Tradução racial e textual no romance Io, venditore di elefanti, de Pap Khouma:

signifyin(g), exu e mobilidade identitária na ficção negra

 

José Endoença Martins*

Come ci si sente da clandestini? Male. Oltretutto, si entra in concorrenza con chi sta male quanto noi. Um immigrato deve subire, tacere e subire, perché non ha diritti. Deve reprimire dentro de sé ogni reazione, svuotarsi di ogni personalitá. Subire con la consapevolezza che questa è l’unica possibilitá. PAP KOUMA, Io, Venditore di Elefanti, 2015: 14.1

How does it feel to be an illegal Immigrant? Terrible. Mostly because you have to compete with people just as bad off as you. An immigrant has to put up with everyone and everything. He has to keep quiet and accept the worst of everything because he has no rights. He has to suppress every reaction, empty himself of his personality, and face the fact that there’s nothing he can do. REBECCA HOPKINS, I was an Elephant Salesman, 2010: 04.2

Resumo

Quando o poeta afrobrasileiro Trindade (2008) autobiografa-se, em versos como “uma negra me levou à Igreja” e “outra negra me levou à Macumba”, transporta para o humano a experiência do orixá Exu. De forma similar à dupla mobilidade do “eu lírico” de Trindade, Exu festeja a própria representação dual, em esculturas de duas cabeças. No campo da teoria literária afrodescendente, a dualidade do poeta e a do orixá se rearticula, através do conceito de Signifyin(g) de Gates (1988), como especificidade humana negra de construir diálogo entre duas realidades, dois textos negros. Neste sentido, este estudo objetiva delinear o processo de “chamada e resposta”, no qual o romance original Io, Venditore di Elefanti e o texto traduzido I Was an Elephant Salesman, do ítalo-senegalês Pap Khouma (2015), desenvolvem suplementaridades dialógicas. Na abrangência racial, descortinam-se entrelaces e cisões entre a Itália ocidental e a África; na arena lingüística, desvelam-se desenlaces e harmonias entre o idioma italiano e o inglês. A análise se firma na discussão de eixos tradutórios, combinando a tradução do sujeito negro com a do texto negro. A conversação interracial e intertextual através da Signifyin(g) e de Exu ajuda-nos a entender o processo de tradução como trama dialógica entre dois mundos culturais distintos e dois produtos literários negros específicos. No caso da tradução do sujeito negro (o imigrante senegalês [africano] vivendo em Milão), dão-se a aproximação, afastamento, ou fusão de valores negros e brancos, captados pelos conceitos de Negrice, Negritude e Negritice. Na esfera da tradução do romance negro, encontram-se semelhança, diferenciação e combinação entre texto fonte e texto alvo, referendadas pelas noções de Paralatio, Similatio e Translatio.

Palavras-Chave: Signifyin(g). Exu. Tradução. Negritice. Translatio.

 

Abstract

When the Afro-Brazilian poet Trindade (2008) describes himself, in verses such as “a black woman took me to the Church” and “another black woman took me to Macumba”, he transfers the experience of the Orisha Exu to the human realm. Similar to the dual mobility of Trindade’s "lyrical self," Eshu celebrates his own dual representation in two-headed sculptures. In the field of Afro-descendent literary theory, the duality of the poet and of the Orisha rearticulates, through Gates's (1988) concept of Signifyin(g), as the black human specificity of building dialogue between two realities, two black texts. In this sense, this study aims at delineating the “call-and-response” process, in which the original novel Io, Venditore di Elefanti by Italian-Senegalese novelist Pap Khouma (2015) and its translated version into English as I Was an Elephant Salesman develop dialogical supplementarities. In the racial scope, intertwining and splits are established between western and African Italy; in the linguistic arena, unveils and harmonies between the Italian and English languages ​​are created. The analysis is based on the discussion of translational axes, combining the rendition of the black subject with that of the black text. Interracial and intertextual conversation through Signifyin(g) and Exu helps us understand the translational process as a dialogic play between two distinct cultural worlds and two specific black literary products. In the case of the translation of the black subject (the Senegalese [African] immigrant living in Milan), there is the approximation, remoteness, or fusion of black and white values, captured by the concepts of Negriceness, Negritude and Negriticeness. In the sphere of translation of the black novel, there occur similarity, differentiation and combination between source text and target text, endorsed by the notions of Paralatio, Similatio and Translatio.

Keywords: Signifyin(g). Eshu. Translation. Negriticeness. Translatio.

 

Comentários iniciais

As duas epígrafes – uma na língua italiana, outra na inglesa – introduzem o tema da migração negra em solo italiano. A par dos ganhos, das perdas e das trocas entre sujeitos migrantes, o país deixado e a nação buscada, a migração se apresenta como o deslocamento e, como consequência, como a construção de variadas identidades. Tem-se, então, a presença de dois deslocamentos distintos, porém complementares: o racial e o textual. Na abrangência racial, são os sujeitos negros – senegaleses – aqueles que se sentem clandestinos na Itália. O narrador, senegalês, também esclarece que “um immigrato deve subire, tacere e subire, perché non ha diritti” ["um imigrante deve padecer, ficar calado e sofrer, porque ele não tem direitos"] (KHOUMA 2015: 14). No campo textual, vemos um romance que se move da língua italiana para a inglesa e, enquanto se move, vai contabilizando perdas, ganhos e trocas lingüísticos e culturais na versão traduzida.

Se é verdade que o ato de migrar acarreta relevante elenco de perdas, ganhos e trocas – tanto raciais quanto textuais – também é verdade que migrar se articula com o traduzir-se. Em função da percepção de que migração e tradução se harmonizam em uma triangulação que ainda envolve tradição, podemos admitir que uma possibilidade de discussão da literatura negra diaspórica se alicerça na estreita junção entre o conceito de Signifyin(g) e a energia conceitual de Exu. Desde o tráfico de africanos para as Américas, tanto Signifyin(g) como Exu se veem associados à triangulação identitária, composta por tradição, migração e tradução. Assim, o encontro envolvendo os dois elementos – o literário da Signifyin(g) e o racial de orixá – se alicerça na eventualidade do diálogo entre dois fenômenos distintos com vistas a gerar uma terceira situação. No âmbito literário da Signifyin(g), a conversa entre dois textos negros contribui para com o nascimento de uma terceira obra. De forma semelhante, na esfera racial de Exu, o diálogo entre os deuses e os homens desemboca na inevitabilidade de uma terceira orientação. Nos dois casos, a terceira alternativa gerará sempre mais significado. Através da Signifyin(g), o encontro de dois textos negros tende a gerar um terceiro texto. Sob o auspício de Exu, a aliança entre as entidades e os humanos desembocará em um terceiro momento auspicioso de comunicação. Diante da triangulação envolvendo a Signifyin(g) e o orixá, se pode proclamar que, de acordo com a experiência filosófico-religiosa em Yoruba, “dois, isto se torna três”. Em outras palavras, a união dos dois elementos em negociação vai desembocar em um tertius que pede para nascer. Diante da triangulação, pode-se afirmar, então, que o mundo negro, tanto na perspectiva literária quanto na arena racial (religiosa), se articula em eterno movimento, o que acarreta mobilidade identitária.

Assim, a tese que sustenta o processo triangular sob a realidade do enunciado “dois, isto se torna três” pode ser lida nestes termos: “uma tradição se move para a tradução por meio da migração”. Aqui, os termos tradição, migração e tradução se erigem nas relações raciais que são capazes de estabelecer. Por isso, o que se depreende da tese é que, do encontro entre tradição e migração, surge a tradução. Assim, a tradição como entidade original, quando tangida pela migração, abandona seu estágio original e alcança a fase futura da tradução. Assim, a tradução negra – a literária com a Signifyin(g); a racial com Exu – é sempre o que se deseja. Como resultado, tradição, migração, tradução são os termos básicos que compõem o fenômeno tanto da tradução racial (com Exu) quanto da textual (com Signifyin(g)).

Esta análise sugere que a literatura negra é um dos loci, onde se manifesta, de forma concreta o enunciado “dois, isto se torna três”, a partir da combinação de uma tradição, uma migração e uma tradução. Estudos intercontinentais (África, Américas, Caribe, Europa) e interlinguísticos (Inglês, Francês, Português, Espanhol) anteriores desenvolvidos pelo pesquisador, envolvendo escritores negros já demonstram a plausibilidade da abordagem. (MARTINS, 2013) Nestas reflexões que, ora se desenvolvem, o romance Io, Venditore di Elefanti de Pap Khouma (1990/2015) e sua tradução inglesa I Was an Elephant Salesman de Hopkins (2010) para o texto oferecem os elementos textuais e raciais que possibilitam a averiguação do alcance da tese que, não só problematiza os liames translacionais entre tradição, migração e tradução, mas também potencializa as características identitárias da mobilidade sob os auspícios da expressão “dois, isto se torna três”.

 

Io, venditore di elefanti (Eu, Vendedor de Elefantes), de Pap Khouma

Na análise do romance, esta discussão procura demonstrar os dois estágios tradutórios pelos quais passam personagens negros e textos negros, como acontece com o senegalês Pap, narrador do romance de Khouma, Io, Venditore di Elefanti. Racialmente, o cidadão senegalês que deixa a África e se estabelece na Itália avança da tradição africana para a tradição na Itália, através da migração. Linguisticamente, o romance se desloca da tradição textual em língua italiana para a tradição textual em idioma inglês pela migração linguística. Neste sentido, pode-se dizer que, resumidamente, o romance Io, Venditore di Elefanti é a narrativa do africano Pap Khouma que migra do Senegal, se estabelece em Milão (Itália) e, ali, narra sua historia de migrante e aquelas experiências de alguns amigos conterrâneos.

Pap abre o relato pessoal, confirmando a identidade de migrante senegalês em solo europeu. Realça que

Vengo dal Senegal. Ho fatto Il venditore e vi raconteró che cosa me è successo. È un mestiere difficile, per gente che ha constanza e una gran forza d’animo, perché bisogna usare le gambe e insistere, insistere anche se tutte le porte ti vengono sbattute in faccia. Io non so quali siano le virtù principali di un buon venditore. Noi del Senegal ne possediamo tante. (...) Vendendo abbiamo guadagnato i soldi per mangiare e dormire al coperto. (...) Vendendo ho anche imparato l’italiano. (KHOUMA 2015: 11-13)3

Além da nacionalidade senegalesa, Pap revela a atividade de vendedor que desenvolve e o que lhe advém durante a prática de venda de elefantes e outros objetos de pequeno valor. Sugere que vender é oficio difícil porque exige andança, esforço e persistência, tendo em vista a resistência de potenciais clientes em adquirir os “elefantes”. Insiste em que a venda de elefantes é o que garante a todos senegaleses algum dinheiro, a comida e o abrigo. O coroamento da ingente luta em terra estranha, todavia, não é apenas a sobrevivência, mas essencialmente o ganho cultural, confirmando que “vendendo ho anche imparato l’italiano” [“vendendo também aprendi o italiano”] (KHOUMA 2015: 13).

A mobilidade intercontinental (entre África [Senegal] e Europa [Itália]) e os deslocamentos na cidade de Milão em função da atividade de venda de artesanato aproximam Pap e senegaleses da ideia de “celebração móvel”, proposta por Hall (2006), quando o intelectual jamaicano se dedica à conceituação de identidades culturais na pós-modernidade. Aproximo, aqui, os movimentos de tradição, migração e tradução às identidades culturais de que vale Hall para caracterizar a conceituação de “celebração móvel” na qual insere a construção de identidade de sujeitos pós-modernos. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’”, escreve Hall (2006), quando estabelece que a identidade é

Formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e, não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações são continuamente deslocadas (HALL 2006: 13).

Das palavras de Hall (2006) depreendem-se alguns elementos. Primeiro, temos a ideia de que a identidade é historicamente estabelecida em sistemas culturais aos quais se pertence; depois, revela-se a diversibilidade, a diferença, no espaço de um “eu-incoerente”; em seguida, as contradições identitárias que se movimentam por direções diversas com o fim de provocar identificações em constantes deslocamentos. O pensador jamaicano conclui sua formulação teórica com afirmação categórica a respeito da nossa inocência identitária. “Se sentimos que temos uma identidade unificada”, esclarece, “desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’” (HALL 2006: 13)

A partir da posição teórica de Hall (2006) envolvendo a “narrativa do eu”, assume-se que, no romance de Khouma (1990/2015), Io, Venditore di Elefanti [Eu, Vendedor de Elefantes], as identidades culturais de Pap e dos senegaleses se elaboram como “narrativa do eu” dos vendedores de elefantes que perambulam pelas ruas de Milão, durante as vendas de seus objetos africanos. O relato pessoal do senegalês em terra estranha assume três estágios distintos, funcionando como válidas estratégias de sobrevivência em mundo hostil. Um estágio identitário se alicerça na busca unidirecional da cultura local. Esta referenda o movimento em direção à experiência cultural ocidental que vamos nominar, aqui, de Italianidade. O desejo de angariar aspectos da vida italiana os motiva fortemente porque o grupo de senegaleses percebe na Italianidade desejada vantagens estratégicas e práticas que lhes faltam como, por exemplo, o “Permesso di Soggiorno” [Permissão de Permanência), documento de estadia legal no país. Pap esclarece esta opção, escrevendo, a respeito dos resultados obtidos: “molti restano, lavorono ... conoscono dele ragzze italiane ... nascono bambini” [“muitos permanecem, trabalham ... conhecem garotas italianas ... crianças nascem”] (KHOUMA 2015: 143). O segundo estágio identitário se opõe ao primeiro,  no qual outros vendedores desprezam as benesses antevistas na Italianidade pelo primeiro grupo de senegaleses. Este contingente de migrantes ainda aspira reaver seus valores culturais originais, deixados no Senegal.  Este tipo de narrativa engloba mobilidade no sentido do mundo cultural africano que pode-se designar como Senegalidade. Retomar a vida senegalesa os seduz alegremente, porque esperam encontrar ali “i veri elefanti senegalesi” [“os verdadeiros elefantes senegaleses”]. Pap avalia esta narrativa alternativa, esclarecendo que “molti ragazzi stracciano i loro permessi di soggiorno e tornano in Senegal, perché non ne vogliano piú sapere dell’Italia” [“muitos rapazes destroem suas permissões de permanência e retornam ao Senegal porque não querem mais saber da Itália”] (KHOUMA 2015: 143). Assim, a relação dicotômica entre a Italianidade desejada e a Senegalidade retomada se estabelece na dupla “narrativa do eu” dos vendedores de elefantes, não apenas gerando impasse, mas lançando antagonismo identitário nas hostes dos migrantes senegaleses que se encontram em Milão.

A pergunta que cabe aqui é como desafiar a polaridade identitária que separa os dois grupos de senegaleses que, um dia se encontraram em Milão. A resposta vamos encontrar também em Hall (2006), quando o teórico dos estudos culturais admite que a construção da identidade cultural se articula como “celebração móvel”, implicando mobilidade e festividade. Como resultado, se a Italianidade ou a Senegalidade congelam a “narrativa do eu” do migrante em um ou outro extremo, impedindo mobilidade e celebração, os vendedores de elefantes nunca se conformarão à equação “dois, isto se torna três”, que Gates (1988) propõe para Exu. Em outras palavras, através da triangulação percebida no orixá, Gates insta a que se deixe o “dois” e se avance para o “três”. Ou seja, espera-se o movimento na direção da fusão entre Italianidade e Senegalidade, ou seja, na busca de uma espécie Seneglianidade. Na verdade, Seneglianidade é a crioulização possível e desejável se o desejo for obter uma percepção da identidade cultural como a “celebração móvel” de Hall. Recorro, agora, à tese cara a Glissant (2005) de que “mundo se criouliza”, isto é, “as culturas do mundo colocadas em contato (...) transformam-se, permutando-se entre si”. (GLISSANT 2005: 18) Glissant esclarece, então, que “a crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação, “se intervalorizem”, ou seja, “que não haja degradação ou eliminação do ser nesse contato e nessa mistura, seja internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente, de fora para dentro” (GLISSANT 2005: 22). Um momento de crioulização entre um italiano e um senegalês se verifica na citação abaixo: “il poliziotto si avvicina. Batte una mano sulla spalda del mio cliente: “Ma compra, spilorcio, non far perdere tempo a questo ragazzo”. (...) Ho un ottimo ricordo di Trezzano: vendo sempre, in qualsiasi posto capiti. (KHOUMA 1990/2015: 92).4

Na conjunção entre a “celebração móvel” de Hall (2006) e a equação de Exu de “dois, isto se torna três”, proposta por Gates (988), a mobilidade identitária do sujeito negro se realiza do passado para o presente para o futuro. O “três” é o futuro (o ainda não nascido), enquanto o “dois” se divide entre passado e presente. Para efeitos da análise romanesca buscada aqui, postulo que, no romance Io, Venditore di Elefanti, se articulam dois tipos de “celebração móvel” halliana: uma racial e outra textual. A racial procura dar conta das triangulações identitárias dos negros senegaleses; a textual se interessa em avaliar as triangulações identitárias do texto romanesco, em seu deslocamento da língua italiana para o inglês, a língua para a qual se transfere a tradução. Para caracterizar as triangulações raciais, me valho de três noções: Negrice, Negritude e Negritice. Ao me ater às triangulações textuais recorro a três conceitos, também: Paralatio, Similatio, Translatio. Tanto na tradução racial quanto na tradução textual, Italianidade, Senegalidade e Seneglianidade estarão contempladas.

 

Identidades racias e textuais: em busca da crioulização

As contribuições conjuntas da Signifyin(g) e Exu para a análise do romance de Khouma (1990/2015) e sua versão inglesa pedem aqui a definição dos dois termos. Para tanto recorro a Gates (1988) que, de forma seminal, estabelece os aspectos raciais que aproximam Signifyin(g) e Exu. Quando explica a Signifyin(g), Gates esclarece que “a tradição negra tem dupla voz. A figura do Livro que Fala – os textos de dupla voz que falam uns com os outros – é a metáfora unificadora deste livro. A Signifyin(g) é a dupla voz, referendada pelas imagens de Exu em esculturas como portadoras de duas bocas” (GATES 1988: XXV). Possuir duas vozes (Signifyin(g) e ter duas bocas (Exu) são os elementos que irmanam o conceito e o orixá.  Por isso, de forma semelhante, Gates reconhece em Exu a dupla vocalidade, quando considera que o orixá possui duas bocas, podendo, assim, conjugar dois mundos, somando-os. Para Gates, “se a pluralidade efetiva uma forma do poder de Exu, o segundo aspecto é seu poder de conectar as partes. Exu é a soma das partes, tanto quanto é aquele que conecta as partes”  (GATES 1988: 37).

Com base na dualidade vocal da Signifyin(g) e de Exu, proponho, a partir de agora, a análise da tradução – racial e textual – a partir do romance de Khouma como concretização do fenômeno interracial e intertextual “dois, isto se torna três”. Parto da associação da voz negra com a voz branca, caracterizada pelo conceito da Negrice em conjunto com a relação da voz textual do italiano com a voz textual do inglês, simbolizado no conceito da Paralatio.

O excerto selecionado

NEGRICE: Finché scoppia la notizia: alla fine del 1986 si sparge la voce di una legge speciale che consentirebbe a tutti i clandestini di fruire del permesso di soggiorno. (...)  Un bel giorno mi cade l’occhio sopra un manifesto dei sindicati. Parla proprio del nostro permesso di soggiorno. Gioia immensa. (...) Riesco persino a promuovere un incontro: siamo solo quattro. Ma i quattro ne convincono altri. Per la prima riunione quasi ufficiale, in una sala che ci ha concesso il sindicato, siamo in dodici. Nasce la nostra associazione. (Khouma Io, Venditore di Elefanti 2015:121-122).5

PARALATIO: Things proceed like this until the news breaks at the end of 1986. Word has it that a special law is going to allow all illegal immigrants to have a permesso di soggiorno. (…) One glorious day I spot a poster put up by the labor unions. It’s all about our permessi di soggiorno. An immense joy comes over me. (...) I even manage to organize a meeting. It’s just the four of us. But we four convince others and so there are twelve of us at the first meeting, which we hold in a room that the union has given us for the occasion. Our association is born. (Khouma trad. R. Hopkins 2010:117).6

mostra como os senegaleses estão envolvidos na posse de valores culturais italianos. Seu desejo de adquirir valores estrangeiros é chamado de Negrice. A Negrice é uma estratégia de sobrevivência em um país estrangeiro. A Negrice também pode ser conhecida como assimilação racial. A coisa boa sobre assimilar a cultura de outra pessoa é que você se abre para o outro. A desvantagem é que você tende a ignorar os valores culturais que trouxe do seu país. Esse jogo entre a aceitação do estrangeiro e a rejeição a valores autóctones permanece na base do conceito de domesticação racial ou cultural. No romance de Khouma Io, Vendetore di Elefanti, a Negrice dos senegaleses é marcada pela diferença entre os negros que são e os negros que querem ser, na Itália. O desejo de se tornar italianos, ou de possuir os bens culturais do país ocidental, encontra um forte expediente para perceberem-se como italianos: Il Permesso di Soggiorno (Permissão de Permanência), ou o documento legal que conferiria a eles o direito de ficar na Itália, de ali viver, com status quase igual àquele que os cidadãos italianos possuem. Desejando obter a autorização de residência, organizam-se encontros de senegaleses, realizam-se reuniões e, com a ajuda do sindicato, cria-se a uma associação. Ao se tornarem italianos, os senegaleses com i loro Permessi di Soggiorno, se distanciam de Senegal e, conseqüentemente, se tornam diferentes dos senegaleses que ainda não possuem, ou não desejam obter, o certificado legal.

Similar à Negrice, a Paralatio, ou domesticação textual, é marcada pela diferença entre texto fonte e texto alvo. O italiano é a língua da versão original do romance e o inglês é a idioma para a qual o texto original é traduzido. A diferença lingüística entre o idioma de origem e a língua de destino é a característica mais valiosa da Paralatio. Chesterman (1997) confirma que "tradutores são agentes de mudança. Os tradutores, de fato, primam pela diferença "(CHESTERMAN, 1997: 02). A diferença na tradução paralática é baseada em três expedientes translacionais: a sinonímia, que é o significado das palavras; a sintaxe, que dá conta da estrutura das sentenças; a pragmática, que faz referência à eliminação, ou adição, de termos na sentença. No âmbito da sinonímia paralática, a tradutora Rebecca Hopkins distingue a palavra [clandestini] da expressão [illegal immigrants], diferencia [bel] de [glorious], separa [sindicati] de [labor unions] e, para as palavras [incontro] e [reunione] valida o mesmo vocábulo [meeting]. Para dar visibilidade à domesticação paralática da língua italiana em inglês, como acontece na sinonímia, a sintaxe marca a diferença entre o texto fonte e o texto alvo. Sintaticamente, a tradutora americana Hopkins diferencia a frase italiana [si sparge la voce] de sua contraparte inglesa [Word has it]. Distingue, também, a sentença [que consentirebbe a tutti] de sua tradução como [is going to allow all],  substituindo o condicional italiano [consentirebbe] pelo futuro contínuo do inglês [going to]. Na tradução de Hopkins, a frase [I spot] não parece igual a [mi cade l’occhio]. Mais adiante, a frase [Parla proprio del] não é sintaticamente semelhante a [It’s all about]. Hopkins toma a locução italiana [in uma sala] e a transforma na frase [we hold in a room]. A frase ativa [nasce], Hopkins a rearranja na passiva inglesa [is born]. As diferenças semânticas e sintática entre o idioma de origem e o idioma de destino continuam presentes na Paralatio pragmática. Pragmaticamente, a tradutora Hopkins amplia a locução nominal italiana [Gioia immensa], transformando-a na frase inglesa [An immense joy comes over me], com o acréscimo de [comes over me], ausente no original. A palavra [quatro] é tratada pragmaticamente como a locução nominal [the four of us]. Finalmente, Hopkins diferencia a frase [Siamo in dodici], transformando-a na inglesa [there are twelve of us].

Se é verdade que, como afirma Gates (1988), tanto a Signifyin(g) como Exu são portadores de duplas vocalidades raciais e textuais, então se verifica, na Negrice, a primeira voz da diferença interracial e, na Paralatio, se constata a primeira vocalização da distinção intertextual. Nos dois casos, o poder de dominação se consubstancia, de um lado, na Italianidade, representada pelo “Permesso di Soggiorno”; do outro, na maneira como a tradutora Hopkins empodera as características lingüísticas e culturais do idioma inglês, em detrimento do italiano. Todavia, a dualidade da Signifyin(g) e de Exu procura equilibrar o pêndulo, fazendo com que se possa energizar o lado da dualidade enfraquecido, colocando a ênfase translatória na Senegalidade e na língua italiana.  

No excerto que segue,

NEGRITUDE: Vengo dal Senegal. Ho fatto il venditore e vi racconterò che cosa mi è successo.  È um mestiere difficile, per gente che ha costanza e una gran forza d’animo, perché bisogna usare le gambe e insistere, insistere anche se tutte le porte ti vengono sbattute in faccia. (Khouma Io, Venditore di Elefanti 2015:11).7

SIMILATIO:  I come from Senegal. I used to be a salesman. Let me tell you everything I’ve been through. It’s a hard job, selling, only for the thoughest in this world. You can’t be the type to give up easily. You have to use your legs and be insistent – even if they slam every door in your face. (Khouma trad. R. Hopkins 2010: 01).8

a Negritude, ou o certificado de orgulho racial de Khouma e de muitos senegaleses, manifesta-se claramente em sua associação a Senegal, a terra natal, e à sua atividade economicamente produtiva mais recorrente entre os imigrantes em Milão, a venda de elefantes africanos. Através da narrativa que o narrador desenvolve, percebem-se, de um lado, o distanciamento da Italianidade, representada pelo “Permesso di Soggiorno”, e, do outro, a aproximação à Senegalidade, metaforizada pelos elefantes.  Em relação ao ato de vender elefantes, o leitor é informado de que Khouma e amigos vendem várias coisas, ou os elefantes (os elefantes representam os objetos que vêm da África ou são semelhantes àqueles existentes no continente negro). É através da venda, que Khouma e os senegaleses destacam, não apenas a sua Africanidade, mas também o humanismo negro. Segundo Césaire, "a soma das experiências vividas" pelos africanos define e caracteriza seu "destino humano como a história fez" (CÉSAIRE, 2014: 81). O humanismo negro que Khouma e seus irmãos e irmãs negros representam na venda de elefantes é um ministério que exige vontade e resistência física, psicológica e racial por parte do vendedor africano. Como Khouma (2015) escreve, o vendedor senegalês precisa de "consistência e grande força" (KHOUMA 2015: 11), para sobreviver em sua dura trajetória diaspórica no Ocidente. Este poder interno e externo é ativado contra todas as portas que se fecham na face do vendedor africano. Por outro lado, a Similatio, ou o poder da língua italiana em relação ao inglês no ato de tradução, é representada pela manutenção de palavras, frases e estruturas da língua de origem no idioma de destino. Como a noção de Similatio sugere aqui, a tradução pretende manter as semelhanças linguísticas, culturais e textuais entre as duas línguas envolvidas no processo, fato que tende a distinguir a Similatio da Paralatio, cuja finalidade é estabelecer diferenças entre a língua A e a língua B. O caso inicial da tradução similática reside no nome do país mencionado. No nível lexical, a tradutora americana Hopkins mantém a palavra [Senegal] intacta em inglês. Outras decisões similares de Hopkins em relação a itens lexicais incluem as palavras [gambe], [porte] e [faccia] que são traduzidas para o inglês como [legs], [door] e [face], respectivamente. No nível da locução, Hopkins decide transferir para o inglês a expressão [anche se] como [even if]. No nível sintático, a frase italiana [Vengo dal Senegal] permanece similaticamente idêntica ao seu correspondente inglês [I come from Senegal]. Aqui, as palavras de Venuti (2002) servem para apoiar o processo de estrangeirização que envolve o conceito da Similatio e a tradução similática. O teórico da tradução sugere que o processo de estrangeirização, ou de descolonização na tradução textual, “obriga a língua e a cultura nacionais a registrar a estranheza do texto estrangeiro” (VENUTI, 2002: 155).

Embora se justifiquem na duplicidade negra e lingüística, os movimentos raciais e textuais, de um lado, na direção de uma tradição diferenciadora, patrocinados pela Negrice e pela Paralatio e, do outro, na rota da tradição garantidora de semelhança, não parecem suficientes para a efetiva realização da verdadeira tradução. No fenômeno caracterizado pela expressão de que “dois, isto se torna três”, a tradução que nos interessa aqui não se encontra associada ao “um” isoladamente, nem ao “dois” separado do primeiro, mas se efetiva no “três”, momento e lugar em que se dá a crioulização proposta por Glissant (2005). O pensador caribenho propõe um passo para além da dupla vocalidade de Gates (1988), quando enfatiza que é na crioulização que as culturas de raiz única tendem a ser controladas para dar lugar a culturas crioulizadas, ou “culturas compósitas (...) [onde se tem] a identidade como rizoma, a identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes” (GLISSANT 2005: 27). É na perspectiva rizomática do encontro de raízes (tradições) raciais, lingüísticas, culturais e textuais que vamos encontrar a identidade como “celebração móvel” de que fala Hall (2006). Para efeitos da análise que se segue, a mobilidade festiva se explica pelos conceitos da Negritice e da Translatio.

O excerto que segue,

NEGRITICE: In una paninoteca mi sono fatto amici i due baristi. Sono giovani e mi mettono a disposizione un tavolino, su cui espongo la merce. Loro mi fano anche pubblicità: “comprate qualcosa da questo ragazzo. Non potete andarvene senza aver comprato nulla”. Poi annotano su una lavagnetta il nome di chi tentenna o proprio non vuol comprare. Vanno avanti così tutte le volte che si fa vedere, finché non si arrende. Due ragazzi con un Citroen due cavalli si offrono di accompagnarmi a casa. (Khouma Io, Venditore di Elefanti 2015: 92).9

TRANSLATIO: I make friends with two guys working behind the counter at a sandwich shop. They’re young and they let me use a table to set up my stuff. They even advertise for me: “buy something from this guy. You can’t leave without buying something.” Then they write the names of the customers who hesitate or just don’t want to buy. They do this every time someone comes into the place until they give in. Two guys with a Citroën Deux Cheveux offer to bring me home. (Khouma trans. R. Hopkins 2010: 85-86).10

retoma a Negritice, que pode ser definida como a dupla consciência do sujeito negro. Em relação à duplicidade inerente à identidade do negro, a Negritice propõe, ao mesmo tempo, aliança com o pai ocidental e busca do pai africano. O excerto acima é o lugar literário racializado, em que a dupla consciência de Khouma e de senegaleses ocorre quando mantêm contato pessoal com cidadãos italianos enquanto vendem seus elefantes, nas ruas de Milão. Aqui, a Negritude dos senegaleses está associada à venda de objetos africanos e sua Negrice deriva do fato de que aceitam a ajuda do povo italiano. A narrativa de Khouma começa com a amizade que estabelece com dois baristas "em uma lanchonete". Na lanchonete, os jovens baristas italianos lhe fornecem uma mesa na qual pode exibir seus elefantes e outros produtos. No entanto, isso não é tudo. Os italianos também o ajudam a anunciar sua venda, convidando, e até ordenando, os clientes da lanchonete a adquirir os produtos senegaleses. Eles insistem, incessantemente, com seus clientes para que se tornem clientes de Khouma. Porém, se alguns resistem comprar algo do vendedor senegalês, os baristas escrevem seus nomes em um pedaço de papel, como forma de pressioná-los. É isso que os baristas fazem toda vez que Khouma chega para vender e há clientes na lanchonete. Além da cumplicidade dos baristas com a venda do Khouma, outros italianos se encontram no recinto para ajudá-lo e potencializar sua vida de vendedor de outras maneiras. Por exemplo, dois rapazes italianos decidem oferecer-lhe uma carona até sua casa em seu carro Citroën. Este tipo de solidariedade entre Khouma e alguns italianos, que decidem apoiá-lo em seu país, é vista por West (1994) como ação valiosa para tornar a vida e o mundo melhores. O que realmente acontece entre os baristas, os motoristas do carro e Khouma pode ser associado à noção de “ética do amor”, que West caracteriza dizendo que “é feita através da afirmação de seu próprio valor – uma afirmação alimentada pela preocupação dos outros: a ética do amor deve estar no centro de uma política” (WEST 1994: 29) do diálogo inter-racial. A venda de produtos africanos permite que a auto-afirmação de Khouma se desenvolva enquanto as preocupações dos italianos confirmam as preocupações dos outros com ele. Se a Negritice destaca a dupla identidade racial de uma pessoa negra como Khouma, que vive da venda de elefantes na Itália com a ajuda dos italianos, a Translatio começa a ser apreciada agora, como a dupla identidade linguística ou textual do romance Io, Venditore di Elefanti, de Khouma, quando, pela mão do tradutor Hopkins, o texto migra do italiano para o inglês. Esta dupla identidade translacional é realizada através de dois processos em operação conjunta, o da Paralatio e o da Similatio. No início, as diferenças paraláticas entre os dois textos e as duas línguas abrangem as variações lingüísticas envolvendo Sinonímia, Sintaxe e Pragmática. Começo com as diferenças semânticas lexicais, quando Hopkins transfere para o inglês as palavras italianas [baristi], [tavolino], [merce], [qualcosa], [nulla] e [finché] como [guys], [table], [stuff], [something] e [until]. Mais tarde, Hopkins faz as locuções paraláticas [in una paninoteca], [il nome di chi], [o proprio] e [tutte le volte] chegar à língua inglesa como [at a sandwich shop], [the names of the customers], [or just] e [every time], respectivamente. A sintaxe paralática é também uma preocupação de Hopkins. A tradutora verifica sua presença entre as frases italianas [mi mettono a disposizione], [espongo], [loro mi fanno anche pubblicità], [annotano], [vanno avanti], [che si fa vedere], [non si arrende] e [accompagnarmi] e le loro controparti inglesi [they let me use], [to set up], [they even advertise for me], [they write], [they do this], [someone comes], [they give in] e [to bring me]. Quando Hopkins lida com pragmática translacional, ou a inclusão ou supressão de um ou mais elementos linguísticos no excerto, ele suprime a versão correspondente da frase [su una lavagnetta], mas insere a frase [working behind the counter] na versão inglesa. As decisões similáticas de Hopkins, ou seja, aquelas que favorecem as semelhanças entre as duas línguas, são inicialmente encontradas em palavras. Os vocábulos italianos [amici], [giovani], [ragazzo], [nome] e [casa] repetem suas características lexicais nas palavras inglesas [friends], [young], [guy], [names] e [home]. Na esfera da Similatio locacional, pode-se relatar os casos de [due ragazzi] e di [Citroen due cavalli] que são traduzidos para o inglês como [two guys] e como [Citroen Deux Cheveux (sic)], respectivamente. A semelhança entre as frases [non vuol comprare], [(due ragazzi) ... offrono] e [don’t want to buy], [(two guys) ... offer] mostram o propósito de tradução da Similatio sintática.

 

Comentários derradeiros

Pode-se reafirmar, a partir de agora, que sob os auspícios teóricos e práticos da dubla vocalidade da Signifyin(g) e de Exu, os imigrantes senegaleses, que deambulam pelas páginas do romance Io, Venditore di Elefanti são acionados pela expressão “dois, isto se torna três”, que envolveu tradição, migração, tradução. A partir desta triangulação migrante, estabeleceram-se dois movimentos translacionais: (1) o racial que os levaram a passear da Negrice para a Negritude e para a Negritice; (2) o textual que ensejou a eles perambular por entre a Paralatio, a Similatio e Translatio. O resultado primacial deste duplo deslocamento foi a elaboração daquilo que Hall (2006) chama de “celebração móvel” quando se refere ao sujeito que “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL 2006: 13). Nesta perspectiva de deslocamento, as identificações interculturais dos senegaleses, em solo italiano, transitaram entre a identidade assimilacionista, a nacionalista e a catalítica ou híbrida. 

Porém, pode-se dar um passo adiante e ir além do fator racial para aceitar que o romance Io, Venditore di Elefanti, de Pap Khouma (1990/2015) compõe o que já se caracteriza, para alguns especialistas, como a literatura pós-colonial italiana, de responsabilidade de escritores e escritoras imigrantes que para o país se deslocam. Por exemplo, Parati (2010) reconhece a contribuição de imigrantes porque “transformaram radicalmente a paisagem humana, urbana e cultural da Itália” (PARATI 2010: XI). Sinopoli (2014) respalda a posição de Parati e avança alguns passos mais, quando esclarece que “a cultura italiana, em um sentido amplo, certamente está apenas no início de uma jornada cultural totalmente pós-colonial, que pode ser realizada mesmo sob a condição de que os trabalhos desses escritores sejam reconhecidos como totalmente italianos e não restritos a guetos editoriais, historiográficos ou críticos, projetados para eles” (SINOPOLI, 2014: 143) Da parte dos escritores imigrantes vem a palavra do próprio Khouma (1990/2015) que alerta para o aspecto de que “o fato é que agora suas obras gradualmente se tornam parte do patrimônio cultural italiano: abrir espaços de mídia para eles é um forte estímulo, um importante reconhecimento, uma forma de integração mútua. É uma grande riqueza cultural nesta época, atormentada pela mobilidade humana rápida e incontrolável" (KHOUMA 2015: 52)

Ao aceitar que a pós-colonização também inclui em si mesma tanto a colonização quanto a descolonização é, igualmente, recomendável a referência à Negrice e à Paralatio como partes da experiência colonizadora racial e textual, respectivamente; à Negritude e à Similatio como vivência descolonizadora racial e textual, respectivamente; e à Negritice e à Translatio como prática pós-colonizadora racial e textual, respectivamente.

 

Referências

CÉSAIRE, A. Nègre Je Suis, Nègre Je Resterai. Paris: Albin Michel, 2014.

CHESTERMAN, A. Memes of Translation. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1997.

GATES, H. L. jr. The Signifyin(g) Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1988.

GLISSANT, É. Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

KHOUMA, P. Io, Venditore di Elefanti: Una Vita per Forza fra Dakar, Parigi e Milano. Milano: Baldini & Castoldi, 2015.

KHOUMA, P. I was an Elephant Salesman. Bloomington: Indiana University Press, 2010.

MARTINS, E. J. Tradição, Migração, Tradução: Triangulações Raciais e Linguais na Literatura Afrodescendente Traduzida no Brasil. Florianópolis: UFSC, 2013.

PARATI, G. Introduction. In: KHOUMA, P. I Was an Elephant Salesman. Bloomington: Indiana University Press, 2010, p. XI-XV.

SINOPOLI, F. Storia e Memorie non Condivise: il Contrappunto nell’Identità e la Cultura Italiana Contemporânea. In: BRUNETTI, B & DEROBERTIS, R. Identità, Migrazioni e Postcolonialismo in Italia a Partire da Edward Said. Bari: Progedit, 2014, p. 135-151.

VENUTI, L. Escândalos da Tradução. Bauru: EDUSC, 2002.

WEST, C. Race Matters. New York: Vintage Books, 1994.

____________________________________

* Ensaísta, ficcionista, poeta, crítico e pesquisador, com dezenas de publicações no país e no exterior, José Endoença Martins é professor do Programa de Pós-graduação em Estudos Transculturais da UNIFACVEST. Autor, entre outros, de A cor errada de Shakespeare (2020); Enquanto isto em Dom Casmurro (2018); e Conversão de mulheres escravas em narrativas negras espirituais e políticas: autobiografia dentro da experiência literária negra (2020).


Notas finais

Incluem a tradução para o Português de citações e excertos em Italiano e Inglês.

[1] Como se sentem os clandestinos? Mal. Primeiro porque, entramos em competição com aqueles que estão tão mal quanto nós. Um imigrante sofre, se cala e padece, porque ele não tem direitos. Precisa reprimir toda reação dentro de si, esvaziar-se de toda personalidade. Sofre sabendo que essa é a única possibilidade. PAP KOUMA, Eu, vendedor de elefantes, 2015: 14.

[2] Como é ser um imigrante ilegal? Terrível. Principalmente porque você tem que competir com pessoas em tão má situação quanto você. Um imigrante precisa que aturar todos e tudo. Ele tem que ficar quieto e aceitar o pior de tudo, porque ele não tem direitos. Ele precisa reprimir todas as reações, esvaziar-se de sua personalidade e encarar o fato de que não há nada que ele possa fazer. REBECCA HOPKINS, Fui Vendedor de Elefantes, 2010: 04. 

[3] Sou do Senegal. Fui vendedor e vou te contar o que aconteceu comigo. É um trabalho difícil, para pessoas que têm consistência e grande firmeza, porque você precisa usar as pernas e insistir e insistir, mesmo que todas as portas se fecham na tua cara. Não sei quais são as principais virtudes de um bom vendedor. No Senegal, temos muitos. (...) Com a venda, ganhamos dinheiro para comer e dormir em ambientes fechados. (...) eu também aprendi italiano, vendendo. (KHOUMA 2015: 11-13).

[4] “O policial se aproxima. Pousa a mão no ombro do meu cliente: "mas compre, você fede, não perca o tempo desse rapaz”. (...) Tenho boas lembranças do Trezzano: sempre vendo bem, onde quer que eu vá. (KHOUMA 1990/2015: 92).

[5] Até a notícia ser divulgada: no final de 1986, o texto de uma lei especial se espalha, permitindo que todos os imigrantes ilegais obter a autorização de permanência. (...) Um dia meu olho cai em um anúncio do sindicato. Ele fala da nossa autorização de permanência. Imensa alegria. (...) consigo até promover uma reunião: somos apenas quatro. Mas os quatro convencem os outros. Na primeira reunião quase oficial, em um salão que nos concedeu o sindicato, somos doze. Nasce, então, a nossa associação. (Khouma Eu, Vendedor de Elefantes 2015: 121-122).

[6] As coisas seguem assim até que boas notícias chegam no final de 1986. Dizem que uma lei especial permitirá que todos os imigrantes ilegais tenham “autorização de permanência”. (...) Um dia glorioso. Localizei um cartaz colocado pelos sindicatos. É tudo sobre a nossa autorização de permanência. Sinto imensa alegria. (...) eu até consigo organizar uma reunião. Somos apenas nós quatro. Nós quatro convencemos os outros e, portanto, somos doze na primeira reunião que mantemos em uma sala que o sindicato nos cedeu para a ocasião. Nasce nossa associação. (Trad. Khouma. R. Hopkins 2010: 117).

[7] Sou do Senegal. Eu era vendedor e vou contar o que aconteceu comigo. É um trabalho difícil, mesmo para pessoas que têm perseverança e grande firmeza, porque você precisa usar as pernas e insistir, insistir, mesmo que todas as portas se fechem na sua cara. (Khouma, 2015, Eu, Vendedor de elefantes: 11).

[8] Sou do Senegal. Eu costumava ser vendedor. Deixe-me contar tudo o que passei. Vender é um trabalho difícil. Apenas para os mais fortes neste mundo. Você não pode ser daqueles que desistem facilmente. Você precisa usar as pernas e ser insistente – mesmo que batam todas as portas na sua cara. (Trad. Khouma. R. Hopkins 2010: 01).

[9] Em uma lanchonete, fiz amizade com os dois baristas. Eles são jovens e fornecem uma mesa em que exponho as mercadorias. Eles também fazem propaganda para mim: “compre algo desse rapaz. Você não pode sair sem comprar nada.” Depois, escrevem em uma quadro o nome de quem hesita, ou não quer comprar. Agem assim toda vez que o cliente aparece, até que ele ceda. Dois italianos com um Citroen dois cavalos se oferecem para me levar para casa. (Khouma Eu, Vendedor de Elefantes 2015: 92).

[10] Faço amizade com dois rapazes que trabalham atrás do balcão de uma lanchonete. Eles são jovens e me deixam usar uma mesa para mostrar minhas coisas. Até anunciam meus produtos: “compre algo desse rapaz. Você não pode sair sem comprar algo.” Em seguida, escrevem os nomes dos clientes que hesitam ou, simplesmente, não querem comprar. Fazem isso toda vez que alguém entra no local, até que o cliente compre. Dois italianos em um Citroën Deux Cheveux se oferecem para me levar em casa. (Khouma trad. R. Hopkins 2010: 85-86).


Texto para download