Juventude negra, periferia e poesia nos blogues:
Alter-cenas da novíssima literatura baiana contemporânea

Lívia Natália Santos1

Resumo: Este trabalho dedica-se a discutir as representações e a autogestão da identidade por jovens negros de periferia através da escrita de textos poéticos em blogues. A idéia que guia a discussão é refletir como a juventude negra, no caso aqui estudado jovens universitários e pesquisadores, ativa leituras da sua condição potencializando o seu olhar fronteiriço entre a periferia e o centro e analisar quais são as propostas estéticas são acionadas em sua escrita.

Palavras-chave: Juventude afrodescendente, autogestão das identidades, blogues.

No corpo acidentado das grandes cidades proliferam-se, alucinantes, as úlceras multicoloridas e polifônicas das favelas, assim chamadas desde meados século XX. Elas servem para nos comprovar que a anatomia das metrópoles é não apenas delimitada pelas suas bordas comumente rasgadas por uma arquitetura desarmônica, mas também se destacam, na sua pele clara de edifícios, a superveniência das diferenças, as marcas de uma cidade outra, longe das ruas planificadas, asfaltadas e numeradas, uma altercidade tecida, entretanto, na mesma malha, com os mesmos fios. As favelas, sublimadas de seu pretenso pendor para a violência, foram poetizadas pelo cancioneiro popular brasileiro2 que de dedicou a cantar a beleza das mulatas lavadeiras; a estreitezas e irregularidades geométricas das ruas e vielas; projeção de uma infância difícil, marcada pelo trabalho infantil3 mas, acima de tudo, belas e, claro, a cadência do samba alegorizada no corpo negro vestido de banco do malandro.

Na verdade, podemos pensar que o silenciamento das cenas de violência e limitações sócio-culturais inúmeras presentes nas músicas sobre estas comunidades quase que corresponde a um adestramento das várias potências de violência e reação: através do alimento de uma imagem poeticamente apaziguada e feliz da pobreza como bandeira de uma vida mais bela que aquela que se leva no asfalto; foi um potente instrumento dos poderes opressores que esperavam, como resposta, a introjeção deste estereótipo e o conseqüente reforço das fronteiras entre centro e periferia. A favela sempre foi pensada como um lugar onde a vida seria mais humana, no qual a beleza, metaforizada na natureza e no caráter necessariamente cordeiro do homem, seria encontrada em coisas simples e onde as pessoas partilham os sofrimentos numa comunhão profunda, inalcançável para os homens do asfalto.

Não nos bastasse esta representação recuperar a imagem do favelado como o bom selvagem de Rousseau (1978), retirando dele qualquer potência contestação ou reatividade, ela reforça padrões de submissão através da louvação ao trabalho doméstico, à vivência resignada das dificuldades várias e, principalmente, pela manutenção das violências permitidas primordialmente no que tange à problemática imagem da “mulher de malandro”4 e ao elemento da bebida alcoólica como sendo um elemento inerente à vida neste contexto. Além deste primeiro estereótipo, a equação homem da favela x homem do asfalto recupera, guardadas as devidas proporções, a arquetípica oposição entre o homem do sertão e o do litoral, de Euclides da Cunha (1902), de modo a atribuir ao “favelado” não apenas a necessidade, mas a capacidade de ser mais forte, não obstante a indolência e a inapetência para o desafio da vida experimentados pelo morador dos edifícios.

Nesta cena, a fundação das escolas de samba, na primeira metade do século XX, coincide com a data aproximada das primeiras favelas pensadas enquanto tal, conforme contextualiza Alba Zaluar (2004) e a estreita convivência entre as favelas e o samba, mediada pela imagem ambivalente do malandro, perdurou bastante, certamente durante todo o século XX. Este malandro enquanto modelo de uma gramática do modus vivendi nos múltiplos espaços do alto e do baixo, do puro e do impuro, do excesso e do minimalismo finda por abrigar-se num não lugar que, a um tempo, isola-o do ter e poder dos homens do asfalto mas também não o aproxima da vivência dos trabalhadores do morro.

A malandragem demonstra assim a sua limitação, uma vez que este sujeito, que se lê e se narra como o esperto é compreendido como um elemento que deve ser colocado em suspenso pelos demais: para os do morro e os do asfalto ele é um risível simulacro de um entre-lugar impossível.

Esta figura problemática e, no entanto, negociadora das diferenças, foi substituída, com relativa rapidez e muita intensidade, por uma personagem menos generosa com os espaços e, primordialmente, indisponível para ocupar o parco indecidível das fronteiras. O marginal, que nasce junto com o adensamento da violência, é marcado por um reconhecimento das diferenças e o estatuto rebaixado daqueles que há não vivem mais nem nas favelas nem tampouco nas “comunidades carentes”, mas sim nas periferias. Este sujeito sublinha a dimensão política do ser, estar e viver no espaço periférico com a força das armas e da reivindicação violenta da inserção na cena dignificadora dos que podem ter.

A leitura enviesada do consumo como forma de mediação da representação de si e de inserção social calcada na criminalidade e no tráfico de entorpecentes, nasce com a fundação de grandes frentes organizadas de marginais, como o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro e com a falência das escolas públicas – ensejada pela Ditadura Militar brasileira – assim como pelo incremento da violência autorizada da polícia como braço armado da nação. Filhos abandonados dos malandros, estes marginais estão fechados à negociação.

Instaura-se, a partir de então, a impossibilidade de poetizar. A classe média descobre a face violenta da favela, os afastamentos se reforçam e os estereótipos – atravessados, deixe-se claro, pelas questões derivadas dos preconceitos raciais – se firmam poderosos. A compreensão das ilações inescapáveis entre o morro e todo o resto da cidade não foi alcançada com competência pelos governos, o condicionamento destas pessoas no isolamento reforçado pela limitação de acesso a bens simbólicos e redução do valor cultural das produções simbólicas emergidas dos morros produziu um pseudo vazio perigoso, guiado pela cegueira e desinteresse, e preenchido pela violência que suplantou, por muito tempo, o perfil social da maioria dos habitantes das favelas que são da categoria dos “trabalhadores”, estatuto profundamente valorizado pelos moradores como forma de dignificar a sua inserção naquele contexto e apartá-los dos marginais que, excessivamente próximos, são muitas vezes vizinhos, conhecidos e parentes.

No entanto, os conceitos se atualizam e as pessoas descobrem caminhos muito potentes de subversão das representações estereotípicas. Os movimentos capitaneados pela reivindicação das minorias, tônica que atravessou toda a segunda metade do século XX no resto do mundo Ocidental, aportou no Brasil através da revisitação de conceitos e da apropriação de espaços de enunciação. Os discursos de exigência das representações das minorias atravessam vários campos de representação e têm, historicamente, nas lutas das mulheres, o modelo de construção de pauta e de métodos de inscrição forçosa dos silenciados no discurso que tentou apagá-los. Segundo Florentina Silva Souza existe, na emergência dos discursos etncorracialmente marcados:

O discurso de uma geração de escritores negros, nascidos, em sua maioria, por volta dos anos de 1950 e composta de estudantes que militaram ou eram próximos aos partidos e aos movimentos de esquerda e de entidades negras, no fim da década de setenta. Desde então, os escritores organizam-se com o objetivo de tornarem audíveis suas vozes de crítica e de protesto, contra os modelos de representação e de tessitura das relações sociais no Brasil.(SOUZA, 2005)

Tendo como espaço privilegiado de enunciação as cartilhas de associação de trabalhadores, que levavam em conta a possibilidade de articular poesia e pão, os Jornais do Movimento Negro Unificado (1986) e os Cadernos Negros (1978) a formação da autoimagem dos homens e mulheres das favelas emancipa-se, inclusive, da nomeação a-política e de história excessivamente marcada de “favela” em favor da noção de “periferia”. Ao acionar a força simbólica de um simulacro deleuziano (1998), a periferia questiona não apenas o seu lugar de margem, mas a preponderância política, cultural e social do centro. Neste ensejo, as antigas representações de malando e de marginais são repensadas, revisitadas e a condição de marginalidade encontra a sua potência outra, feita de armas das quais não emanam fogo, mas palavras, sons e arte.

Poluindo o espaço das grandes cidades com os grafites e instaurando, na lógica dos corpos adestrados, a vestimenta como discurso, os sujeitos advindos da periferia inserem-se no centro, reivindicando o arrombamento das fronteiras e a abertura de frentes de acesso e vias de diálogo.

Este movimento dialoga diretamente com os questionamentos que buscam abalar as noções mais tradicionais de história, fazendo emergir a consciência do artifício (no sentido mesmo de jogo, simulações, ficcionalizações, presentes em toda narrativa oficial). Desta forma, rasuram-se os lugares de poder consolidados pelos discursos hegemônicos, possibilitando o empoderamento de sujeitos e grupos que estão à margem das representações identitárias e culturais legitimadas socialmente.

Referimo-nos à quase compulsória abertura das margens e limites das ciências e lugares outros de construção de saber e poder, realizada pela pós-modernidade (HUYSSEN, 1992) e pós-estruturalismo (DERRIDA, 2002) provocando fissuras nas quais puderam e podem se inscrever alteridades históricas antes inauditas.

Neste contexto em que se oportunizam revisão, ruptura e reconfiguração dos espaços ideológicos tradicionalmente ocupados pelos sujeitos, abre-se também espaço para o questionamento dos valores e padrões de normalidade e autoridade sobre os quais se ergueu a sociedade moderna, instando, como demanda inescapável, a necessidade de deslocamento do antigo padrão do narrador da história oficial, a saber: homem, branco, europeu, heterossexual e cristão-católico.

Este movimento denota não apenas o questionamento deste centramento, apontando a precariedade (e desinteresse) de sua capacidade de alcance das diferenças, mas a inscrição de outras formas e expressões de discursos daquelas que, a partir de então, seriam reconhecidas como minorias. Aqui se encaixam todos aqueles que estavam alijados do perfil privilegiado de narrador, articulando, pela oposição a cada um de seus traços, um sentido político no empoderamento e na assunção de um lugar de fala pelas mulheres; não-brancos; não-europeus (e, mais contemporaneamente os não-norte-americanos); homossexuais e as generificações a ele relacionadas e pelos não-católicos-cristãos.

Ao assumir um lugar de fala, as minorias, além de denunciar um silenciamento sistemático a elas imposto, reivindicam (e ocupam) um espaço de auto-representação e gestão pessoalizada de sua imagem social, rechaçando estereótipos antes lidos, pela via da naturalização, como sendo um traço genuinamente seu. Neste momento, o que se opera é uma reescrita da história, sublinhando a questão de que esta tem sempre não apenas duas versões: a dos vencedores e a dos vencidos, mas conjuga inúmeras possibilidades de narração, abarcando aqueles que estavam alienados da luta ou, até, aqueles que ainda não se encontraram livres dos confrontos.

Destas, interessa-nos, a auto-gestão das representações sociais por parte dos jovens afro-descendentes moradores de periferia. Em sendo este o objeto de nossa análise, nosso investimento passa a ser buscar compreender como a juventude negra5  ao utilizar elementos vários de representação de si, com destaque para os blogues, converte os meros produtos comunicativos em instrumentos eficientes de mediação etnicoracial e cultural. Aqui destaca-se o nosso interesse em compreender uma nova forma de ação da intelectualidade, assim como o espaço peculiar de seu exercício e emergência, a saber: a juventude de periferia.

Ao afirmar que a juventude Latino-Americana não se pensa como fututo, Canclini nos chama a atenção para a impossibilidade de um amanhã capitaneado pelas jovens mentes uma vez que se aponta um esvaziamento do uso político dos bens de consumo e dos espaços de enunciação, segundo ele:

Después de las consecuencias poco celebrables que tuvo la (necesaria) caída del muro de Berlín, después de las guerras insensatas y perdidas em Afganistán e Irak,o de los efectos contradictorios que muestran los tratados de libre comercio ¿quién podría decir a los jóvenes que son el futuro, como quien afirma que lo mejor está por venir? (CANCLINI, 2005)

A fragilidade do jovem como futuro, contrariamente ao apontado no texto de Canclini, não nos deve conduzir ao desamparo e ao vazio. Numa outra lógica, a encarnação destes sujeitos na tomada do espaço de poder no presente, reivindicando o agora e garantindo-o como posse sua nos seus discursos talha, primordialmente para o jovem negro de periferia, um enquadramento num espaço intelectual singular, não mais apenas orgânico, mas principalmente comprometido com o momento presente em que ele está encarnado uma vez que este sim poderá ensejar algum futuro:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar...para dizer a muda verdade de todos; é antes de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é , ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. (FOUCAULT, 1979)

Emancipando-se do conceito de “malandro carioca” e ampliando o próprio conceito de pobreza e espaço periférico, várias cidades brasileiras receberam, a partir dos anos 70 e 80 do século XX, influxos poderosos de forças juvenis na luta por espaços dignos de representação e ação. Desde a classe média urbana de Brasília, nascedouro de importantes bandas de rock, ao movimento Mangue Beat de Recife, passando pelos Blocos Afro de Salvador e chegando às periferias de São Paulo, já imersa na lógica do movimento Hip-hop a marca de uma juventude distinta daquela que vivenciou a ditadura militar estava instaurada. Referindo-se à juventude do Brasil entre as décadas de 70 e 80, Silviano Santiago irá afirmar:

A transição deste século para o seu “fim” se define pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança dos fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra, arrombando a porta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. Ao luto dos que saem opõe-se o vazio a ser povoado pelos atos e palavras dos que estão entrando. (SANTIAGO, 1998).

Certa dose de melancolia que marca o discurso de Santiago, no que diz respeito aos jovens que irão suceder à geração que lutou contra a ditadura militar se explica pela sensação de “vazio cultural” que o crítico tenta compreender como a sinalização de novos tempos na arte brasileira, produzida por uma geração “autoreferenciada” num “universo autoreferenciável”. Nestes contexto, as lutas e a própria estética enquanto projeto político são abandonadas em favor da demarcação das necessidades individuais e a poesia é um campo da arte que viverá esta mudança em suas dobras:

O poema se desnuda dos seus valores intrínsecos para se tornar um mediador cultural, encorajando o leitor a negociar, durante o processo de interiorização do texto, a própria identidade com o autor. O poeta marginal é um “perigoso desviante”. (SANTIAGO, 1998)

Não obstante a possibilidade de aplicação das reflexões de Silviano Santiago ao contexto aqui discutido, ainda não é da marginalidade que nos interessa que seu discurso fala. Ele se refere antes à classe média e sua literatura de mimeógrafo que, capitaneada por Cacaso, Ana Cristina César e Waly Salomão, dentre outros, devassaram as formas de escrita e de relação com a palavra poética através de um movimento chamado literatura marginal. Esta primeira leva de marginais de classe média trouxe um tônus muito potente e uma abertura interessante para a malha poética e, não apenas no sentido estético, mas político também, vez que trouxeram para a cena questões que correspondem às demandas de representação ainda hoje atuais como as da homossexualidade e de gênero.

Estes poetas, de alguma forma, serviram de ponta de lança para a articulação de um fazer poético e político que iria surgir depois. No entanto, não podemos deixar de notar que há uma imensa distância entre os perfis – desde o fenotípico ao estético – e projetos das gerações que podem ser nomeadas de marginais. Faltou à primeira não apenas o interesse pelas questões relativas àqueles que, naquele contexto, ainda eram os favelados mas, mais que isto, era-lhes impossível uma dedicação sistemática às questões emergidas destas populações uma vez que não fazia parte de seu campo de reflexões poéticas.

Apenas o final da década de 80 que o estreitamento das relações entre as várias periferias e o sistemático questionamento das fronteiras raciais e econômicas articulados pelos sindicatos de categorias e, de maneira mais sistemática, pelo Movimento Negro irá disseminar a necessidade de inscrição nos espaços privilegiados de interlocução. O discurso da beleza da negritude, do direito de acesso à cultura letrada e ao conhecimento escolar assim como a abertura da possibilidade de acesso à universidade coadunará, nas várias frentes de resistência, aquilo que podemos chamar de eclosão das demandas da diferença. Estes homens e mulheres, antenados com as informações que circulavam sobre as conquistas das lutas de minorias, tomaram para si a função de questionar e ocupar os lugares de resistência, demonstrando uma potência de se sobrelevar para além de um passado subalternizado, utilizando-se dele como eficiente combustível para as lutas. Entra em cena a força plástica:

...seria preciso saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as formas perdidas. (NIETZSCHE, 2003).

O movimento de Literatura Marginal se alimenta em várias frentes, com destaque para o seu profícuo diálogo com a música em todos os espaços que ocupou. Alguns nomes elementares podem ser aqui citados, não sem risco de esquecer algum não menos importante. Pessoas como Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Lélia Gonzales, Esmeralda Ribeiro, Cuti, Landê Onawale, Ferrez, Sacolinha e Sérgio Vaz, para citar apenas alguns de missões e gerações diferentes.

Na poesia do sudeste do País concentra-se boa parte da produção e um grande ensejo de circulação e disseminação destes textos, não é por acaso que será em São Paulo, em 2007, acontecerá a “Semana de arte moderna da periferia” que, com o slogan de “Antropofagia periférica” e capitaneada por Sérgio Vaz anuncia que numa periferia unida pelo amor, pela cor e pela dor nascerá “a literatura unida no centro de todas as coisas”.

A arte como elemento coadunador de forças e mobilizador de ações também foi essencial para que, na Bahia, a resistência se fizesse por outros caminhos, primordialmente através da afirmação do valor da negritude, da força e da beleza dos homens e mulheres afrodescendentes construída pelos blocos afros a exemplo do Ilê Aiye, Araketo e Olodum. Os concursos de música afro, de onde saíram hinos que ainda hoje são cantados no carnaval, potencializaram, na cena da festa branca, a capacidade da arte de inscrever corpos antes pensados como inadequados ou inviáveis. Como disseminadores e agitadores desta cena cultural, surgem poetas Jônatas Conceição, Jaime Sodré e José Carlos Limeira. Estes escritores ao colocar na cena da escrita a vivência dos afrodescendentes nas periferias da Bahia respondem a uma demanda que atravessara todo o Brasil e abrem caminho para os poemas do porvir.

A cena na qual se insere a escrita de jovens afrodescendentes de periferia é ampla e se amplia ainda mais se redimensionamos a noção de escrita. Caso pensemos nas várias formas de escritas de si (FOUCAULT, 1983) enxergaremos estas escritas nas roupas, cabelos, coreografias, nas gírias, grafittes de rua, no break dance, enfim, nos corpos performáticos destes sujeitos. No entanto, vamos nos concentrar aqui sobre a escrita de poesias no contexto dos blogues e sites pessoais.

Tomarei aqui como exemplos desta escrita dois estudantes de letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Meu corpus de análise é circunscrito pelo parco material para análise, fato decorrente do pouco tempo de circulação dos textos e servirá, no contexto da reflexão aqui proposta, como uma amostra ou um ensaio para que, no futuro, engendre-se um estudo mais verticalizado do tema. A limitação do material não deve ser lida de maneira inocente. Ela se enseja numa cena que diz respeito à dificuldade de acesso aos bens materiais que, muitas vezes, irá cercear e mesmo inviabilizar a produção de certos bens simbólicos. Estamos certos de que é imenso o número de jovens poetas que moram em periferias e escrevem com determinada regularidade, no entanto, a possibilidade de criar a sustentar um espaço virtual, como o blogue, muitas vezes apresentará um desafio menos pelas noções de informática básica, necessárias para tal empreitada, que por conta da impossibilidade de acesso e uso, ainda que em lan houses, do computador.

O primeiro dos poetas a ser estudado aqui é o Francisco Flores que, em sua apresentação no blogue define-se articulando dois espaços de exercício das formas de poder/saber: ele é estudante de Letras Vernáculas na UFBA e “Militante do Movimento Negro Estudantil (MOJUBÁ- Núcleo De Estudantes Cotistas da UFBA)”.

Estes dois enquadramentos ligados com imediata referência localizam este sujeito na fronteira, entre a periferia e o centro, aqui representado pela Universidade. Ao escolher um curso historicamente freqüentado por uma classe média economicamente remediada, o estudante cotista Francisco Flores insere-se na paisagem como um elemento que deve ser notado, que pensa e devora, com as palavras poéticas, o indigesto. No “quem sou eu”, pergunta banal, mas, ao mesmo tempo, profundamente essencialista e perigosa estampada no template de seu blogue, Flores provoca:

Um homem perdido nesse louco mundo cão que acredita fielmente na força das palavras e vê na poesia a forma mais nobre de lutar, mas não uma nobreza Européia, hipócrita por natureza e sim uma nobreza áfricana [sic]6 , ressistênte, perssistênte que não dessiste de lutar nunca! Trago uma poesia marcada, atravessada por uma ancestralidade negra, uma poesia aformática que não valsa e sim samba! Poesia que vem do gueto, marginal? Marginalizada? Depende do você leitor que ao entrar em contato com essa poesia irá decidir. Mas certamente perceberá que a favela está gritando, sangrando e os meus simples e negros versos só retranta a nossa realidade, porém de... dentro. (FLORES, 2010).

A sua identificação no site é uma teorização muito forte do que é a poesia de periferia e do que é a poesia contemporânea. A desconfiança em relação à capacidade de representação das palavras dá conta de uma ruptura da possibilidade aristotélica de poder a arte representar qualquer coisa, inclusive o mundo imaginário-subjetivo. As palavras não darão conta do que se buscará apresentar, mas trazem uma nobreza africana da qual não se abrirá mão. A poesia “aformática” renega os modelos europeizados de escrita e, inadequada, não valsa, samba e, neste contexto, surge um lugar de fala absolutamente comprometido com um querer dizer de uma favela que está gritando e que será ali representada de dentro. Esta afirmação dialoga com as representações problemáticas de favela discutidas no início deste trabalho. Estas encontraram no cinema brasileiro recente espaço de preferência de apresentação, no entanto, os estereótipos se reencenam e o conhecimento desta realidade se dá necessariamente mediado pelo olhar que, aqui, nos parece cabível chamar de externo.

O poema que abre o Blogue, datado de setembro de 2010 raízes e evocando a sua ancestralidade africana, Flores determina quais serão as suas armas:

Resistência, revolta, luta

Habilidade para mudar

Guerreiros ancestrais

Estão comigo quando pego

A caneta para lutar.

Em Resíduo que pode ser lido, a princípio, como um diálogo com o Resíduo no qual “de tudo ficou um pouco”, de Drummond, mas o poema investe numa outra leitura da memória da infância:

Há que tempo bom!

Mas de repente algo aconteceu

a ingenuidade se perdeu

e só ficou o medo

Medo de cair das árvores, de ser

Atingido pelas balas de sal, de ser capturado

Por Magari. Mas se de tudo fica um pouco

Por que só o medo?

A representação da infância e da vida adulta atravessada pelo medo e pelo espanto já acostumado ante à realidade dos becos e vielas das periferias irão marcar a escrita de Flores e determinar a ação e função de seu poema neste contexto:

Não pintarei um mundo perfeito

Escreverei apenas a verdade.

Não narrarei a belaza dos lirios do campo,

Apenas os rios de sangue invisivéis

Aos seus olhos

Mostrarei a alegria do trabalhador

Ao ver seu filho com fome.

Cantarei a felicidade da PUTA!

Que vendo o prazer

Por apenas, Dez Reais

Jogarei no seus olhos a linda

Imagem da criança cheirando

Cola, na inocente tentativa

De enganar a fome.

Encontrarei inimogos, serei

Inconpreendido pelos amigos,

Mas não desentirei

Vou descarregar a metralhadora

De palavras, se vou agradar

Não sei, o que é isso também

Não sei. Dom... Talvez

O blogue Flecha Cortante de Uilians Souza existe desde 2009, seu autor escreve neste espaço poesias e crônicas das mais variadas, no entanto, é no texto de um poema que emerge a perfil estético de seu texto:

Uma poesia que pega ônibus

e pula janela

poesia que mergulha embaixo do torniquete

pula a borboleta

e pega traseira por falta de transporte

Uma poesia que bate atabaque

e come de mão

que toma a benção

e bate cabeça

uma poesia de pés no chão

O poema, ainda sem título, demarca o espaço não apenas sócio-econômico, mas também religioso de seus textos, uma vez que Uilians é praticante do Candomblé, religião de Matriz Africana. Noutro texto, da cena das mumunhas acadêmicas, surge uma teoria com ares foucaultianos acerca das ordens várias dos discursos e dos adjetivos que, nos ensina Bhabha, alimentam os estereótipos:

Leia-se: “interessantes”)

Me disseram para não adjetivar,

quando estivesse escrevendo algo,

pois “carrega demais o texto”

Fiquei a pensar: como não adjetivar?

Como não adjetivar o cabelo crespo,

encaracolado, trançado e black power da menina preta?

Como não enaltecer os lábios grossos do rapaz retinto?

As poesias escritas por estes jovens articulam, na cena da escrita, as teorias estudadas nos grupos de pesquisa dos quais fazem parte, as anotações de sala de aula, os livros, mas, primordialmente, estes textos costuram-se no tecido da vida, neste espaço, se exercitam como ação, intervenção e mediação através da autogestão de suas representações enquanto intelectuais negros, jovens e moradores de periferia.

Referências

CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, Desiguais e Desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: ED UFRJ, 2005.

CANCLINI, Néstor Garcia. Los jóvenes no se ven como el futuro: ¿serán el presente? Disponível em: <http://www.scribd.com/Insurgencia. Acesso em 10/04/2011>.

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Cultrix; Brasília: INL, 1975.

DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In:____. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002. Col. Debates.

FLECHA CORTANTE. Disponível em: <http://uilianssouza.blogspot.com/>. Acesso em 10/04/2011

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guaracira Lopes Louro . 3. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1990.

HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p.49.

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

POESIAS. Disponível em: <http://poetaflores.blogspot.com/>. Acesso em 10/04/2011 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social [1762]; Ensaio sobre a origem das línguas. 2a. ed.. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1978.

SANTIAGO, Silviano. Democratização no Brasil: 1979-1981(Cultura versus Arte) In: Declínio da Arte e Ascensão da Cultura. Florianópolis: ABRALIC/Letras Contemporâneas, 1998. p.11-23.

SANTOS, José Henrique de Freitas. Afroplagicombinadoresciberdélicos: afrociberdelia e plagicombinação nas letras de Chico Science e Nação Zumbi. Salvador: Quarteto, 2006.

ZALUAR, Alba. Um século de Favela. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

1 Professora Adjunta de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Projeto de pesquisa Derivas da subjetividade na escrita contemporânea em blogues, sites e outros arquivos virtuais. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

2 Cf. Músicas como: Despejo na Favela, Adoniran Barbosa; Gente Humilde, Chico Buarque; Malandro é malandro, Bezerra da Silva, dentre outras.

3 Cf. Música Menino das Laranjas, interpretada por Elis Regina

4 Esta questão será discutida em algumas músicas de pagode carioca e, principalmente, na poética da periferia aqui estudada.

5 Utilizamos aqui as palavras negro, afro-descendente e seus afins, o fazemos como politicamente equivalentes no discurso aqui construído.

6 Não interferi na escrita de nenhum dos poemas ou das apresentações por compreender que tal forma de relacionamento com a língua dá conta também de um projeto estético.

Texto para download