Legados africanos na poesia de autores afro-brasileiros1

Assunção de Maria Sousa e Silva2

Há poucos registros da contribuição do/a autor/a negro/a na historiografia literária brasileira canônica, por isso é comum ser encarada com normalidade a inexistência de uma literatura afro-brasileira. Tal situação resulta da forma como a pessoa negra vem sendo tratada na sociedade brasileira desde a escravidão – como coisa ou ser inferior, além da maneira como se realizam as relações étnico-raciais marcadas pela ideologia do embranquecimento, no século XIX, agravada pela concepção do mito da democracia racial, a partir de meados do século XX, cujo propósito mascara os conflitos e tensões, acentua a discriminação e racismo perpetuados nas várias esferas sociais do século XXI.

Diante disso, não só a pessoa negra permanece fora do lugar de garantias de direitos de melhor educação, saúde, saneamento básico, trabalho bem remunerado, mas também do lugar de valorização efetiva como sujeito produtor de arte, contribuinte da matriz cultural brasileira. Assim, a arte realizada pela pessoa negra tende a dois caminhos de recepção: ou é aceita, mas silenciada e, desta forma, pouco dos seus autores conseguiram ou conseguem ser visibilizados como Aleijadinho, Luís Gama, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Cartola Mestre Didi outros; ou limitada ao cenário artístico popular, considerada pela elite cultural brasileira como de pouco ou nenhum valor estético como as manifestações musicais: samba, pagode, hip hop, axé, reggae e outros.

Não pretendemos nos deter na questão de valor, mas apenas ilustrar que, metonimicamente, o olhar diferenciado sobre a pessoa negra, historicamente construído, a partir do fenômeno da escravidão, repercute sobremaneira na forma de ver suas raízes culturais e de receber hoje sua produção artística. Esta muitas vezes, absorvida pelo mercado e o turismo brasileiros, passa a ser usada como veículo de reprodução da imagem do Brasil tropical, “abençoado por Deus e bonito por natureza” (BENJOR, 1969). Essa reprodução da imagem de Brasil multicolorido, multirracial, alegre e brejeiro nos remete a Bastide quando afirmara:

a passagem da condenação de uma raça, e mais ainda da mestiçagem para a condenação de uma instituição, isto é, a passagem do biológico para o sociológico, constitui um progresso inegável no sentido de um julgamento mais objetivo e mais científico sobre o papel do africano e de seus descendentes (BASTIDE, 1983, p.158).

É inegável a herança cultural africana na vida brasileira e vale lembrar isso não no sentido de conformação inebriante, mas de uma ressignificação da participação da pessoa negra na história e na cultura brasileira, equivalente a também contribuição da cultura indígena e européia.

Roger Bastide (1983), ao tratar da contribuição dos escravos e seus descendentes na evolução sócio-cultural da América Latina, expõe que ela se revelou na influência da linguagem; na cultura material; nas transformações dos Valores morais, sociais e políticos; na transformação da expressão artística sob a influência dos modelos de expressão africana e na invenção de novas religiões e novas formas de conhecimento do mundo, do homem e da sociedade e redimensiona a influência do negro na cultura latino-americana que não se deu apenas no folclore, mas também na literatura, na educação, no jornalismo e a ciência.

Poemas afro-brasileiros

No campo literário, os poetas afro-brasileiros se apropriam das expressões populares a exaustão, como no poema a seguir, a fim de evidenciar por este meio, a resistência aos padrões dominantes. Tais vocabulários e expressões originadas na oralidade africana semantizam sentimentos, atitudes, atividades, hábitos, costumes, festas, e a própria identidade étnico-racial. Lepê Correia usa substantivos dos mais variados campos semânticos que nomeiam pessoas, coisas, fatos, sentimentos, ação, imprimindo o ser na linguagem3 .

Cadu, calu, catimbeiro

Funileiro, catimbó

calixto, catimbozeiro

mandingueiro, fato, forró

barucajé, calundu

angu, cuscus, preto anun

Toré, Katé, Zé, Calunga

Ciência, maré, mundrunga

Malemolência adaké

Odum, futun, xequeté

Maculelê, Kiprocó

Zuada, zumba, cacimba

cabaça, cambinda, zoró

Fuzué, pixaim, munhanha

Caxinguelê na curimba

Tarimba, timba, filô

Aguágua era o negro ximba

kubata gonguê, pito.

(CORREIA, 2006, p. 36)

Tal poema ilustra a contribuição africana na linguagem. Bastide situara as modificações fonéticas, o enriquecimento da língua portuguesa com a introdução de vocabulário advindo do Quimbundo, Ioruba, Efik, Font, línguas africanas que deixaram rastro no contexto semântico da culinária, da medicina, da zoologia, da botânica, danças, instrumento de trabalho, meios de transporte e etc. Tal fenômeno levou muitos estudiosos, inclusive Mário de Andrade, a utilizá-lo em seu fazer literário, e muitas dessas variantes foram incorporadas na literatura, chamada, erudita; prevalecendo, contudo, como traço diferencial, como vimos, na poesia de autores afro-brasileiros.

Termos, expressões coloquiais dos escravos transmitidas no interior das casas brasileiras por amas-de-leite, pretas e pretos velhos e posteriormente por empregadas e empregados domésticos, passaram a ser utilizados nas relações afetivas, enquanto a linguagem do português padrão foi reservada às situações formais e cerimoniais. De tal modo que a linguagem dos “crioulos” (como denominavam os miscigenados) passou a ser uma variedade linguística falada por todos, tornando-se a linguagem popular brasileira.

Em “Dançando negro”, Êle Semog compõe um enunciado que autentica o eu poético negro pela fusão de ritmo e dança a fim de abstrair do sujeito qualquer espectro de reificação que reproduz a figura do negro como espetáculo exótico e produto exportável:

Quando eu danço

atabaques excitados,

o meu corpo se esvaindo

em desejos de espaço

a minha pele negra

dominando o cosmo

envolvendo o infinito, o som

criando outros êxtases…

Não sou festa para os teus olhos

de branco diante de um show!

Quando eu danço há infusão dos elementos

sou razão.

O meu corpo não é objeto

sou revolução (CN,1998, p. 57).

Já Cuti (Luiz Silva), no poema “Frequência”, apresenta o eu poético negro cujo corpo é extensão do som do tambor, que em estado de transcendência intui o direito de conquista de espaço cosmo, ciente, direcionado pela razão em busca de transformação política e social positiva, marcada pelo verso “mil sóis dentro de mim”: O som que nos irmana

o som que nos aquece

o som que nos reveste

de coragem pra vencer

tambor tão bom teu som

tam-tam batuque atã o teu doce poema

é toque é canto e dança

é lança é luta é gol

é vinda de Cabinda

do Golfo de Benin

é chuva de esperança

o sono no capim

a noite palpitando

mil sóis dentro de mim

(CUTI, Batuque de tocaia, 1982, p. 38)

A realização metonímica corpo-poema negro de Êle Semog de desconstrução de estereótipo e construção da imagem positiva do negro soa como processo de modificação que tal legado contribui para vigorar; enquanto o corpo-som-poema de Cuti clama a mescla, o imbricamento das forças cósmicas que transcende o corpo do sujeito enunciador negro e o faz ser em presença .

As criações e recriações literárias dos autores afro-descendentes estão intrinsecamente ligadas às concepções religiosas de matrizes africanas. No fragmento a seguir do poema de Salgado Maranhão, percebe-se como o poeta dimensiona a força dos ancestrais invocados no solo africano, dando vazão à presença desses no corpo poemático brasileiro.

Quando a África bate os seus tambores

os eguns [que são os espíritos dos mortos, dos ancestrais] desde a Costa do Marfim, desde o Tanganica

até o Mali

toda a ancestralidade vibra entre as estrelas e o chão (Voodoo) (MARANHÃO, 1989, p. 54).

A valorização das manifestações religiosas de matrizes africanas vem ocorrendo nos poemas de duas formas: por citação, como elementos constituintes do cenário em que o eu poético transita, ou por suplica à proteção, ao amparo para o enfrentamento das dificuldades ou situação social pela qual a população negra é afetada, como se revela no poema “Odo Xererê, Odoyá, Iemanjá” de Esmeralda Ribeiro que vem seguir:

Mãe de todos os orixás

protege a qualquer custo os nossos filhos

da faxina racial

é dia, é noite, não tem hora

pra ofertamos velas e flores

em seus caixões.

Há homens que saem às ruas pra brincar

mas o tiro ao alvo é pra matar

depois vêm com mimos que vão apurar

depois, só nós sabemos quantas ondas tem o nosso Mar.

Há homens que formam quadrilhas

vestidos de Deus supremo

fecham o círculo

e no centro estão aqueles de pele escura

na roleta-russa acidental

quem roda pra sempre

são as nossas emoções.

Odo xererê, Odoyá

“oh, Iemanjá, venha nos ajudar/ oh minha Mãe Iemanjá, com sua luz divina / Venha nos ajudar...”

(CN, 2006, p. 117)

A súplica reforça a crença nos ancestrais e revela o estado de exclusão e banimento do sujeito negro na arena da violência social brasileira. Sendo a morte a consequência brutal da faxina racial parece ser o poema o lugar da denúncia, da súplica e da resistência.

Considerações últimas

O legado africano nos poemas de autores afro-brasileiros constitui-se de elementos ricos e servem, sobretudo, para a preservação da memória e valorização dos costumes, ressignificação dos ancestrais e da presença negra na formação cultural brasileira. Os poetas cientes de sua função social permitem-se divulgadores de uma nova ordem de valores, visto que questiona o lugar do negro não só na literatura brasileira, mas nas outras instâncias e/ ou instituições sociais.

Segundo Sansone, a cultura negra pode ser definida “como específica subcultura de pessoas de origem africana dentro de um sistema social que enfatiza a cor, ou a descendência a partir da cor, como um importante critério de diferenciação ou de segregação das pessoas” ([on line] 2008: 2) e ainda retoma Mintz para enfatizar “a cultura negra é por definição sincrética” (Mintz apud Sansone, 2008).

Assim, evidenciamos, nesse artigo, como o/a poeta negro/a compromissado com suas raízes históricas revela uma poética de interlocução com seus iguais, recorrendo ao passado ancestral para poetizar o presente, buscando problematizar e questionar as relações étnico-raciais nos espaços que circulam. Os poemas de autores afro-brasileiros procuram negar a noção de subcultura dada à cultura negra e minimizam o aspecto sincrético que as manifestações populares revelam. Desde Caldas Barbosa aos poetas contemporâneos, há mudanças de perspectiva dos afrodescendentes. Enquanto poetas como Barbosa detinham-se a meramente ilustrar os traços culturais populares negros, outros como Solano Trindade, Oliveira Silveira e os aqui referidos tendem a traduzir pela arte a vivência do quotidiano, o sentimento do eu poético, como elemento intrinsecamente indispensável para a construção da identidade e da memória da pessoa negra brasileira.

Referências

BASTIDE, R. Sociologia. (Org.) QEIROZ, M.I.P. São Paulo: Ática, 1983.

CADERNOS NEGROS. Os melhores poemas. (Org.) Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 1998.

CADERNOS NEGROS. (Org.) RIBEIRO, E.; BARBOSA, M. São Paulo: Quilombhoje, 2006.

CUTI (Luiz Silva) Batuque de tocaia. Ed. do Autor, São Paulo 1982.

DUARTE, A. Heidegger e a linguagem: do acolhimento do ser ao acolhimento do outro. Natureza Humana 7(1): 129-158, jan.-jun. 2005. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v7n1/v7n1a04.pdf, acessado em 01/02/2009.

GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercício de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

MARANHÃO, S. Punhos da serpente. Rio de Janeiro, Editora Achiamé, 1989.

SANSONE, L. Da África ao Afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e nacultura popular brasileira durante o século XX. Disponível em http://www.clacso.org.ar/biblioteca em 22/08/2008.

SANTOS, L.C; GALAS, M.; TAVARES, U. Antologia da poesia negra brasileira O negro em versos. São Paulo: Moderna, 2005.

1Este texto reelaborado faz parte da comunicação intitulada “Manifestações culturais nos poemas de autores/as afro-brasileiros/as”, apresentada por mim no Encontro Internacional de Texto e Cultura / UFC, em out/Nov/2008. Também publicado no portal www.africaeafricanidade.com.br, em 2009.

2Professora Assistente UESPI/UFPI.

3Aqui entendida dentro sob a percepção heideggeriana, “concepção ontológica que pensa o homem como "sendo" por meio da linguagem, concepção que permite entender a linguagem não apenas como veículo de transmissão de informações, mas como o modo no qual se manifesta o próprio existir humano (DUARTE, 2005, 131)” 

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