De “homem perigoso” a “príncipe negro”:

um breve paralelo entre ficções dos séculos XIX e XXI

 

Ariele Soares dos Santos[i]

 

O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens.

Adolfo Caminha, 1895

 

Esse era o príncipe negro, o menino negro que havia crescido.

Conceição Evaristo, 2018

  

RESUMO:

O presente estudo fará uma análise de como o homem negro é representado em duas narrativas da literatura brasileira. O tema é pouco discutido no campo literário, mas se mostra de extrema relevância social, pois pode-se analisar quais mudanças ocorreram no modo como se representa este indivíduo na sociedade brasileira do século do XIX, em paralelo com o século XXI. Além disso, as obras representam as vivências do homem negro em contextos de subalternidade. Como corpus temos Canção para ninar menino grande, publicada em 2018, de Conceição Evaristo, e Bom-crioulo (2013) de Adolfo Caminha, publicado em 1895. Será apresentada uma análise das diferenças no modo de construção psíquica e física dos personagens, Fio Jasmim e Amaro, ressaltando a quebra e/ou a permanência de estereótipos racistas e normas patriarcais nas obras; os traços marcantes do Naturalismo na obra de Caminha; as consequências de um sistema patriarcal na vida dos indivíduos, ressaltando como as relações de equidade e respeito entre os gêneros são a chave para uma convivência de empatia e solidariedade entre homens e mulheres negras.

Palavras-chave: homem negro; literatura brasileira; Naturalismo; masculinidade;

 

Introdução

Ao debruçar-se sobre a obra de Conceição Evaristo, grande escritora contemporânea, se faz necessária uma breve revisão da trajetória da obra da autora. Suas personagens femininas podem ser comparadas com outras heroínas preexistentes na literatura brasileira como a “Capitu” de Machado de Assis, em Dom Casmurro (1899), a “Gabriela”, do romance Gabriela, Cravo e Canela (1958) de Jorge Amado e tantas outras, pois assumem o centro da história e acabam por criar sua própria narrativa. A escritora traz em suas seis primeiras obras a figura feminina no centro, aborda temas como a amor, o sexo, o abandono, a solidão da mulher negra, a homossexualidade, maternidade, infância e todas as outras complexidades do ato de ser mulher negra em uma sociedade patriarcal e racista.

Dessa forma, temos um ciclo de mulheres negras que têm suas histórias narradas por Conceição em sua “escrevivência”, termo cunhado pela autora para dialogar com os traços da memória existentes em suas obras e as semelhanças com a realidade, que acabam por representar minorias e pessoas reais que se encontram nas mesmas situações de seus personagens.

É notável com a leitura dos contos de Evaristo que, nas breves passagens masculinas na vida de suas heroínas, estas tendem a possuir afeição por estes homens, de modo que muitas vezes assumem uma posição protetora com relação a estes quando possuem vínculo familiar ou romântico e os parceiros não cometem nenhum tipo de violência contra elas ou os seus. No primeiro romance da autora, Ponciá Vincêncio (2003), destaca-se o quanto a personagem possui vínculo forte com seu irmão, além do desejo de reencontrá-lo. O avô também é uma figura recorrente no pensamento de Ponciá que, mesmo sabendo histórias negativas sobre o velho, tinha afeto e empatia por sua dor. O mesmo se repete no conto “Ana Davenga”, presente no livro Olhos d’água (2014), no qual Ana relata sua história de amor com Davenga, um assaltante que possui pouca misericórdia para com suas vítimas mas, aos olhos de sua mulher, também pode ser considerado como um menino grande a quem ela só consegue destinar afeição.

Em sua novela e objeto de análise deste estudo, Canção para ninar menino grande (2018), as mulheres também são as narradoras, mas a autora sai de seu antigo padrão ao colocar um homem no centro e introduz Fio Jasmim. O protagonista passa pela vida das mulheres, estas testemunham sua história e descobrem o íntimo deste que circula e interliga, como um fio, suas vidas. Caracterizando-se principalmente por ser livre, desapegado, belo, namorador e sedutor, ele também possui embutido em si o ímpeto de ser um provedor para a família que constitui com Pérola Maria, sua esposa e mulher para quem ele sempre volta. Além disso, ele possui outros traços de sua personalidade que vem à luz no decorrer de sua trajetória revelando a complexidade existente por detrás da fama de Fio Jasmim.

O estudo de masculinidades negras e da identidade do homem negro na sociedade se faz presente em áreas como sociologia, filosofia e psicologia, podendo-se citar nomes de pensadores como bell hooks, Audre Lorde e Frantz Fanon, que abordam o assunto desde o século XX, buscando principalmente humanizar este indivíduo fugindo das ideias pré-estabelecidas por uma sociedade pós-colonial que se fundamenta em conceitos racistas e machistas, como colocam Aza Njeri, Kwame Ankh e Kulwa Mene:

Quando vemos a construção dos homens negros na sociedade brasileira identificamos discursos que apontam para a sua animalização [...]; para a desarticulação, em larga medida, das manifestações de amor entre família e as mesmas serem introduzidas de outras formas no cotidiano [...]; e para uma deseducação intrínseca a cada passo dado nas instituições do Ocidente que apregoam tiros semióticos na condições do ser homem negro na sua multiplicidade [...]. (NJERI; ANKH; MENE, 2020, p. 293)

Dessa forma, se faz válido analisar na literatura brasileira como este corpo é mostrado. Ademais, não se pode deixar de mencionar a grande importância da existência de um personagem como Fio Jasmim na obra de uma autora negra de tamanha notoriedade, pois tecendo uma comparação com obra do Movimento Naturalista[ii] Bom-crioulo (2013) de Adolfo Caminha, publicado pela primeira vez em 1895, o personagem de Canção para ninar menino grande quebra diversos estereótipos racistas ainda reproduzidos em nossa sociedade.

Bom-crioulo traz a história de Amaro, um ex-escravo que foi alforriado por seu bom comportamento, ele também é homossexual (o primeiro personagem negro e homossexual da literatura brasileira) e se apaixona por um jovem marinheiro branco, Aleixo. A construção do personagem é feita a partir do racismo então hegemônico e da hipersexualização, levando por vezes, a descrição de sua sexualidade a se assemelhar à de um animal. O livro também foi alvo de críticas por retratar abertamente o homossexualidade e trazer cenas de sexo, além das violências cometidas entre os personagens.

A comparação destes protagonistas é relevante para averiguar de que forma o homem negro é representado em obras de épocas diferentes, em um autor branco e um negro. A distinção de etnia se torna importante para o estudo, porque dessa forma pode-se analisar também os diferentes pontos de vista e ideologias que cercam a construção do personagem, considerando que os autores de literatura afro-brasileira possuem maior propriedade para falar de seus iguais e rebater o preconceito difundido na literatura por tantos anos. Como postula o escritor e teórico Cuti (Luiz Silva):

Uma das formas que o autor negro-brasileiro emprega em seus textos para romper com o preconceito existente na produção textual de autores brancos é fazer do próprio preconceito e da discriminação racial temas de suas obras, apontando-lhes as contradições e as consequências. Ao realizar tal tarefa, demarca o ponto diferenciado de emanação do discurso, o “lugar” de onde fala. (CUTI, 2010, p.12)

Surge a hipótese de que, na literatura afro-brasileira do século XXI, a subjetividade do homem negro é respeitada e este é humanizado. Logo, esta construção seria o oposto em obras do século XIX, onde ele é representado por estereótipos racistas colocados na narrativa por autores brancos que viviam numa sociedade patriarcal de valores europeus e herdeira da escravização.

 

“Homem perigoso” versus “príncipe negro”

No livro de Adolfo Caminha, Amaro recebe o apelido de “bom-crioulo” devido ao comportamento obediente que ele possuía com os seus superiores. Assim Amaro conseguiu sua carta de alforria e seu emprego de marinheiro, uma posição considerada nobre na época, em um ambiente de disciplina militar, completamente masculino que afirmava ainda mais o status social de poder do homem.

Porém, o racismo vigente em meados de 1895, quando a história se passa, não dá a este homem um tratamento igual ao de seus outros colegas marinheiros. Amaro não é tratado como ser humano, sua força física constantemente ressaltada o coloca em um lugar infra-humano (Mbembe, 2014) diante de seus companheiros. Tal status não dá poder ao personagem, mas sim, o animaliza, numa narrativa que produz o negro como “besta” e “fera”:

Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma ideia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom-crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso”. (CAMINHA, 2013, p. 30 - 31)

Ao que completa a voz narrativa:

Outras bocas foram transmitindo a ordem té que surgiu, correndo, a figura exótica de um marinheiro negro, de olhos muito brancos, lábios enormemente grossos, abrindo-se num sorriso idiota, e em cuja fisionomia acentuavam-se linhas características de estupidez e subserviência. (CAMINHA, 2013, p. 15)

Os traços do Movimento Naturalista são vistos nas descrições realistas do espaço do litoral brasileiro que tem suas belezas ressaltadas. Mas são mais intensos nas caracterizações dos personagens que aproximam o homem do animal a todo momento, algo que, quando comparado a construção do personagem Fio Jasmim, é ofensivo. Logo se vê que, já no início da história, é criada uma ideia negativa deste personagem, que mesmo sendo chamado de “bom” só possui características de mau. Além disso, ele é bom para um “crioulo”, não para um homem ou por possuir um bom caráter, a construção também coloca a cor de pele como algo que raramente pode ser positivo.

Uma imagem contrária surge no romance com o jovem marinheiro Aleixo, que é descrito de modo positivo, exaltado principalmente por sua cor branca. Ele também é mostrado como um loiro de olhos azuis, boca vermelha, corpo pequeno, associando sua imagem à pureza e em alguns momentos chega a assemelhar-se a uma mulher devido a sua delicadeza. Todas essas características enfatizam ainda mais o contraste dele com relação a Amaro e intensificam a ideia do negro perigoso que deseja o inocente jovem branco.

Em compensação, a construção da imagem física de Fio Jasmim contribui para a quebra do racismo da imagem prévia. Ele é descrito como belo, de sorriso fácil, educado, sedutor, forte – chega a ser chamado de “príncipe negro” – e também aparece como um homem trabalhador e que poderia ser carinhoso com suas companheiras, além de, ao final, se tornar um bom amigo para Eleonora. Nesta passagem pode-se notar que, mesmo possuindo uma conduta negativa em suas relações com diversas mulheres, Fio tem um bom caráter:

E foi se revelando naquilo que verdadeiramente era. Um moço extremamente cativante. Um jovem homem de gestos notadamente viris, condizentes com seu porte físico, alto e forte, acompanhado de expressões faciais, principalmente o modo de olhar, carregado de extrema ternura. Esse era o príncipe negro, o menino negro que havia crescido. (EVARISTO, 2018, p. 37)

Em Canção para ninar menino grande o nome de Fio Jasmim remete à palavra “filho” que na fala, se transforma em “fio”, o que faz referência ao tom quase maternal da voz narrativa ao falar do homem, além de lembrar os vários filhos que Jasmim possui com diferentes mulheres. Pode também funcionar como uma metáfora simbolizando que este homem é como um fio que interliga todas com quem se relacionou. E o sobrenome “jasmim” remete à doçura oculta no protagonista e a sua beleza que encanta a todos.

O título também expressa a afeição de Juventina, uma de suas amantes, por Fio. A personagem compõe tal canção nos meses em que ficou sem notícias do homem: “E a interminável ausência dele foi se dizendo, então, em música. Seria “Canção para menino grande” a canção da ausência, da falta, do vazio transbordante no peito de Tina?” (EVARISTO, 2018, p. 126). O que parece é que a música foi o único modo de alcançar este homem que estava fisicamente em constante movimento sem se justificar. Por ser uma canção de ninar demonstra, novamente, o tom maternal assumido pela mulher diante de Jasmim e a vontade que ela possuía de acalmá-lo e tê-lo em seus braços protegido.

A narrativa também define o termo “menino grande”: “(...) não passavam de meninos grandes, que viviam agarrados às saias das mulheres em busca de proteção ou de brinquedo.” (EVARISTO, 2018, p. 68) Esta analogia demonstra a prática de Fio de estar sempre com uma mulher diferente e não amadurecer, o homem não cresce e nem assume suas responsabilidades, se mantém menino que busca por proteção na mesma medida que busca por sexo.

A relação dos dois homens com o trabalho também se difere. Amaro, que vivenciou o regime da escravização, via a atividade como algo que lhe garantia dignidade, aguentava todos os pesos e fardos e, antes de conhecer Aleixo, não deixava espaço para afetividades em sua vida. O homem se vê com o único destino de: trabalhar, ser recompensado, algumas vezes castigado, e só. Em sua vida não existia prazer: “Um pobre marinheiro trabalha como uma besta, de sol a sol, passa noites acordado, atura desaforo de todo mundo, sem proveito, sem o menor proveito!” (CAMINHA, 2013, p. 31)

Já Fio Jasmim aos 20 anos de idade já trabalhava na companhia ferroviária e era noivo de Pérola Maria, porém durante suas viagens o homem se relacionava com várias outras, como a primeira mulher que nele despertou uma atenção especial, Neide Paranhos, cujos pés ele acreditou serem iguais aos da Cinderela: “(...) de uma Cinderela negra. E ele príncipe negro, na festa que haveria na casa dela, perto da estação, iria beijá-los e calçá-los… Tal ato significaria um pedido para fazer amor com ela.” (EVARISTO, 2018, p. 35). Esta fantasia levou-o de volta a sua infância, momento ele havia desejado ser o príncipe numa peça da escola, mas perdeu o papel para um menino loiro, no episódio Fio se viu impossibilitado de exercer sua realeza. Quando cresceu e viu nas mulheres negras suas princesas, ele sentia como se se igualasse ao colega branco e não havia ninguém que pudesse impedi-lo de ficar com tantas mulheres, esse era o seu poder de homem.

Seria então o Príncipe Negro da noite e encontraria tantas mulheres, tantas Cinderelas, quanto seu coleguinha branco, com certeza, estava encontrando na vida. Eles eram homens. E, como o homem branco, ele conquistava todas as mulheres que surgissem em sua frente.  Eram iguais, ele e o homem branco, assim pensava Fio Jasmim… (EVARISTO, 2018, p. 36)

Nota-se nessas passagens que o “poder” que Fio vê em ser homem é tanto que ele não se dá conta de que também é visto por sua cor e estes olhos o discriminam. Ao longo da trajetória são revelados outros discursos que fomentaram sua formação, pela qual se esperava que ele fosse mulherengo, que agisse como se não devesse satisfação às suas parceiras e muito menos afeto; como se esses hábitos fossem acrescentar ainda mais poder a ele, o que mais tarde se revela como um engano.

Amaro também sofre racismo, em seu ambiente de trabalho os companheiros falavam que o “negro dava para gente” (CAMINHA. 2013, p. 27), mas ao mesmo tempo, lhe impunham castigos semelhantes aos do regime escravocrata, além de temerem o homem como se este não fosse um semelhante seu. São diversas as cenas em que Bom-crioulo aparece como essa figura que põe medo e não sente dor:

(...) nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.

Entretanto, já iam cinquenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente aquele costão negro as marcas do junto, umas sobre as outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.  (CAMINHA, 2013, p. 24)

Para Amaro e os marinheiros a força física e brutalidade eram características dignas de um homem detentor de muito poder, a masculinidade é centrada naquilo que se consegue fazer e aguentar. Assim como Jasmim conseguia sexo com diversas mulheres. É fato que esses dois homens só tiveram estes exemplos do que é masculinidade, como os trechos das duas narrativas mostram: “Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! estava satisfeito: mostrara ainda mais uma vez que era homem…” (CAMINHA, 2013, p. 24)

Como o pai, Máximo Jasmim, ele repetia que o homem, o macho, nada tinha a perder. Os maquinistas, homens mais velhos, tendo idade inclusive para ser pai do moço, parabenizavam o gosto do rapaz por mulheres. Diziam que o jovem maquinista trazia em si algo rijo, inquebrantável como os ferros do trem de ferro. E gargalhavam até se contorcerem com as piadinhas insossas que criavam, cuja base provocadora do riso era sempre o duro ferro dos homens a açoitar as mulheres. (EVARISTO, 2018, p. 31 - 32)

Essas passagens revelam a desumanização física e psíquica feita em Fio Jasmim e Amaro pelos olhos de homens que, assim como eles, não conhecem outro significado para a masculinidade. O fato de acreditarem que Fio possuía algo rijo como uma máquina o coloca em lugar onde este homem não sente nada, é feito de ferro e não de carne e osso. O mesmo pode ser dito de Amaro, que não sente dor física do ponto de vista narrativo e de seus companheiros.

Além disso, as referências ao órgão sexual de Fio reduzem toda a sua subjetividade apenas a isto e, ainda, colocam a relação entre homem e mulher unicamente como algo violento com o verbo “açoitar”. Nesta visão, pode-se dizer que este homem era como uma máquina que não tinha nada a perder, não possuía nenhum valor e estava novamente sem exercer sua realeza. Para Amaro, a violência também parece ser o único modo de demonstrar afeição e de se relacionar com os outros, já que ele se envolve numa briga e machuca outro colega para “conquistar” Aleixo e sente orgulho de seu feito.

Amaro e Fio cresceram em uma sociedade que exaltava a masculinidade e a brancura e, devido a isso, sempre foram preteridos: Fio, que fora impedido de ser príncipe na encenação escolar, e Amaro ensinado a ver beleza apenas em pessoas brancas. Para o segundo, esta influência social é tão forte que ele desenvolve uma adoração por Aleixo que é descrito como:

Era mesmo uma espécie de principezinho entre os camaradas, o “menino bonito” dos oficiais, que o chamavam de “boy”. (...) muito asseado sempre na sua roupa branca, o boné, de um lado, a camisa um poucochinho[iii] decotada na frente, deixando ver a cova do pescoço, ficava lhe querendo bem, estimava-o deveras. (CAMINHA, 2013, p. 38)

Estas construções machistas, em conjunto com o racismo sofrido durante toda a vida destes indivíduos resultam no desejo de aproximação àquilo que é considerado bom e bonito perante a sociedade. Frantz Fanon em seu Pele negra, máscaras brancas (2008) sintetiza a junção destas construções na vida do homem negro:

De modo algum minha cor deve ser percebida como uma tara. A partir do momento em que o preto aceita a clivagem imposta pelo europeu, não tem mais sossego, e, “desde então, não é compreensível que tente elevar-se até o branco? Elevar-se na gama de cores às quais o branco confere uma espécie de hierarquia?” (FANON apud NORDEY, 2008, p. 82)

Ao longo de sua vida, Fio Jasmim fez muitos filhos fora e dentro de seu casamento. Com Pérola Maria ele teve 10 filhos, com os quais se preocupava em ser o provedor, e a narradora ainda acrescenta que, mesmo que ele os fizesse sem pensar, os amava:

Os homens faziam filhos. E faziam assim como jogavam bolas, soltavam pipas ou como se fosse uma piada, uma conversa picante a respeito das mulheres. Assim eles faziam filhos. Podia até amá-los depois, como o próprio Jasmim, mas nunca pensavam antes de concebê-los, deixavam tudo para mulher pensar e resolver. (EVARISTO, 2008, p. 73)

Além destes, nunca assumira diversos outros rebentos cujas mães afirmavam serem seus. Assim, o abandono parental surge como consequência da vida sexual desregrada que o personagem leva sem se precaver, e sua irresponsabilidade então passa a afetar ainda mais vidas, algumas destas ele nem sequer possui conhecimento da existência. A narradora fala desta irresponsabilidade como um “perigo” que os homens representam para as mulheres e expõe que para ele este é o “normal patriarcal”, já que seu pai teve 17 filhos com diferentes mulheres. Máximo Jasmim também era ferroviário e passou para o jovem a sua herança:

Fio cresceu ouvindo as proezas do pai. Aprendera com ele que ser homem era ter várias mulheres. (...) Cedo, Fio Jasmim começou a buscar avidamente por mulheres, como se nosso corpo não tivesse outra função, a não ser a de ancoradouro para os homens. (...) Se quedava no corpo das mulheres. A cada encontro se pensava mais macho e, portanto, mais feliz. (EVARISTO, 2018, p. 76)

É fato que o modo de vida do “herói” é nocivo não só para si, como para estas mulheres que eram apenas usadas por ele e, mais ainda, para os filhos que cresceram com o sofrimento do abandono paterno. Seguindo os caminhos de seu pai, Fio perpetua um histórico de negligência que pode ser visto em diversas famílias do Brasil. Representar tal realidade desta forma é sobretudo uma crítica que Conceição Evaristo faz à violência patriarcal.

Ao final da narrativa, o assunto sobre a paternidade ressurge como um fantasma oculto dentro do personagem, e tudo isso retorna quando o protagonista se dá conta de que existe um trauma e um vazio dentro de si: ele também não havia tido um pai presente afetivamente. Novamente estabelecendo um diálogo com as teorias sobre masculinidades negras, o texto de Evaristo dialoga com bell hooks (2004) ao tratar da reprodução de padrões ruins na paternidade negra pela qual, ao se tornarem pais, os homens repetem as mesmas práticas que os traumatizaram e se envergonham a ponto de preferirem abandonar seus filhos, como se fosse o melhor que eles pudessem oferecer.

A paternidade não aparece em Bom-crioulo, mas a orientação sexual do personagem expõe a realidade dura que um sistema patriarcal impõe aos homossexuais. O tema surge primeiramente como algo que os eles faziam com os colegas para se “aliviar” durante o tempo que estavam no mar. Para Amaro vai mais além, ele desenvolve sentimentos, ao mesmo tempo em que luta contra seus desejos, pois a homofobia estava inserida nos valores dominantes em seu meio: “E agora, como é que não tinha forças para resistir aos impulsos do sangue? Como é que se compreenda o amor, o desejo da posse animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?” (CAMINHA, 2013, p. 37)

Repara-se também que Amaro não vê no ato sexual um motivo de orgulho da mesma forma que Fio Jasmim. Além disso, na narrativa o fato aparece como algo pecaminoso e não natural, que aproximava o homem de seu lado selvagem por se tratar de uma relação homossexual. O oposto ocorre em Canção para ninar menino grande: o tema é tratado com respeito, Fio Jasmim, não compreendia como se davam tais relações, acreditava que por ser heterossexual era detentor de maior virilidade mas, ao conhecer uma mulher lésbica, ele se reeduca.

Na sequência, Amaro tenta afeminar Aleixo, ensinando o jovem a se vestir de maneira elegante polida, como nesta passagem em que ele surge vestido como Bom-crioulo o ensinou: “Sim senhor! Parecia uma menina com aquele traje. Estava mesmo apto!” (CAMINHA, 2013, p. 39). Ainda, como colocavam os costumes da época, o lugar da mulher era de submissão ao marido, o protagonista então coloca seu amante nesta posição e tenta criar uma ilusão de que Aleixo está mais próximo do mundo feminino do que do masculino, eles alugam um quarto onde os dois passam a viver juntos e Amaro se torna o principal provedor. Essa caracterização torna sua homossexualidade aceitável pelo seu ponto de vista.

Amaro é hipersexualizado, seu corpo, seus sentimentos e desejos são ligados à uma obsessão sexual expressada como uma patologia:

O Bom-crioulo da corveta, sensual e uranista, cheio de desejos inconfessáveis, perseguindo o aprendiz de marinheiro como quem fareja uma rapariga que estreia na libertinagem, o Bom-crioulo erotômano da Rua da Misericórdia, caindo em êxtase perante um efebo nu, como um selvagem do Zanzibar diante de um ídolo sagrado pelo fetichismo africano - ressurgia milagrosamente. (CAMINHA, 2013, p. 100)

Na passagem é possível ver que o marinheiro é descrito como um maníaco sexual, um selvagem que comete pedofilia, já que “efebo” diz respeito a um homem adolescente na puberdade. Vale mencionar também que D. Carolina, a portuguesa que aluga um quarto para o casal viver, é uma senhora mais velha que passa a se relacionar com Aleixo. Nota-se então que a pedofilia não é inscrita como problema no contexto da narrativa, mas sim a homossexualidade e a relação inter-racial. 

Se pode afirmar que a intenção da narrativa era construir aos poucos uma imagem de um homem perigoso, uma fera sádica que ameaça a pureza branca representada por Aleixo, que comete diversos crimes contra o jovem até acabar de vez com sua vida. Além disso, o racismo é explícito, acompanhado da xenofobia ao relacionar o que é africano apenas à selvageria e fetichismo.

Os desejos de Amaro são descritos de forma grosseira e violenta: “Seu desejo era abraçar o pequeno, ali na presença da guarnição, devorá-lo de beijos, esmagá-lo de carícias debaixo do seu corpo.” (CAMINHA, 2013, p. 39) Além disso, podem ser vistas atitudes que se perpetuam ainda no romance de Evaristo sobre o sexo, pois o modo como os homens veem o ato como algo violento devido ao machismo embutido em sua cultura é o mesmo.

O sexo aparece depois Canção para ninar menino grande como algo natural, a narradora descreve o ato de forma poética quando reconta as histórias do ponto de vista feminino. Mas para Fio, depois de praticar tanto em vão, se torna algo sem sentido e, até mesmo, recriminado devido aos motivos do homem: ele busca por sexo para não precisar lidar com seus sentimentos. O fato é que, como Evaristo explicita, o ato acaba por silenciar outras necessidades do ser humano, pois não traz toda a satisfação e felicidade que um indivíduo precisa:

Felicidade não era para pensar e sim para viver. Sim, ele era feliz. E por que não ser? No entanto, um sentimento lhe acometia sempre, no final de cada gozo, quando ele pensava que o êxtase final seria eterno; mas, tudo acabava como sempre. Sua virilidade murcha, satisfeita, lassa e o vazio lá dentro. Um vazio tão lá dentro a lhe pedir para tentar sempre e mais mulheres. Sempre e mais gozo. (EVARISTO, 2018, p. 109 - 110)

Considerando o contexto de produção de Bom-crioulo, não gera surpresa a ocorrência de tais representações. O fato a ser considerado é que ao analisarmos a obra atualmente confere-se a existência de diversos equívocos e preconceitos inscritos neste homem negro, além de condicioná-lo apenas a uma existência voltada ao que é criminoso e sexual. Amaro não faz amor ou sexo, ele possui de forma selvagem o corpo de seu igual. Enquanto Fio faz o que bem quer com as mulheres, não de modo violento, mas sim irresponsável.

Pode-se notar, ao analisar as vidas sexuais dos personagens que, à medida que as narrativas avançam, as imagens dos dois mudam em função de como veem o sexo: Amaro sente cada vez mais necessidade do ato e o homem que antes era bom se transforma em mau. Enquanto Fio que era um “Don Juan” incorrigível se torna um homem sensível e consciente de seus atos. Este é outro reflexo da cultura patriarcal existente no contexto social dos séculos XIX e XXI, que ensina que sexo deve ter uma grande importância na vida dos homens (HOOKS, 2004). 

 

Relações afetivas

O momento decisivo da jornada destes heróis ocorre em suas relações afetivas. Ligados diretamente ao sexo, os relacionamentos destes homens são o que muda suas vidas dramaticamente. As duas obras contam histórias de casais, de afetos, de desejos insaciáveis que aproximam os dois homens da ruína.

Em cada mulher que conhece, Fio passa a reconhecer que elas, em especial as negras, são mais do que seus corpos e o prazer que elas podem proporcionar. Aos poucos, o personagem vai percebendo coisas em seus corpos além daquilo que é historicamente hipersexualizado na imagem da mulher negra.  Em Neide Paranhos, ele reconhece os pés “(...) que, mesmo parados, pareciam ter desejo e força para ganhar o mundo.” (EVARISTO, 2018, p. 31). Nestas descobertas, as mulheres roubam a cena ao se apresentarem como uma fonte de poder diante do homem, que não o diminui, mas o convida a conhecer este universo feminino.

O encontro com Tina também marcou Fio Jasmim. Na ocasião, ele tinha 33 e ela 17 anos e, para ele, foi como se a moça quisesse subir à sua cabeça, em sua visão “o sol a pino era a própria moça.” (EVARISTO, 2018, p. 78). Ele sentiu até mesmo vontade de desviar-se dela, mas não conseguia, a atração entre os dois era como um ímã, esta foi a única mulher de quem Jasmim afirmava ter sido “vítima” e não mais uma de suas conquistas. Depois, tinha necessidade do corpo e do amor da mulher. Gostava de vê-la se despir, de beijá-la e tocar a sua “Virgem de Ébano”. A relação era diferente das habituais pelo fato de Juventina ser virgem. Ele a tocava com cuidado, não dizia que faria sexo com ela, mas sim, amor: “Com certeza, Fio, por lhe amar tanto, lhe oferecia a leveza da língua para não machucá-la no mais profundo de seu corpo. Ele sabia que ela era virgem.” (EVARISTO, 2018, p. 80).

Amaro explora seu lado afetivo e sexual de verdade quando conhece Aleixo, é sabido que sentimentalismos e demonstrações amorosas não passavam pela mente do marinheiro ex-escravo que se criou em meio à brutalidade e o machismo. Então, ao encontrar o jovem grumete, da mesma forma que Fio foi “vítima” de Juventina, Bom-crioulo se sente “enfeitiçado”:

Dentro do negro rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea… (...) Ignorante e grosseiro, sentia-se, contudo, abalado até os nervos mais recônditos, até as profundezas de seu duplo ser moral e físico, dominado por um quase respeito cego pelo grumete que atingia proporções de ente sobrenatural a seus olhos de marinheiro rude. (CAMINHA, 2013, p. 62-63)

Amaro também gostava de assistir seu amado a se despir, nestes momentos a pele clara de Aleixo e seu físico são endeusados. Assim, Bom-crioulo desenvolve uma obsessão pelo jovem, considerando-o sua propriedade. Ressaltemos que, diferentemente de Fio Jasmim, que não se sentia merecedor do amor de suas mulheres, Amaro crê que Aleixo deveria amá-lo e ser fiel a ele mesmo com evidências de que Aleixo sentia aversão por ele e não se identificava como homossexual.

O ciúme surge no relacionamento entre os dois quando se separam devido ao serviço na Marinha, seguido pela internação de Amaro em um hospital após uma briga e então Aleixo inicia um romance com D. Carolina. A notícia leva Amaro à loucura, sua obsessão alcança níveis doentios onde o homem crê que precisa matar Aleixo para se vingar. A narrativa inscreve “um misto de ódio, de amor e de ciúme” (CAMINHA, 2013, p. 118) que movimenta as decisões de Amaro nos momentos finais, mas o que de fato se mostra é que não havia amor.

O crime passional cometido por Bom-crioulo retrata uma cena já vista na literatura ocidental, a própria narrativa compara os desejos assassinos de Amaro aos de Otelo[iv], que por ciúme mata sua esposa Desdêmona. A semelhança entre as duas histórias ainda vai mais longe, pois a tragédia shakespeariana também traz um casal inter-racial e, assim como a obra de Caminha, retrata o ciúme, o racismo e a traição. Desse modo Amaro se junta a homens da ficção e da realidade que, movidos pelo ciúme doentio, se transformam nos algozes das pessoas a quem supostamente amam.

Ainda, ao trazer Aleixo com uma imagem feminina e dar diversos exemplos na própria narrativa de casos de feminicídio, o romance expõe este lado obscuro das relações afetivas, que ainda atualmente ceifa a vida milhares de mulheres no Brasil. Nesta passagem, notam-se os pensamentos de D. Carolina que prenunciam o final da narrativa:

(...) casos de ciúmes, de traições… Na Rua do Salvador um sargento esfaqueara uma pobre “mulher da vida”; encontrara-a com outro… (...) Lembrava-se também de outro caso medonho; fora na Rua dos Arcos: o assassino cortara a mulher em bocados como se esquarteja uma rês. (CAMINHA, 2013, p. 109)

A construção de Fio Jasmim vai além desta imagem violenta. A brutalidade não faz parte das relações do personagem, pelo contrário, com as mulheres que realmente amou ele se sente em dívida. O homem não acredita ser digno de receber tanto amor de Juventina e Pérola, ao final da narrativa ele se culpa de apenas tê-las usado e não ter acrescentado amor, proteção e compreensão a suas vidas. Podemos ver a dificuldade que Fio tinha em dar e receber amor, como já exposto acerca da sua criação, para ele a única forma de demonstrá-los era com bens materiais e sexo.

Porém, indiretamente Fio foi o causador da morte de Angelina Devaneia da Cruz, ela fora mais uma das mulheres com quem se deitou e depois seguiu em suas viagens, tendo mentido sobre ser o noivo que a moça tanto esperava para conquistar a ela e à sua família. No entanto, quando descobriu que o homem não retornaria para se casar, a mulher devastada e humilhada, suicida-se se afogando no rio de sua cidade. A história chega depois aos ouvidos de Fio que, no momento, não se comoveu.

No outro livro, quando acontece a morte de Aleixo, a atenção do narrador observador se volta completamente para vítima e para a reação das pessoas, que assistem à tragédia e não se importam com Amaro saindo da cena triste e desolado. Seguindo o pensamento determinista[v] hegemônico à época e presente no texto, nos momentos anteriores, Bom-crioulo só consegue pensar em cometer o crime, a breve menção de sua tristeza é irrelevante considerando o que já estava sendo construído na imagem do personagem, pois toda a sua trajetória segue para o momento em que ele se torna de fato um assassino: “Era um mal-estar nervoso, uma aflição, um delírio, um vago desejo de matar, de assassinar, de ver sangue…” (CAMINHA, 2013, p. 129).

Se Amaro se afunda de vez em sua natureza negativa, Fio Jasmim é acometido pelo arrependimento ao se dar conta de seus atos e por ser responsável pelo destino de Angelina Devaneia da Cruz. Ao refletir sobre esta morte ele também se recorda de outras e de como sua construção “férrea” afetou a forma com que viria a vivenciar seus lutos:

E, por isso, sempre os olhos secos de Fio Jasmim diante da morte e da vida. Notícias de uma mulher que tinha se matado por ele, filhos dele nascendo, a mãe morrendo, o pai, meses depois. Dores não vazam nos olhos dos homens. (EVARISTO, 2018, p. 119)

A violência surge para Amaro como a única forma de conquista, de honra, de demonstrar afeto, se redimir e conquistar novamente sua liberdade, pois ele se via preso a Aleixo que não aceitou se comportar como sua propriedade. A história revela ainda como o racismo e os sofrimentos infringidos a este homem negro o transformaram no próprio vilão, o Bom-crioulo vai regredindo e se torna tudo aquilo que esperavam dele: um homem perigoso e assassino.

Em processo de autoconhecimento e redenção, Fio vai se humanizando e criando empatia pelas vivências das mulheres, tal movimento só é realizado quando o mesmo entende suas próprias, as dores advindas delas e sai de seu pensamento construído com base apenas em uma ideia de masculinidade tóxica:

No entanto, a lição de cunho mais severo e doce que Fio Jasmim aprendeu foi com uma mulher. Uma mulher a quem ele nunca cortejou. Com ela, aprendeu que o homem podia, sim, verter em lágrimas suas dores e sua perplexidade diante da vida, diante do mundo. (EVARISTO, 2018, p. 119)

Evaristo explicita que as subjetividades e emoções femininas e masculinas são mais semelhantes do que o sistema patriarcal e o machismo nos fizeram crer, deste modo propõe uma imagem da mulher e do homem negro juntos, se relacionando de forma afetiva, em que um compreende o universo do outro, faz com que se estabeleça um diálogo de “igualdade” entre esses corpos. Como coloca bell hooks (2004), homens e mulheres negros dialogando entre si, solidarizando-se uns com os outros, constroem o fundamento do amor genuíno. Este encontro demonstra ainda que o principal interesse da população negra deveria ser ir contra este sistema de valores europeus que provoca a desunião entre os gêneros, pois o mesmo é racializado e racista. (NJERI; ANKH; MENE apud MAZAMA, 2019).

 

Considerações Finais

Se confirma a hipótese de que na Literatura Afro-brasileira existe a tentativa de inverter o jogo, trazendo uma imagem positiva do homem negro que se redime. Conceição Evaristo propõe a retirada deste indivíduo de um local de violência, marginalidade, frieza e desamor. Introduzindo um lado existente em todos os seres humanos marcado pela doçura e pela fragilidade, a escritora de fato o humaniza. Tal feito, é revolucionário quando vivemos em um país onde o se mata um jovem a cada 23 minutos[vi], sendo em sua maioria homens negros.

A comparação com Amaro explicita ainda mais a visão construída do homem negro não só na literatura como na sociedade. O personagem se mantém parado no tempo, vai regredindo até atingir completamente o status de um ser irracional e bruto, não sendo apresentado a nenhuma outra alternativa a não ser se tornar alguém perigoso. Sua imagem fica petrificada no corpo ensanguentado de Aleixo em seus braços, não restando dúvidas de que todas as suas “escolhas” foram previamente feitas para ele chegar a este momento.

Amaro e Fio Jasmim permanecem separados por suas trajetórias e pelo tempo, mas diante das normas que condicionam suas subjetividades a uma mesma postura desumanizadora, eles estão próximos. Nota-se que se mantém semelhante nas obras o modo como a masculinidade é vista pelos dois homens, ela define o modo como eles devem agir com seus companheiros, nas relações familiares e na ocultação de seus sentimentos.

Dessa forma, podemos perceber que, no que diz respeito às questões psicológicas dos personagens, sobressalta o modo como a sociedade estipula regras e normas a serem seguidas pelos homens, criando o que se chama atualmente de “masculinidade tóxica” definida como:

(...) uma descrição estreita e repressiva da masculinidade que a designa como definida por violência, sexo, status e agressão, é o ideal cultural da masculinidade, onde a força é tudo, enquanto as emoções são uma fraqueza; sexo e brutalidade são padrões pelos quais os homens são avaliados, enquanto traços supostamente ‘femininos’ – que podem variar de vulnerabilidade emocional a simplesmente não serem hipersexuais – são os meios pelos quais seu status como ‘homem’ pode ser removido. Alguns dos efeitos da masculinidade tóxica estão a supressão de sentimentos, encorajamento da violência, falta de incentivo em procurar ajuda, (...). (CONFORT, 2017)

Pode-se perceber que esta prática se perpetua através dos tempos ao comparar as duas obras de épocas diferentes, ambas narrativas mostram as consequências nocivas de tal padrão cultural na vida dos homens. Porém, uma delas deixa clara a existência de um outro lado que faz com que o homem negro finalmente exerça sua realeza na literatura brasileira.

 

Referências Bibliográficas

AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1958.

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1899.

CAMINHA, Adolfo. Bom-crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2013.

CONFORT, Maria. Você sabe o que é masculinidade tóxica? 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/voce-sabe-o-que-e-masculinidade-toxica/. Acesso em: 26 ago. 2020.

CUTI (Luiz Silva). Literatura Negro-brasileira. Coleção consciência em debate/coordenada por Vera Lúcia Benedito. São Paulo: Selo Negro, 2010.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vincêncio. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2003.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2014.

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. São Paulo: Editora Unipalmares, 2018.

FRANTZ, Fanon. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

HOOKS, bell. We real cool: Black men and masculinity. Nova York: Routledge, 2004.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança, Lisboa: Editora Antígona, 2014. 

NJERI, Aza (Viviane Mendes de Morais); ANKH, Kwame (Thiago Henrique Borges Brito); MENE, Kulwa (Walkiria Gabriele Elias da Costa). Mulherismo Africana: proposta enquanto equilíbrio vital à comunidade preta. In: Ítaca: Especial Filosofia Africana, Rio de Janeiro, v. 36, p. 281-320, 2020.

 

NOTAS

[i] Ariele Soares dos Santos é graduanda em Letras, Português, pela UFMG e pesquisadora vinculada ao NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.

[ii] Movimento artístico que surgiu em meados do século XIX na França, se caracterizou na literatura em demonstrar extremo realismo, abordagem livre de temáticas eróticas, da homossexualidade e da loucura, temas considerados tabus até então. Também utilizava a linguagem falada e explorava os desejos humanos e seus instintos, pois os pensadores da época acreditavam que estes aproximavam o ser humano de seu lado animal.

[iii] “Mesmo que dizer pouquinho; pequena quantidade.” (CAMINHA, 2013, p. 143)

[iv] Otelo, o Mouro de Veneza é uma obra William Shakespeare escrita por volta de 1603.

[v]O Determinismo, segundo Hippolyte Taine, pode ser compreendido pela ideia de que comportamento humano é determinado em três fatores: O meio, a raça e o momento histórico. Dessa forma, não haveria outra opção para o personagem a não ser o assassinato.

[vi] A informação completa pode ser encontrada no Relatório Final da CPI de Assassinatos de Jovens do Senador Lindbergh Farias: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens.

 

Texto para download.