discursos racialistas. Esse desconcerto dentro da obra retrata o que a estudiosa entende como premissa de alguns romances oitocentistas que abordam questões raciais, pois:

A leitura desse discurso literário evidencia as ambigüidades do pensamento oitocentista: os próprios ideólogos e advogados do movimento emancipador insistiam na reprodução de imagens estereotipadas, disseminando noções tão discriminatórias e hierárquicas do negro quanto as dos próprios escravocratas (GO MES, 1994, p. 142).

Outra máxima que reforça a tese apresentada relaciona-se com os preceitos naturalistas que promoviam a supremacia dos fatores externos e inatos no destino dos sujeitos. Por esse foco, também pode ser vislumbrada a derrota de Raimundo com seus estéreis esforços de livrar-se das prerrogativas raciais que o levariam a um final trágico. Esse personagem, carregado pelo estigma de mulato, justifica que para estes a vida está previamente desenhada no papel subalterno. Quando Raimundo pensa-se livre com destino nas mãos, sofre duro golpe de Luís Dias, extensão de uma sociedade que se sente legitimada a manter raízes da segregação racial.

Já na obra de Lima Barreto, Isaías parece percorrer, até certo ponto, o caminho inverso de Raimundo. Filho de mulata com um padre que não o pode assumir oficialmente, parte de ilusório pressuposto que a natural inteligência subsidiará seus sonhos dependendo apenas de sua vontade e dedicação. No entanto, desde cedo descobre que terá outros obstáculos, especialmente pela sua condição de mulato, fato este que não participava de suas expectativas. Assim, sua trajetória é de vontade (quer ser doutor), queda brusca que o leva as portas do desespero, seguida de leve ascensão e estabilidade, porém muito aquém de seus projetos iniciais.

Esse rascunho do enredo serve para fazermos contraponto ao que acontece com Raimundo, pois este parte de concreta ascensão social (é bacharel em direito), e tem a trajetória marcada pela deterioração das conquistas quando não é reconhecido por sua posição intelectual. Desse modo, por um lado temos a narrativa do mulato física e culturalmente “embranquecido” que é rejeitado pela sociedade escravocrata maranhense e, por outro, um mulato com sonhos de ser doutor que parece ter, de alguma forma, aderido à lógica da sociedade, tendo sua vida feita espelho do racismo enraizado nos diversos setores da sociedade carioca.

Nestes termos, podemos dizer que enquanto o mulato de Aluísio Azevedo se insere no pensamento racial do Brasil oitocentista, como aponta Heloísa Toller, Isaías Caminha, que espelha a posição do próprio autor, Lima Barreto, funciona como personagem a combater estigmas que envolvem a figura do mulato, desmascarando uma sociedade cujas bases continuam fortalecidas pelo passado escravista que ressoa em forte segregação racial.

Referências:

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1977.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo:Ática, 1984.

CESAR. Guilhermino. Atualidade de Aluísio Azevedo. In. AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1977.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3 ed. São Paulo: Ática, 1978.

GOMES, Heloísa Toller. As marcas da escravidão: o negro e o discurso oitocentista no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/EDUERJ, 1994.

OLIVEIRA, Ana Maria. A questão racial na obra “O mulato” de Aluísio Azevedo. 2008, 69 p. Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do Maranhão.

PRADO, Antonio Arnoni. Lima B arreto: o crítico e a crise. São Paulo: Duas Cidades, 1989.

QUEIRÓZ JÚNIOR, Teófilo. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1975, reimpressão 1982.

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.

1 Em seu livro: A Integração do Negro na Sociedade de Classes Florestan Fernandes, no cap. O mito da “democracia racial” discorre sobre a relação entre “brancos” e “negros” e a camuflada perpetuação do preconceito racial sob o discurso de uma pacífica reorganização da sociedade pós-escravidão, indicando, portanto, que de tal fenômeno derivariam as bases do processo de “democracia racial” no Brasil.

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