30 anos de leitura 1

Florentina Souza *

A literatura sempre carregou consigo uma aura de espaço discursivo restrito a alguns poucos. Arte da palavra que deveria ser pronunciada e escrita de acordo com a norma culta, a literatura brasileira esteve preferencialmente ligada àqueles que tiveram acesso à escola e faziam bom uso da tradição ocidental. Deste modo, no Brasil, as artes da escrita eram majoritariamente espaços de produção de homens, membros das classes privilegiadas econômica e socialmente, não pertencentes aos grupos étnicos negros ou indígenas – mesmo quando alguns deles eram descendentes de negros ou indígenas estas marcas eram esmaecidas por eles e seus pares, desejosos de constituir uma etnicidade homogênea – para galeria dos poucos tocados pelo dom palavra escrita.

Mesmo com obstáculos de toda ordem, os periódicos (jornais e revistas) constituem, desde o século XIX, uma das vias de expressão mais usadas pelos afrodescendentes no Brasil. Os textos de Luiz Gama e de José do Patrocínio publicados durante os anos da campanha abolicionista, as estratégias de inserção na vida político-cultural brasileira nas primeiras décadas do século XX implementadas pelos afrodescendentes e uma série de jornais publicados pela chamada “imprensa negra” confirmam que os afro-brasileiros, desde então, procuravam manifestar suas ideias e formar opinião também através da seleta linguagem escrita.

Por outro lado, estudiosos das culturas africanas têm afirmam que a palavra (falada) também é estruturante e elemento de preservação dessas tradições: A característica essencial das culturas africanas é a oralidade. Porque mesmo quanto se utiliza a escrita, a tradição que dissemos ser sinônimo de atividade apenas se expande autenticamente, na maioria dos Africanos, pela oralidade.

(SOW, Alpha I. et al., 1980, p.114).

Para essas culturas, a palavra, uma vez proferida, é uma energia nem sempre controlável e interfere na existência. Daí a necessidade de quem as pronuncia deter os conhecimentos necessários para que faça bom uso da energia-palavra, posto que ela é capaz de engendrar situações/fatos, tanto construtivos quanto destrutivos. Tal é seu poder que se for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu proferidor.

(Oliveira, 2003, p. 45).

Assim, embora a tradição historiográfica ocidental privilegie a escrita como forma de expressão literária por excelência e a partir deste pressuposto exclua as tradições africanas, por exemplo, do campo da produção literária, se abrimos o foco de nossos estudos para além da estreiteza da tradição ocidental hegemônica, perceberemos que outras tradições fizeram da palavra, nem sempre escrita, um exercício de saber e de poder. No campo do estético ou no campo do sagrado, a palavra falada, nas tradições africanas foi e é espaço produtivamente utilizado como perfomático e pedagógico; sinal de autoridade e espaço para transmissão e atualização de saberes de toda ordem.

A produção literária que nos propomos a apresentar transita entre as tradições de origem africana ressemantizadas na diáspora e a tradição ocidental também ressemantizada na experiência colonial e é justo neste embate que ela se constitui. É com o intuito de ressaltar este processo de criação e de apoderar-se do sistema de representação escrita, tentando reverter lugares depreciativos destinados aos afrodescendentes e sua cultura que, em 1978, um grupo de oito jovens afro- brasileiros lançou, em São Paulo, o primeiro número dos Cadernos negros (CN) – uma antologia de contos e poemas de autores autodenominados afro-brasileiros nos quais são contemplados vários temas do cotidiano e da história do negro no Brasil.

Na primeira página do volume 1, os organizadores citam versos de Bélsiva, Lino Guedes, Solano Trindade, Carlos Assunção e Oliveira Silveira – poetas que antes de 78 já publicavam poemas em que enunciadores negros falavam de suas histórias, desejos e anseios de participar ativamente na vida política e econômico-social do país. Com oito autores, 34 poemas e 51 páginas, o primeiro número anuncia o Cadernos Negros 2 – contos.

Uma antologia de poemas e contos de autores negros em um país com tão alto índice de analfabetismo poderia parecer fadada a ter vida curta. Quem compraria? Quem leria tais textos? Estas podem ter sido questões levantadas por alguns à época. Entretanto, nem sempre a vida acontece de acordo com as previsões da lógica... o inusitado, o imprevisível ainda bem que existem... Mas não podemos atribuir apenas ao inusitado o fato de a antologia Cadernos Negros alcançar a “maturidade” dos seus 30 anos. Os Cadernos, da década de 70 em diante, vieram preencher uma lacuna na produção editorial no Brasil, vieram ao encontro de expectativas de um público leitor que não se via representado nos textos de livros e/ou jornais e revistas que circulavam no Brasil pós-abertura política; a militância política não dava conta de questões que eram/são vividas mais intensamente por indivíduos que se autodenominam negros/as e são assim reconhecidos. Os versos de Oswaldo Camargo parecem estabelecer um programa de luta:

Estamos com a cara preta
rasgando a treva e a paisagem
minada de precipícios
velhos, jamais arredados!

(CN 1, p. 43).

Na curta apresentação do número 1, “Os autores” definem as estratégicas básicas do grupo, já que fica evidente o desejo de dar continuidade à publicação e de evidenciar as ligações com a África, assim como destacar o caráter empenhado da literatura ali apresentada... A proposta de definição do periódico, redigida há quase três décadas, é resumida:

Os Cadernos Negros surgem como mais um sinal desse tempo de África- consciência e ação para uma vida melhor, e neste sentido, fazemos da negritude, aqui posta em poesia, parte da luta contra a exploração social em todos os níveis, na qual somos os mais atingidos.

[...]

È a Diáspora Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mão o livro. (CN 1, p. 3).

O segundo volume, composto de contos, tem a participação de 12 autores e o texto de apresentação é assinado por José Correia Leite, militante dos anos 30 na imprensa negra. Correia Leite, na sua apresentação, puxa um fio histórico para ligar as atividades do seu grupo das décadas de 20 e de 30 e as produções dos jovens do quase final do século XX: “foi destes devaneios, das tertúlias literárias nas colunas da chamada imprensa negra, que extravasaram os anseios para o alvorecer de uma luta de fundo ideológico, e que ficaram indeléveis em nossa memória” (CN 2, p. 3). Para Leite, o trabalho com o texto literário constituía um passo para a luta política que, segundo ele, no passado não conseguiu atingir os objetivos desejados.

Os CN seriam uma possibilidade de “continuação daqueles ideais que ficaram perdidos no passado”. Desse modo, os CN “nascem” mostrando e assumindo a cara negra como marca identitária que é ratificada na capa do primeiro número, em que aparece a foto de uma favela emoldurando em primeiro plano, a foto de quatro crianças negras.

O segundo volume traz a foto dos 12 autores dos contos e mais a foto do autor da apresentação e do autor da capa como a reiterar a opacidade da produção e afirmar “estamos com a cara preta/rasgando a treva e a paisagem”. A inserção do rosto, ou melhor, do corpo negro nas folhas da antologia, inscreve alguns lugares assumidos pelos autores dos textos. Um lugar marcado pela cultura e pela etnia – são escritores negros que produzem uma escrita que também se define negra. Vale ressaltar que o corpo negro, na tradição ocidental, não é costumeiramente representado com o corpo do trabalho intelectual, como a mão que escreve... mas sim como braços e mãos do trabalho doméstico, desprezados por esta mesma tradição. Ao inscrever um foto do corpo negro no texto literário, explicita-se um lugar de enunciação, coloca-se na frente da fotografia dos componentes da brasilidade um dos rostos que ficavam atrás, um corpo e uma tradição que se quis/quer apagar ou esmaecer, já que a sua presença traz lembranças históricas incômodas e indesejáveis. A presença do corpo negro “não domesticado”, não controlado representou uma ameaça para as tradições coloniais e mesmo pós-coloniais.

Símbolo da selvageria e descontrole, o corpo negro, o corpo do outro é desejado e apreciado quando mudo... ou emudecido, mas os textos dos Cadernos fazem questão de evidenciar fala e corpo, escrita e corpo, obrigando a desalojar do conforto figuras, palavras e conceitos preestabelecidos.

Os escritores dos CN investem também em discussões teóricas sobre funções da literatura, tema constante de inúmeros compêndios de teoria da literatura: a literatura tem compromisso com o social? O texto literário deve falar apenas de “certos temas universais?” A luta contra o racismo e as discriminações seria um tema universal? A literatura pode falar do cotidiano triste e pobre dos homens e mulheres simples? Seriam estas discussões da alçada exclusiva de intelectuais das ciências humanas? Podem a teoria e a crítica debruçar-se cobre estas questões?

Tais questionamentos podem ser lidos como marcos de mobilização para que, em 1985, os escritores negros se reúnam com o intuito de discutir propostas para a literatura brasileira e para a literatura negra no Brasil. Neste contexto de debate crítico, é publicado, em 1985, o livro Reflexões sobre a literatura afro- brasileira, de autoria do Quilombhoje; e em 1986, o Criação crioula, nu elefante branco em que, segundo texto de apresentação redigido pela comissão organizadora, discutem-se dois temas básicos:

“Intervenção dos Poetas e Ficcionistas Negros no Processo de Participação Política” e “Avaliação Crítica da Produção Literária dos Últimos Dez Anos” – preocupações já presentes no livro de 1985. Os 20 textos publicados trazem a debate as duas questões teóricas acima citadas, explicitando o que cada poeta entende por literatura negra. Pelos registros percebe-se que não havia unanimidade no entendimento dos escritores. Ao refletirem sobre os seus trabalhos os poetas instauram um produtivo campo teórico- crítico, fora das instâncias acadêmicas.

Além de debaterem entre si, os organizadores dos CN fazem participar da discussão pessoas ligadas aos movimentos negros para que elas também exponham o que entendem por literatura negra. São estudiosos afrodescendentes, compositores, dirigentes de blocos, enfim um diverso grupo de pessoas que, nas orelhas e prefácios dos volumes, discutem, junto com os organizadores, a importância da produção, tecendo um conjunto de reflexões teóricas sobre a literatura afro-brasileira.

O prefácio do número 3 é assinado pelo escritor Clóvis Moura que, já nas primeiras linhas, estabelece uma relação entre luta contra a discriminação racial e escrita literária negra e propõe:

Estes poemas devem ser vistos e lidos, portanto, mais nesse sentido, coletivamente, isto é, como prova de que à medida que o negro luta no pano político e social, os elementos da criação literária adormecidos ou reprimidos

• mais reprimidos que adormecidos – virão á luz com seu ethos próprio... (CN 3, p. 9).

Para o prefaciador, a literatura negra seria mantida pela “procura de raízes culturais africanas” que forneceria um caráter particular ao texto.

O número 5, de 1982, traz uma apresentação escrita por Lélia Gonzáles 2 , que relaciona literatura e questão cultural. No texto, a antropóloga chama a atenção para uma série de consequências desastrosas da experiência colonial para os indivíduos e as culturas que por ela passaram e mais, para a necessidade de levar-se a “questão cultural com todas a suas implicações” para o centro dos debates do movimento negro. E conclui :

E a voz do povo taí, [...]. Taí nesse esforço conjunto de jovens poetas que, enfrentam muitas dificuldades materiais, enfrentam sobretudo o silêncio ressentido da cultura dominante. Afinal, a voz do poeta é a fala do sujeito; com suas metáforas, ela diz muito além do que a consciência (dominante) se esforça por afirmar e fazer crer.…

(CN 5, p. 5 e 6).

O Volume 23 traz, na orelha, um depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô, presidente do Ilê Aiyê, que enfatiza a importância de compositores e escritores afro-brasileiros falarem de si e de suas culturas e conclui: “gosto dessa idéia de a gente estar construindo um quilombo contemporâneo e estar se encontrando pelos caminhos cruzando ideias e práticas. Colocando mais pedras no alicerce”. Percebe-se que a relação proposta entre quilombos e produção poética evoca o trabalho coletivo de resistência e reelaboração constante de diálogos que, segundo os historiadores, caracterizou os quilombos. O cineasta Joel Zito de Araújo escreve a orelha do número 27. Ali, além de narrar seu contato pessoal com os organizadores dos Cadernos quando saiu de Belo Horizonte para São Paulo, afirma o cineasta, o encontro com o periódico “viabilizou intensamente a minha mente, minha alma e minha identidade” e continua: “naquele convívio, eles me colocaram me contato com um mundo negro mais amplo, além das fronteiras nacionais”.

Flávio Jorge da Silva 3 destaca a importância da antologia na luta contra o racismo e afirma que os escritores “optaram por fazer da literatura um instrumento que influencia uma nova maneira de encarar a vida e de transformar a realidade, a partir de um olhar e de um modo de ser negro” (CN 21 – orelha) O Dj Hum e Jeferson De, respectivamente produtor musical e cineasta, também acentuam, nos volumes 28 e 26, a importância dos CN como espaço de memória e de recriação.

Os depoimentos que enfatizam a utilidade do texto literário para a constituição de outras identidades que não apenas a homogênea identidade nacional. São várias as possibilidades de leitura de sintaxes de constante reconfiguração de afrodescendência nos Cadernos Negros.

As apresentações, as orelhas, os depoimentos dos autores, os textos literários e as capas do periódico constituem marcos discursivos importantes a para a constituição de linhas teóricas que elaboram propostas de conceituação da literatura afro-brasileira acatadas pelos Cadernos Negros.

Os organizadores e os escritores que mais amiúde escrevem nos Cadernos expressam o desejo de lidar com a tradição literária, deslocando-a para tematizar assuntos que em geral, a literatura brasileira hesita em tratar de modo mais crítico.

Referências e citações a escritores canônicos ou estratégias mais explícitas de intertextualidade evidenciam o intuito de compor diálogos com a tradição literária canônica, ilustrado pelos títulos dos poemas de Márcio Barbosa: “O que não dizia o poeminha do Manuel” ou ainda o “Outra nega Fulô” de Oliveira Silveira”, entre outros.

Hoje, já no número 30, os Cadernos continuam discutindo e propondo conceituações para a literatura, para a literatura negra e, principalmente, fazendo da poesia e dos contos espaços produtivos de criação. Na apresentação redigida pelos organizadores, mantém-se o projeto de constituição coletiva de afrodescendência que ultrapassa as experiências do passado :

Cruz e Sousa, Lino Guedes e Solano Trindade foram poetas que se preocuparam com a questão racial. Cada um, na sua época, era uma voz isolada. Cadernos Negros ajuda a espantar a solidão do escritor e do leitor com sua existência calcada no esforço coletivo. É o espírito guerreiro dos ancestrais que está em cada poema, em cada autor deste livro.” (CN 25, p.14).

Os Cadernos negros, na diversidade temática que comportam, podem ser lidos como uma síntese das várias vertentes literárias contemporâneas. Alguns contos e poemas podem ilustrar o desejo de acentuar, explicitamente, a histórica função social da literatura, detendo-se na crítica social, abordando questões como a violência e as desigualdades sociais tão presentes no cotidiano das populações negras no Brasil. Os contos “O pão da inocência”, de autoria de Eustáquio Lawa, e “Margens Mortas”, de Jônatas Conceição, ou ainda “Temporal no barraco de Binho”, de Lepê Correia podem ser lidos nesta clave. Outra vertente da produção de Cadernos Negros procura pacientemente resgatar aspectos da cultura e memória afro-brasileiras. Visita os museus e as bibliotecas e principalmente aos arquivos vivos da tradição oral onde estão guardados nos acervos do narrador tradicional (cantadores e contadores, pessoas mais velhas) relíquias das tradições das congadas, do candomblé, dos orikis, dos contos.

São vários os escritores afro-brasileiros que fazem da sua produção textual um espaço para revigorar a memória das várias tradições afrodescendentes que circularam e se reconfiguraram nas zonas canavieiras ou de mineração durante o período colonial e continuaram sendo refeitas por todo o século XIX e XX.

Os poetas fazem da experiência vivenciada e transmitida de pai para filho um processo de constante reconfiguração/preservação simultâneo de tradições seculares transmitidas pela oralidade. É na alegria do contato propiciado pela narração oral de episódios e lições de vida entre os grupos africanos e da diáspora que circulam os valores simbólicos das tradições de sociedades que não tinham na escrita a sua principal forma de transmissão de saberes.

A memória é retomada como tema literário, relida em uma clave contemporânea que não apaga o seu tom de resistência e preservação identitária e interessa-se em criar outras vias de preservação e/ou resgate da tradição. A literatura é entendida como trabalho paciente escavação lírica, fincada na beleza e na memória, atingida através de um aprendizado criativo das tradições de cantos e contos, saberes e histórias, como sugere a poeta Conceição Evaristo em “De mãe”: O cuidado da minha poesia

aprendi foi de mãe
mulher de pôr reparo nas coisas
e de assuntar a vida

[...]

Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou, insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.

(CN 25, p. 36-7).

A coletânea apresenta ainda a literatura de crítica social, espada ativa na luta contra o racismo, a exclusão, as desigualdades sociais, poesia que sem abandono da exploração das potencialidades expressivas da língua, investe em fazer da palavra um instrumento de reivindicação de cidadania.

Por outro lado, encontramos ainda textos mais voltados para a releitura das tradições religiosas e culturais, seus autores acreditam ser esta uma outra forma de luta: apresentar para afro-brasileiros ou não a diversidade de aspectos culturais que foram obliterados pela tentativa de homogeneizar a cultura brasileira. Outra vertente propõe-se a resgatar a história do negro no Brasil, seleciona e organiza em outra sintaxe os fatos históricos, os heróis negros que se empenharam nas lutas por mudanças político-estruturais e que foram esquecidos pela história dita oficial e através de seus textos apontam a participação ativa dos negros e afrodescendentes na construção da comunidade imaginada Brasil e na produção de riquezas.

Não obstante, alguns críticos e teóricos recusam explicitamente qualquer qualificativo que enfatize o lugar étnico-racial de onde falam os escritores, advogando o caráter “incolor” da literatura e da arte. Mas como fazê-lo se desde os antigos a arte tem sido descrita como trazendo em si as marcas premeditadas e as inconscientes, as individuais e as coletivas das vivências de seus autores? Como esquecer que a ausência de um qualificativo explícito ratifica o que as convenções sociais estabeleceram como hegemônico?

Não acredito, portanto, que a literatura, como alma, não tem cor. É sabido que a literatura, em sua história na tradição ocidental, foi vista sim como arte universal que tratava de temas igualmente universais, leia-se ocidentais ou ocidentalizados.

Com a proliferação dos discursos nacionais, aceitou-se que, mantendo o caráter universal, a arte literária abordasse também aspectos da história particular dos povos.

Analisada sob uma perspectiva aurática, intocável mesmo em tempos da reprodutibilidade, de que fala Benjamim, a literatura não se desvestiu de uma posição senhorial. Imbuída de que lhe cabia a função de selecionar leitores, ciente de que o hermetismo garantiria o acesso de poucos, fosse pela inacessibilidade da leitura/escrita, fosse pela dificuldade econômica, excluiu de seu campo a literatura oral e todos outros “impuros” usos de recursos expressivos e estilísticos que a sua linguagem assumiu como se fossem a ela proibidos. Literatura oral, literatura popular, ensaios, crônicas foram por muito tempo tachados de menores, senão excluídos dos jardins das musas. As mudanças políticas e sociais, as transformações tecnológicas e da indústria cultural abalaram o pedestal da literatura e ela se viu obrigada a conviver com as “marcas sujas” da vida. Dos seus lugares desprestigiados, mulheres, afro-brasileiras/os, homossexuais, analfabetos juntamente a cultura de massa e a cultura popular atacaram o campo literário e reivindicaram para si a possibilidade de tematizar, no interior deste campo, questões e problemas sociais e passaram a conferir qualificações de etnia e gênero, por exemplo, à literatura.

O poeta Ele Semog em “Outras notícias” publicado no número 25, reitera o compromisso social:

Não vou às rimas como esses poetas

que salivam por qualquer osso.

Rimar Ipanema com morena

é moleza,

quero ver combinar prosaicamente

flor do campo com Vigário Geral,

ternura com Carandiru

ou menina carinhosa/ trem para Japeri.

Não sou desses poetas

que se arribam, se arrumam em coquetéis

e se esquecem do seu povo lá fora. (Melhores poemas, p. 58) Dialogando com uma tradição político-reivindicatória ou com as tradições popular e antropológica, escritores e escritoras afro-brasileiros/as que escrevem nos Cadernos negros adotam a designação, produzem textos nos quais as marcas de uma posição diferenciada na sociedade brasileira pululam aqui e ali... Não podemos falar de literatura negra como essencialização nem podemos atribuir a uma produção que resulta de experiências vivenciais diferenciadas nenhum traço de homogeneidade. Se existem aqueles que vêem na literatura um espaço para a denúncia das desigualdades sociais e suas vinculações étnicas ou como arma de combate contra o racismo e a exclusão, existem outros que com lirismo e sensibilidade combatem de outra forma: resgatam uma memória quase esquecida dos cantos religiosos, dos cânticos míticos, das festas e outras tradições que se reconfiguraram na diáspora e que hoje resistem nos textos inscritos nas memórias dos velhos, nas recordações às vezes imprecisas dos mais jovens, nos antigos casarios e nas ruínas das pequenas cidades e vilas que guardam segredos imemoriais.

Durante esses 30 anos, os Cadernos Negros publicaram textos de mais de uma centena de autores, alguns como Cuti e Jamu, estão publicando desde o primeiro número, embora não tenha textos em todos eles, outros começaram a publicar mais recentemente, entretanto, todos acreditam que a expressão literária comporta seus sentimentos, emoções, preocupações e problemas; acreditam na opacidade das palavras, principalmente da palavra literária que será sempre perpassada pelas histórias, pela vida, pelos lugares assumidos ou destinados aos indivíduos pela sociedade em que vivem; Deste modo, podemos dizer que todos podem ser autores do verso “Sou NEGRO como a noite” (Cunha CN 1, p. 5) e, citando o poeta De Paula, eles parecem pontuar: “Eu sei que o meu poema não basta, / mas ai do povo / que não tem seus cantores!”( CN3, p. 55).

A seleção de textos e autores que ora é apresentada tem por objetivo fornecer ao leitor um panorama destes 30 anos de Cadernos Negros. Contos e poemas escritos em épocas diversas refletem estágios diferenciados vivenciados pelos autores e autoras e pela organização da antologia. Os textos selecionados aparecem em ordem alfabética de autor e cobrem os números publicados do 1 ao 29 e também as duas seleções já publicadas: Os melhores Contos e Os melhores poemas dos Cadernos Negros. Observa-se na seleção que os números recentes foram mais contemplados, talvez porque aos organizadores interesse mais fornecer ao leitor uma visão da fase atual dos Cadernos Negros.

Embora os responsáveis pelos Cadernos, desde a sua criação, sejam escritores paulistas, os autores que publicam nos Cadernos Negros são provenientes de vários estados do Brasil. Entre os escritores fundadores porque presentes no primeiro número, podemos citar Cuti, Sônia Fátima Conceição, Jamu Minka, Oswaldo de Camargo e Henrique Cunha Jr.; todos possuem textos publicados nos últimos números dos Cadernos Negros como a atestar a fibra resistente das tradições afro-brasileiras.

A seleção de textos literários e críticos aqui apresentada faz parte do projeto

Cadernos negros Três Décadas, cujo objetivo geral é tornar acessível a leitores variados, como professores, estudantes, pesquisadores e interessados na produção literária de afro-brasileiros recortes textuais, fotográficos e críticos que registram a história do periódico Cadernos Negros – responsável, há 30 anos, pela divulgação de poemas e contos afro-brasileiros .

Como já o referimos, o periódico tem sido um importante veículo de circulação de poemas e contos de muitas autoras e autores negras/negros que têm na antologia o principal meio de divulgação de seus trabalhos. Os Cadernos Negros constituíram e mantêm uma rede de produção literária afro-brasileira que é parte importante do processo de formação de dicções e acervos histórico-literários de/sobre os afrodescendentes na contemporaneidade.

O produto apresentado pelo projeto, além de participar da constituição da memória das produções culturais afro-brasileiras, contribuirá ativamente para o processo qualificado de implementação da Lei 10 639 que torna obrigatório, nas escolas públicas, o estudo da história da África e dos negros no Brasil, assim como o estudo da cultura e da literatura afro-brasileiras. Ora, uma das reivindicações insistentes de professores e estudantes incide sobre a carência de textos e estudos que possibilitem ao professor a organização de projetos pedagógicos sobre os temas, haja vista que os assuntos citados não têm recebido grande atenção por parte dos organizadores de livros didáticos. Assim, a edição da coleção propiciará aos docentes e aos alunos a possibilidade de conhecer, ler e analisar exemplares significativos da literatura afro-brasileira e da crítica sobre os mesmos, assim como de acompanhar o processo produção textual de escritores/escritoras que escreveram/escrevem no periódico.

Pensar sobre a produção literária dos afro-brasileiros leva qualquer leitor, obrigatoriamente, a pesquisar a produção dos Cadernos Negros – a produção periódica de maior fôlego na história da literatura afro-brasileira.

Nos seus primeiros anos a edição dos Cadernos enfrentou muitas dificuldades para a produção e circulação dos textos. Como a edição era custeada apenas pelos próprios escritores, a tiragem era pequena e circulava principalmente em reuniões de entidades do movimento negro; somente a partir de 1994, consta da ficha catalográfica a participação da editora Anita Garibaldi, em co-edição com o grupo Quilombhoje que, desde 1983, é responsável pela edição do periódico.

Mesmo não constando das prateleiras das grandes livrarias, os Cadernos Negros ganham visibilidade e ampliam seus leitores entre os vários grupos e organizações negras que são fundadas no Brasil a partir das décadas 70/80 do século 20; seus editores e escritores organizam e participam de encontros de literatura negra e seus textos ampliam o campo de circulação de modo que hoje podemos encontrar vários trabalhos, dissertações e teses que têm como tema aspectos relativos aos Cadernos Negros tanto no Brasil quanto no exterior. Desse modo, os Cadernos Negros tornaram-se referência entre leitores comuns, afrodescendentes e não, e também entre leitores mais intelectualizados, a ponto de artistas, jornalistas, professores, rappers, cineastas citarem os Cadernos como marco nas suas vidas de leitores.

Entretanto, apesar da reconhecida importância na vida cultural brasileira, muitos números dos CN estão esgotados, não são encontrados nem mesmo em bibliotecas especializadas – o que dificulta a constituição da memória das produções afrodescendentes no Brasil. Seria importante que as bibliotecas das escolas possuíssem exemplares dos Cadernos negros para que seus alunos, afrodescendentes ou não, pudessem

conhecer momentos significativos e

diversificados de dicção literária afro-brasileira.

Por outro lado, embora a distribuição e divulgação tenham um relativo alcance nacional, o periódico ainda não atingiu o grande público brasileiro que nem sempre tem acesso a essas produções; uma reedição dos números já publicados é um modo de tornar esta produção acessível a um público maior em todo o Brasil e ainda de estimular jovens afrodescendentes para que escrevam e releiam de modo criativo as tradições afrodescendentes ou abordem de modo poético e/ou crítico aspectos do seu cotidiano e da história do Brasil. E mais, a divulgação destes textos pode concorrer para que a literatura brasileira amplie o cânone restrito, de modo a contemplar a diversidade cultural que compõe efetivamente a textualidade brasileira.

Referências

CADERNOS NEGROS: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2004, n. 1 a 29.

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987.

ALVES, Miriam, SILVA, Luiz (Cuti), XAVIER, Arnaldo (Org.). Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Imprensa Oficial, 1986.

CUTI. Sanga. Belo Horizonte: Mazza, 2002.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HALL, Stuart. New ethnicities. In BAKER et al. (eds.) Black british cultural studies.

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OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.

QUILOMBHOJE. Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Conselho de Participação e desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985.

Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. São Paulo: FUSP e Editora 34, 2003 (ed. facslimilar n.1 a 10).

SOUZA, Florentina. Afrodescendência em Cadernos negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

SOW, Alpha I. et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1980.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

1 Publicado no volume Cadernos Negros, três décadas, organizado por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa e comemorativo dos 30 anos de existência da série. São Paulo: Quilombhoje; SEPPIR, 2008.

2 Cientista social, professora da PUC Rio de Janeiro, militante que atuou no MNU, IPCN entre outras organizações de defesa dos afrodescendentes, autora de uma série de ensaios e artigos sobre o tema.

3 Militante e àquela altura, 1998, Secretário Nacional do Combate ao racismo do PT.

* Florentina Souza é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e professora do Instituto de Letras da UFBA, com atuação nos Programas de Pós-graduação em Literatura e Cultura e Estudos Étnicos e Africanos. É pesquisadora do Centro de Estudos Afro-Orientais, onde edita com Jocélio Teles a revista Afro-Ásia. Autora, entre outros, de Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU (2005).

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