Caminhos trilhados pelas personagens negras na literatura infantil brasileira: percalços e percursos

 

Débora Oyayomi Araujo*

 

Nossos passos vêm de longe...
Jurema Werneck

 

Eternizada por Jurema Wernek2 a epígrafe que anuncia este texto tem a intenção de reafirmar que da mesma forma que nossa trajetória, de povo negro na diáspora, vem de longa data, assim também é a nossa representação nas artes e, em especial para este texto, na literatura infantil. O objetivo aqui é refazer o percurso para avaliarmos quantos passos já foram dados por personagens negras3 no recente caminho da literatura infantil brasileira. Esse caminho, ainda que recente – pois essa literatura é jovem no Brasil –, foi marcado por obstáculos de diversas ordens, passando pelo direito à existência no texto até o reconhecimento de suas experiências estéticas nas narrativas. Mas, tem sido, independentemente dos percalços, um caminho trilhado e com o mesmo objetivo sempre: a busca por representatividade humanizadora. Por isso a necessidade de reafirmar que nossos passos vêm de longe.

A proposta, então, é buscar na história dessa jovem literatura momentos marcantes das personagens negras e suas principais características. Considerando

os passos dados como mote para pensarmos o trajeto, convido as leitoras e os leitores a imaginarem o quanto as personagens negras mais antigas dessa literatura infantil, confinadas em estereótipos, cenas de violência, subserviência e desumanização devem estar olhando a realidade atual que está bastante diferente para suas netas e seus netos. É, portanto, uma proposta de revisão do passado que hoje pode olhar com esperança para o presente e ansiar por novas e maiores conquistas para as próximas gerações de personagens negras na literatura infantil brasileira. Vamos segui-las!

  1. “Você não sabe o quanto caminhei pra chegar até aqui”. As configurações do racismo na produção literária infantil do século 20

Os caminhos trilhados por personagens negras na literatura brasileira endereçada ao público infantil historicamente foram marcados – assim como a literatura “adulta” – pelo racismo, configurado de maneiras diversas: por meio de estereótipos, sub-representação, exotismo ou, ainda, por total invisibilidade. É tanto que algumas autoras catalogaram esse processo em fases, as quais aqui brevemente serão retomadas.

A primeira fase refere-se ao período pioneiro da literatura infantil brasileira (início do século 20), quando duas tendências concorriam: uma produção “genuinamente” brasileira, com a ênfase de poemas e narrativas ambientados em contextos típicos (incluindo a fauna e a flora nacional); e uma produção estrangeira, com tradução pouco esmerada para o português (de Portugal), além de ambientadas em contextos distantes da realidade da criança daquele período. E, mesmo as crianças que detinham o direito e o acesso à leitura, possuíam um perfil bastante delimitado: brancas, abastadas e, principalmente, do gênero masculino.

Tanto em uma quanto na outra tendência da literatura dessa primeira fase prevaleceu uma característica em comum: a busca pela transmissão de valores burgueses, “civilizados”, de bons costumes e comportamento exemplar na sociedade. Assim, predominavam narrativas e poemas fortemente centrados no modelo familiar que Regina Zilberman (2003) chamou de “eufórico”, por privilegiar “os valores da existência doméstica, encerrando nelas as personagens infantis. Portanto transparece aqui uma euforia com a vida administrada pela família, que

lega a seus rebentos os principais padrões da sociedade” (ZILBERMAN, 2003, p. 209).

Nessa configuração, personagens negras eram praticamente ignoradas nas produções, já que havia um projeto de nação em curso e a população negra não estava incluída. Conforme nos lembra Maria Cristina Soares Gouvêa (2005, p. 84):

O apagamento do negro nos textos da época reflete uma mentalidade dominante voltada para os ideais de progresso e civilização. Procuravam-se eliminar os antigos hábitos urbanos, assim como afastar dos grandes centros os grupos populares, concebidos como focos de agitação e resistência à nova ordem social. Nesse quadro, o negro era percebido como herdeiro de uma ordem social arcaica e ultrapassada, ligada ao tradicionalismo, à ignorância, ordem a ser substituída por um modelo europeizante, calcado na ideia de progresso. A escravidão era representada como marca vexatória do passado de um país atrasado. Assim, a figura do negro, com seu corpo, suas práticas e sua história constituiria a presença incômoda da antiga ordem escravocrata, incompatível com o projeto de um país ‘civilizado’.

Somente a partir da década de 1920, aqui classificada como segunda fase, essa população começou a aparecer na produção literária infantil, mas, como toda a produção artística brasileira do período, por meio de representações estereotipadas, quando não em contextos de agressão física e verbal. Eram mulheres e homens negros retratados como “contadores de história”. Um exemplo recorrente em nossa memória literária é Tia Nastácia: embora exercendo papel significativo em muitas das tramas em que foi inserida nas obras de Lobato, era constantemente alvo de agressão verbal e física. Relembremos a seguinte cena, durante um diálogo entre Dona Benta e Emília, quando a segunda declara:

— Só aturo estas histórias como estudo da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras — coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto. (LOBATO, s/d, p. 26 [1937]).

Eram também característicos os estereótipos de idade: já que a representação do jovem negro estava marcada pela exclusão social (em decorrência da marginalização em curso sobre os corpos dos homens negros, principalmente)4,

foi a imagem do velho ou da velha negra que passou a habitar as produções literárias da segunda e terceira décadas do século passado. E tais imagens eram sempre carregadas de misticismo, ignorância, “subserviência e docilidade” (GOUVÊA, 2005, p. 86). Inclusive, é Gouvêa quem nos reapresenta a um exemplo dessa fase, por meio da obra O país das formigas, de Menotti Del Picchia:

Havia uma cabana escondida numa porção de árvores. Todos os que passavam por lá se benziam. É que corria a fama por toda a redondeza que ali morava um feiticeiro. De fato, o dono daquela cabana era um preto velho, muito feio, muito misterioso. (DEL PICHIA, 1932, p. 7 apud GOUVÊA, 2005, p. 87).

A mesma autora ainda caracteriza nessa segunda fase a reiteração do corpo negro animalizado. Uma prática recorrente, principalmente dos textos em prosa, era marcar racialmente as personagens negras através de suas características fenotípicas e, na maior parte das vezes, com conotações racistas:

Assim é que, enquanto o branco tinha ‘cabeça’, o negro ‘carapinha, ou carapinha dura’, o branco tinha ‘cabelo’ e o negro ‘pixaim’, o branco possuía ‘lábios’ e o negro ‘beiço’, ‘é beiçudo, tem gengivada vermelha’. O branco tinha ‘nariz’ e o negro ‘ventas’. O branco tinha ‘pele’ e o negro era ‘lustroso’. Da mesma forma, a branca ‘se sentava’ a negra ‘se escarrapachava’. (GOUVÊA, 2005, p. 88).

A terceira fase em que podemos caracterizar a condição das personagens negras na literatura infantil foi, também, marcada por estereótipos e violência racial. Fortemente influenciada pelas lutas dos movimentos sociais e civis dos anos 1970, a literatura “verista” definida por Zilberman (2003, p. 195) como uma perspectiva “realista na criação dos textos, ao mostrar a vida ‘tal qual é’ ao leitor mirim”, tratou de realocar as personagens negras à posição de protagonismo. Se por um lado tal feito pode ser celebrado, já que as narrativas se centralizavam nas experiências e aventuras de personagens negras, por outro, no entanto, os prejuízos foram imensos do ponto de vista da representatividade, já que estereótipos raciais foram reforçados ou criados.

E, neste caso, a pesquisa de Maria Anória de Jesus Oliveira (2003) apresenta-se como importante referência. Embora a autora não tenha utilizado o enfoque verista como perspectiva de análise, as características de sua investigação

aproximam-se desse referencial teórico tanto pelo recorte temporal (obras publicadas entre 1979 e 1989) quanto pelo modo como interpretou os dados acerca das personagens negras nos livros analisados. Foram ao todo 12 narrativas infanto-juvenis publicadas num período de 10 anos e com notório sucesso. Os resultados, sinteticamente, indicaram os limites dessa fase:

Na análise das produções literárias publicadas entre 1979 e 1989, visou-se a inovação no momento em que se atribui o papel principal aos personagens negros, com o propósito de denunciar a pobreza, o preconceito racial, e em enaltecer os seus traços físicos (em duas narrativas principalmente). Mas, por outro lado, a maioria das produções acabou corroborando para reforçar exatamente o que se tentou denunciar: o preconceito racial, uma vez que alguns protagonistas negros são: 1) em grande maioria, associados à pobreza, quando não à miserabilidade humana; 2) desamparados, sem família, haja vista a carência do pai e/ou da mãe; 3) tecidos de maneira inferiorizada e sujeitos à violência verbal e/ou física; 4) enaltecidos pelos atributos físicos e/ou intelectuais, com vista [ao mito da] democracia racial. (OLIVEIRA, 2003, p. 10).

Outra característica dessa fase foi a retratação das personagens negras femininas. Edith Piza (1998), por exemplo, constatou o quanto o período de transição entre a década de 1970 e 1980 foi marcado por estereótipos relacionados especialmente às mulheres negras como personagens em obras endereçadas ao público jovem. Em sua pesquisa, a autora analisou textos literários juvenis com personagens femininas negras escritos por mulheres brancas entre 1975 e 1985 e depoimentos de tais autoras sobre seus processos de produção literária, além de suas trajetórias profissionais. Ela identificou que “a personagem feminina negra passou a aparecer nas obras para jovens com uma carga de sexualidade que até então não se encontrava nesta literatura” (PIZA, 1998, p. 35). A pesquisadora tomou as águas como metáfora para analisar a relação entre mulheres brancas autoras e mulheres negras personagens. E, em sua intepretação, tais águas revelaram-se sujas e contaminadas de hierarquias:

Assim, o que desejei – que a água cristalina da purificação fosse um símbolo que enlaçasse brancas e negras – vi transformar-se na água lodosa e lenta, na qual uma mulher branca mergulha para se apossar de alguns ‘poderes’ e, com eles, continuar a manter a figura estereotipada da personagem feminina negra. (PIZA, 1998, p. 193).

Diante desse contexto, a possível emancipação prevista por autoras brancas para suas personagens – e que seria um reflexo de suas vidas pessoais – gerou novas armadilhas que prenderam, mais uma vez, a mulher negra à imagem de um

ser sexualmente exacerbado. Nas palavras de Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008, p. 105), “as escritoras brancas [da pesquisa de Piza], na complexa interação entre as múltiplas subordinações atuantes na sociedade, avançaram contra a subordinação de gênero se apoiando na subordinação de raça”.

Ainda nas duas últimas décadas do século 20 é possível identificar uma quarta fase, caracterizada por ambiguidades e oscilação de qualidade: com importantes iniciativas de valorização do corpo e das identidades negras, mas muitas delas ainda subsidiadas em estereótipos. Para Oliveira (2003), por exemplo, a tendência do período de construção de personagens negras com enfático enaltecimento de atributos físicos ou intelectuais atuaram para realçar o mito da democracia racial, dado o forte apelo à miscigenação e ao discurso de ausência de discriminação racial no Brasil.

Já para Ione Jovino (2006), sobretudo as personagens femininas negras passaram a ser representadas com maior qualidade no tocante à composição de suas identidades:

[...] mostrando [...] sua resistência ao enfrentar os preconceitos, resgatando sua identidade racial, desempenhando papéis e funções sociais diferentes, valorizando as mitologias e as religiões de matriz africana, rompendo, assim, com o modelo de desqualificação presente nas narrativas dos períodos anteriores. (JOVINO, 2006, p. 189).

O século 20 findou-se com esse panorama: de uma literatura em processo de questionamento e de revisão de suas bases estéticas. Ao longo das décadas desse século as manifestações racistas no modo de composição das personagens negras foram se modificando e, inegavelmente, diminuindo em nível explícito. Tal diminuição, no entanto, não pode ser encarada como um feito extraordinário, pois na medida em que o mito da democracia racial se consolidava na sociedade brasileira – mesmo a despeito de ele ser um mito –, os modelos racistas do início do século, herdados de um racismo científico do século 19, foram sendo desencorajados nas produções artísticas brasileiras. Principalmente o racismo discursivo na construção das narrativas (com expressões racistas e extremamente agressivas) foi dando lugar a histórias que manifestavam preconceito por meio de atributos ilustrativos ou na caracterização da condição de sofrimento e vulnerabilidade das personagens negras.

Mas gradativamente, por meio, sobretudo, da atuação do Movimento Negro de desnudar o racismo na literatura brasileira endereçada ao público adulto, de produzir novos referenciais teóricos do campo que passaram a questionar o cânone e, também, de denunciar a representação da/o negra/o nos materiais didáticos das escolas, o panorama foi se modificando. E, nas últimas décadas, a própria produção literária sofreu algumas mudanças quando escritoras e escritores negros investiram suas escritas no universo infantil e juvenil e propuseram representações de valorização das culturas afro-brasileiras e africanas.

Ainda assim não se tratou de uma mudança orgânica na produção literária infantil e juvenil brasileira, já que encerramos esse século categorizando formas bastante cristalizadas de sub-representatividade das personagens negras em detrimento de uma forte tendência de representação de personagens brancas como modelos exclusivos da humanidade. Mesmo em um país que se vangloriava por um processo miscigenatório e por uma suposta democracia racial, a apologia a tais “instituições” brasileiras não se fazia presente na produção do período. Cabe, agora, observarmos se houve mudanças no período contemporâneo.

  1. A literatura infanto-juvenil no século 21

Bastante marcada pelo conservadorismo, uma parte significativa dos referenciais teóricos que vem analisando a produção literária infantil na contemporaneidade e reconhecendo um aumento de obras literárias com personagens negras (sobretudo protagonizando as tramas) tem, contudo, interpretado que o foco de tais produções é o apelo ao mercado, em detrimento da qualidade estética. Embora sejam críticas bastante contundentes e que merecem maior investigação5 e crítica – por muitas delas serem produzidas com altas cargas de racismo discursivo –, neste texto o interesse será outro: de dar visibilidade aos estudos que têm seriamente investido em análise das obras literárias na contemporaneidade e não se pautam em valores racistas para interpretação da literatura.

Há nesse grupo pesquisadoras e pesquisadores que têm reconhecido as mudanças na educação brasileira como importantes motes para alterações na difusão e recepção de obras literárias que tematizam a diversidade étnico-racial brasileira. Eliane Debus (2012), por exemplo, reconheceu na aprovação da atual LDB um novo marco histórico para as mudanças na produção literária presente nas escolas brasileiras:

A partir de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases de Educação, em particular com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) apontando os Temas Transversais, o mercado editorial, buscando cumprir a demanda, se reorganiza, de modo que os catálogos das editoras começam a apresentar seus títulos e coleções contemplando-os (Ética, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Pluralidade Cultural), e assim, juntamente com as informações básicas sobre o livro, aparece o tema transversal com o qual ele dialoga. O tema Pluralidade Cultural, especificamente, traz como norte o respeito aos diferentes grupos e culturas que convivem na sociedade brasileira. (DEBUS, 2012, p. 144-145).

E a despeito de um aumento na quantidade de obras com temáticas relacionadas às culturas afro-brasileiras e africanas, Debus e Ângela Balça (2008) ressaltam que tal contexto não pode ser reduzido à mera interpretação de que o “viés mercadológico [aproveitou-se] de um nicho” (DEBUS; BALÇA, 2008, p. 66-67), sob pena de se incorrer em armadilhas conceituais oriundas “das duas grandes contranarrativas, que se opõem numa eterna divisão: vitória total ou de total cooptação, quando se pensa nos discursos sobre as ‘etnicidades marginalizadas’” (DEBUS; BALÇA, 2008, p. 66-67).

Já para Oliveira (2008) o relativo aumento da produção literária com personagens negras, especialmente em condição de protagonismo, pode não necessariamente representar aumento na qualidade de tratamento de tais personagens. A autora empreendeu uma reflexão sobre a produção infantil e juvenil das últimas décadas, extrapolando, inclusive, para obras do século passado. Para ela, o atual contexto de produção literária infantil e juvenil no Brasil é de coexistência entre dois grupos: de um lado, obras com inovações temáticas, “rememoração de lideranças negras da África e diásporas” (OLIVEIRA, 2008, s/p) ou, ainda, abordando a cosmovisão das religiosidades de matrizes africanas; e, de outro, estaria a manutenção de “obras eivadas de estereotipias em face aos personagens negros por meio da ilustração e/ou do texto verbal [...]” (OLIVEIRA, 2008, s/p).

Embora com tais ressalvas, a autora também reconheceu nas últimas décadas (ainda incluindo períodos do século 20) inovações “em face dos

personagens, os quais rompem com ideários racistas e inferiorizantes, conforme prevaleceu até os anos 80” (OLIVEIRA, 2008, s/p.). Algumas inovações identificadas por ela relacionam-se a um trato mais humanizado e valorizador na composição das personagens:

As narrativas [...] tecem várias faces dos protagonistas negros, os quais vivenciam crises existenciais (Histórias da preta, A cor da ternura), os situando em diversos espaços sociais: África, Brasil, Estados Unidos e em espaço não possível de se identificar (Fica comigo!), deixando a cargo do leitor interpretar e redimensionar tais espaços. Os protagonistas não são delineados em papéis de subserviência e passividade, conforme prevaleceu até os anos 80 [...] e correspondem, portanto, a seres ficcionais que podem ser associados ao universo do leitor em suas questões diversas preterindo-se, assim, a marca da inferiorização. Nesse sentido, se aproximam dos propósitos do movimento da negritude, no que tange à ressignificação e valorização da história e cultura africana e afro-brasileira. (OLIVEIRA, 2008, s/p).

Em certa medida as interpretações de Oliveira aproximam-se dos resultados da pesquisa desenvolvida por Araujo e Silva (2012). O estudo teve como objetivo “traçar um panorama da produção literária brasileira para crianças pequenas que apresentam em alguma medida personagens negras ou temáticas relacionadas à cultura e história africana e afro-brasileira” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 194). Para tanto analisamos 37 livros infantis endereçados às crianças pequenas. Ainda que não tenha sido intento da pesquisa incidir somente sobre obras recentes, a baixa quantidade de livros destinados a crianças pequenas contendo personagens negras e publicados no século 20 demonstrou que quando existentes, em sua maioria apresentavam algum tipo de estereótipo, o que culminou no seguinte resultado: “quanto mais antiga a obra que apresenta personagens negras, mais chances ela tem de trazer estereótipos negativos e racismo implícito ou explícito” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 194).

Utilizando uma escala com cinco pontos – “ótimo; muito bom; bom; razoável e ruim – para classificação das obras no que se refere especificamente à valorização da população afro-brasileira” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 211), foram definidos os seguintes critérios para a medição dessa escala:

[...] presença e importância de personagens negras; se personagens principais; grau de ação na trama; uso de linguagem; se narradoras/es; ilustrações com valorização de aspectos fenotípicos ou com uso de símbolos relacionados com africanidades; temas relativos à história ou cultura africana ou africana da diáspora; qualidades estética e literária; temas relativos a vivências de personagens africanas ou africanas da diáspora; ausência de estereótipos nos textos e nas ilustrações; ausência

de hierarquias entre personagens brancas e negras; não presença da/o branca/o como representante exclusivo de humanidade (branquidade normativa). (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 211).

Do total de livros analisados, 6 foram considerados ruins, 3 razoáveis, 5 bons, 6 muito bons e 16 foram considerados ótimos, o que, em princípio, pode ser reconhecido como um grande avanço, embora as nossas reflexões tenham indicado outras interpretações. Ainda que a maioria dos livros avaliados como “bons” e “muito bons” seja brasileira, grande parte dos títulos avaliados como “ótimos” é estrangeira, o que sugeriu novas hipóteses:

[...] é possível propor uma analogia entre esse fenômeno e o período de instituição da literatura infantil e infanto-juvenil no Brasil no início do século XX quando, na ausência de produção brasileira, várias adaptações e traduções de países europeus representaram a maior parte das obras comercializadas nas primeiras décadas desse século [...]. (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 217).

Tal situação evidencia o ainda pouco trato com a diversidade por parte da indústria editorial brasileira, pois, ao passo que ela se faz presente (e captada inclusive na pesquisa por meio das obras avaliadas como positivas), há um baixo investimento na produção nacional. Do mesmo modo, quanto menor é a idade da criança, menos oportunidades ela terá de acessar livros com personagens negras em situações de valorização. Além da pequena incidência de obras destinadas a bebês, no único livro da amostra6 que continha personagens negras, estas “estavam desempenhando atividades subalternas” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 211).

E, mesmo que de modo geral os resultados tenham indicado significativa alteração na produção literária infantil brasileira no tocante à representação de personagens negras, mantiveram-se problemas relacionados à hierarquização entre brancas/os e negras/os e se reificaram estereótipos. De modo sintético, a seguir alguns dos resultados evidenciam tal contexto:

1) Muitas editoras brasileiras (maiores e mais tradicionais) não possuem ou possuem poucos títulos em seus catálogos que contenham personagens negras, sendo uma lacuna preenchida pelas mais novas editoras nacionais ou de origem estrangeira (ARAUJO; SILVA, 2012). A interpretação de tal contexto é que:

[...] editoras tradicionais têm nutrido pouca preocupação com tais temas, talvez por já terem seu espaço no mercado editorial garantido e/ou não terem incorporado essas ‘novas’ discussões em suas pautas de produção, o que pode representar a manifestação de resistência ao cumprimento do artigo 26A da LDB. (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 209).

2) Em um dos poucos livros de imagens da amostra, o protagonista da história é estigmatizado como um “menino engraxate que inicia e termina a história como personagem ignorada e invisibilizada pela sociedade” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 213).

3) No levantamento inicial – que considerou também obras juvenis e não somente infantis – das mais de 200 obras listadas, 30 eram de um único autor (Rogério Andrade Barbosa) o que foi interpretado como indício de um “monopólio” na representação de contextos de africanidades.

4) Concepções equivocadas de igualdade estiveram presentes em pelo menos um dos livros da amostra:

Ignorando a ideia de que, para além das diferenças na igualdade estão as hierarquizações, um dos livros pesquisados minimiza o racismo, o sexismo, a homofobia, a obesidade e algumas deficiências físicas e mentais utilizando argumentos do tipo: ele tem esse ‘defeito’ mas tem essa qualidade. Além disso, explora pouco a palpável diversidade étnico-racial do país, já que o número de crianças negras ilustradas é diminuto (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 213).

5) Algumas obras com explícito engajamento no combate do racismo perderam sua qualidade literária ou, ainda, atuaram para reforçar estereótipos:

[...] seja por meio de representações tipificadas (personagem negra do sexo masculino como menino de rua, mulher negra como empregada doméstica, entre outras), ou quando se pretende problematizar o tema do racismo, mas se acaba ‘engessando’ o enredo. Em outras palavras, algumas obras preocupadas em propor a superação do racismo, trazendo tramas com tal tema, nem sempre obtêm êxito em seu objetivo, além de deixar de lado o caráter literário que toda obra infantil e infanto-juvenil, sobretudo, precisa ter, sob pena de vivenciarem seus estigmas historicamente imputados e que as relegaram a práticas didatizantes e desvinculadas de qualidade estética. (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 216).

Ressalta-se, no entanto, que um grande aspecto avaliado como positivo relacionou-se à ampliação das situações/contextos vivenciados por personagens negras, assim como captou Oliveira (2008) em sua pesquisa:

[...] não é necessariamente apresentando contextos de valorização da cultura afro-brasileira e africana apenas que se produzem obras literárias positivas. Em alguns dos livros analisados o enredo não tem como foco

temáticas como o racismo, a religiosidade de matriz africana ou qualquer marca ‘típica’ de africanidade, mas nem por isso deixam de representar obras de referência na valorização da diversidade étnico-racial.

[...]

Em suma, a diversidade de temas nos quais personagens negras estão inseridas em obras infantis, avaliadas nesse estudo como positivas para a promoção da igualdade étnico-racial, indica um gradativo aumento na preocupação da qualidade estética aliada à ruptura com representações fixas sobre os papeis que essas personagens devem ocupar na trama. Evidencia-se, portanto, uma ampliação das possibilidades de ‘ser’ afro-brasileira/o ou africana/o nas tramas. (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 212).

E essa ampliação de possibilidades foi captada também na pesquisa de Debus e Margarida Cristina Vasques (2009). Para as autoras, “um dos caminhos para o entendimento e a consciência acerca da pluralidade cultural está, também, na apropriação da leitura literária produtora de identidade e inclusão social” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 143). As autoras analisaram 5 obras literárias publicadas pela Editora SM. A escolha de tal editora deveu-se ao fato de que “em seu catálogo 2008/2009, dos 173 títulos publicados, 20 títulos trazem a presença da cultura africana e afro-brasileira” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 135). Na maioria dos títulos (4 livros) as autoras identificaram elementos de valorização da cultura africana, seja por meio da exploração estética de aspectos culturais do continente como “a diversidade da flora e da fauna, os instrumentos musicais, [e] a tradição das histórias contadas ao redor da fogueira pelo Griô, o ‘mestre errante da palavra’” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 138); seja pela recontagem de mitos africanos, “narrados de forma a revelar importantes princípios da tradição oral africana” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 139).

Somente em uma obra as autoras não verificaram a tendência dos demais títulos em promover a valorização e emancipação das personagens negras para além dos estereótipos e reificações estigmatizantes, pois embora a narrativa abordasse o “complexo universo da pluralidade étnico-racial presente nas famílias brasileiras” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 139), o encaminhamento da trama reificou uma apologia à miscigenação de modo a conformar as discriminações raciais. Ao não tratar de forma mais bem-acabada ou crítica o processo de miscigenação étnica, racial e cultural brasileira, sobretudo levando em consideração que a “ideia de nação mestiça, no Brasil, é resultado de um processo colonizador violento, e não apenas da relação amistosa entre as raças” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 137), as autoras interpretaram tal estratégia no texto como uma alternativa “ingênua e romântica, [pois] pode remeter o leitor (mesmo o pequeno leitor), a um falso

conhecimento acerca da historicidade sobre o processo de mestiçagem no nosso país” (DEBUS; VASQUES, 2009, p. 137).

Outros estudos têm se empenhado em analisar a entrada, ainda tímida e recente, de literaturas produzidas em países africanos de língua portuguesa, como é o caso das pesquisas de Oliveira (2010) e Debus (2013), sendo a da primeira autora intitulada “Personagens negros na literatura infanto-juvenil no Brasil e em Moçambique: entrelaçadas vozes tecendo negritudes” e a de Debus intitulada “A Literatura Angolana para Infância”. Esse novo diálogo com países africanos tem possibilitado outras reflexões sobre as características da literatura infantil na contemporaneidade, incluindo o fato de que a entrada dessas literaturas no Brasil tem sido em grande maioria por obras de escritoras/es africanas/os brancas/os, o que, por si só, já levanta uma série de questionamentos sobre o acesso de escritoras e escritores negros ao mercado editorial brasileiro.

Sem a pretensão de elaborar um estado do conhecimento sobre o atual contexto de produção literária com personagens negras, o objetivo até aqui foi de destacar algumas das características recorrentes em importantes estudos acadêmicos. Uma delas é um “otimismo parcimonioso”, pois se de um lado podemos reconhecer avanços em relação à qualidade estético-literária e à representação e valorização de personagens negras na literatura infantil, de outro, quando observadas dentro do universo de publicações anuais no Brasil, reitera-se a baixa incidência de obras com tais características. Da mesma maneira, um olhar crítico e realista lança-se sobre manutenções de estereótipos que insistem em cristalizar a representação do ser negro a características inferiorizantes.

Mas, com a intenção de visibilizar obras contemporâneas que representam as mudanças positivas na produção infantil brasileira, a seção seguinte apresentará alguns livros e suas principais potencialidades estético-literárias.

  1. As personagens negras protagonistas na contemporaneidade: o que elas nos contam de novo?

Elas nos contam sobre um universo repleto de possibilidades, de trajetórias e de vivências; falam de um mundo além-mar e falam, também, de um mundo na diáspora africana. Elas cantam, dançam, estudam, trabalham, sofrem, riem e se divertem; são humanas e humanizadoras, com realidades bem distintas de outras

mais velhas que elas, como Tia Nastácia, Bertoleza ou Boca-Torta, que pouco podiam para reverter seus destinos de resignação e subserviência.

A proposta a seguir é de apresentar algumas dessas personagens da atualidade e destacar o que aqui serão chamadas de tendências da produção literária contemporânea com personagens negras. Como um breve exercício reflexivo, três dessas tendências serão evidenciadas, mas é válido advertir que não são as únicas e que as demais expressam outros importantes avanços na produção literária brasileira, ainda que – é sempre bom e necessário ressaltar – a sub-representatividade de personagens negras se mantenha na literatura infantil nacional contemporânea.

- Adamastor, o pangaré

Livro escrito e ilustrado por Mariana Massarani (2007), apresenta os dilemas de Joaquim, o protagonista da história e criador de Adamastor, o pangaré. Vivendo um conflito pessoal muito grande, Joaquim tem de lidar com a informação de que sua mãe está grávida de uma menina e ele queria um menino como irmão: “Com a minha visão de raios X, vejo a minha irmã rindo de mim” (MASSARANI, 2007, p. 3). Muito angustiado por saber de sua irmã que nascerá, Joaquim começa a desenhar um cavalo, Adamastor, o pangaré. Com uma varinha mágica de brinquedo ele decide: “Vou falar bem baixinho, para ninguém saber, umas palavras mágicas que acabo de inventar! Alazão, Alazão!!! Bonitão!!! Pangaré, pangaré!!! Fica em pé!!!” (MASSARANI, 2007). E então Adamastor se torna o grande amigo e reconciliador de Joaquim e sua irmã, Ana Luísa.

Os ciúmes, a insatisfação de ter uma irmã no lugar de um irmão e a capacidade de resolução dos conflitos por meio do surgimento de Adamastor são o cerne da trama. Trata-se de uma narrativa com conflitos universais infantis, pois envolve dilemas vivenciados por crianças de um modo geral. Essa tem sido uma das tendências na produção literária contemporânea com personagens negras: o que as marca racialmente não são elementos verbais (sobre a cor da pele das personagens, textura de seus cabelos ou conflitos raciais), mas sim as ilustrações que, no caso de Adamastor, o pangaré são diversificadas na caracterização das personagens, já que todos os membros da família de Joaquim são negros e com atributos estéticos distintos, principalmente por meio de diferentes penteados. A qualidade de vida também é uma característica comum nessa tendência de conflitos

universais infantis: o contexto familiar é realçado por cenas de carinho, atenção e amor mútuo, e as condições estruturais são boas, já que mesmo o apartamento sendo descrito como pequeno, é possível identificar pela mobília, uma condição de vida com qualidade.

- Cada um com seu jeito, cada jeito é de um!

Escrito por Lucimar Rosa Dias e ilustrado por Sandra Beatriz Lavandeira, a protagonista, cuja descoberta de seu nome compõe a própria construção da narrativa, é Luanda, uma menina muito sapeca, “daquelas levadas da breca” (DIAS, 2012). Para ela não tem tempo ruim: ela pula degraus das escadas, gira bem forte no gira-gira do parquinho, come chocolate, lê muitos livros, canta, joga bola e faz várias outras coisas. Mas o que Luanda mais gosta é do seu cabelo crespo, cheio de rolinhos. E é com seus cabelos lindos que Luanda “todo dia desfila pela escola um penteado novo” (DIAS, 2012): um dia é trança, no outro é solto, no outro é preso com enfeites coloridos... E, assim, cada dia um membro da família (ou a avó, ou o pai ou a mãe) ajuda Luanda a se produzir mais bela. E sua identidade, tão fortalecida com orgulho, é reforçada pela origem de seu nome, capital de Angola. A direta articulação entre a ilustração e o texto contribui para a qualidade do livro. Mas o elemento de destaque na obra reflete uma outra tendência na produção literária contemporânea com personagens negras: de valorização da estética e da identidade negra. Além da ilustração que inegavelmente explora de forma positiva aspectos estéticos de cada uma das personagens negras da obra, o texto escrito demarca a valorização identitária da protagonista, com destaque não só para seus cabelos, sinal diacrítico central nesse processo, mas também para sua cor de pele e seu sorriso, dois atributos físicos também marcantes na representação de negras e negros no Brasil. Tal contexto rompe com um modelo historicamente cristalizado de ilustração e menção verbal aos lábios, cor da pele, nariz e cabelos de personagens negras por meio de representações racistas e estereotipadas. Essa tendência, já presente nas últimas décadas do século 20, reitera-se na atualidade e compõe um repertório literário mais diverso às crianças leitoras, que podem se deparar com princesas e príncipes negros, meninas e meninos negros que são inteligentes, espertos e bonitos. E especialmente às crianças negras há a possibilidade de se

verem representadas em produções literárias nacionais em contextos bem diferentes do que foi oferecido a gerações anteriores.

- Bruna e a galinha d’Angola

A história de Bruna, escrita por Gercilga de Almeida e ilustrada por Valéria Saraiva, envolve uma imersão da protagonista na ancestralidade africana e em sua história de vida pessoal. Inicialmente descrita na trama como uma menina que se sentia sozinha, Bruna tem na imagem de sua avó Nanã, “que chegara de um país muito distante” (ALMEIDA, 2012), uma referência para lidar com seus conflitos pessoais e interpretar seus sonhos cheios de metáforas e mensagens remotas. Mas, a maior ligação entre ambas foi por meio de um presente: uma galinha d´Angola que, na história, tem uma simbologia especial, pois Bruna havia sonhado com uma Conquém (galinha d´Angola) que descia por uma corrente de ouro e “espalhava a terra, que caía do céu, na Terra” (ALMEIDA, 2012). A figura da Conquém também rememora Ò̩ṣún, uma menina que, como Bruna, “se sentia só. Para lhe fazer companhia resolveu criar o que ela chamava de ‘o seu povo’” (ALMEIDA, 2012).

Repleta de ilustrações icônicas, como o panô com motivos africanos, a descrição do sonho de Bruna e os objetos do baú da avó Nanã, o texto escrito realça a tônica da terceira tendência aqui destacada: de resgate da herança e da ancestralidade africana. As narrativas dessa tendência são fortemente carregadas de histórias míticas sobre a criação do mundo, sobre a resolução de conflitos e sobre a capacidade de resistência de povos africanos, seja em contextos locais ou na diáspora africana. Envolvem personagens com atributos sobre-humanos, dotados de poderes mágicos ou de uma sabedoria ancestral; são também deusas e deuses que auxiliam seus descendentes na resolução de conflitos; são, sobretudo, histórias de reencontros entre três experiências: a vivência com o racismo, que marca tão fortemente as trajetórias de negras e negros no Brasil; a resistência, característica central da população negra na diáspora; e seus mitos fundantes, que na origem africana auxiliavam mulheres, homens, crianças, velhas e velhos a lidarem com seus conflitos e a solucionarem problemas. São histórias de reconciliação e de fortalecimento da história africana.

Três tendências que tematizam, cada uma a sua maneira, a variedade de temáticas e um universo de possibilidades que se abre às personagens negras na

contemporaneidade. E esse universo de possibilidades é, também, um universo de reivindicação e conquista política, protagonizado pelo Movimento Negro que, histórica e estrategicamente, atuou em frentes diversas na luta por representatividade. É um processo, nas palavras de Nilma Lino Gomes, de “emancipação sociorracial do corpo” (GOMES, 2017, p. 100) diante da constante tentativa de regulação do corpo negro. Tal emancipação pôde ser captada nos exemplos apresentados das três tendências nos livros aqui exemplificados. É, concordando com Gomes, uma “tentativa de reconciliar a emancipação sociorracial nos seus próprios moldes e não nos parâmetros da regulação” (GOMES, 2017, p. 100) que antes confinava as personagens negras a modelos bastante restritivos de humanidade ou de sub-humanidade.

Fim da história? Ainda não. Andamos “um pouco e um pouquinho mais7”

Se retomarmos a metáfora que propus no início deste texto e imaginarmos as personagens negras das primeiras histórias da literatura infantil brasileira recontando suas trajetórias e observando quantos passos foram dados até chegarmos nessa nova geração de personagens, é possível que as víssemos felizes, comemorando o que Tia Nastácia em poucas vezes pôde dizer, em tom de protesto e desforra: “– Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...”.

Vindos de muito longe, de terras distantes e em condições desumanizadoras, os corpos diaspóricos que nascem e renascem todos os dias no território brasileiro enfrentam diariamente lutas em várias frentes. Uma delas, por representatividade e por existência nas artes, foi aqui brevemente apresentada através da literatura infantil. E, ao fim, o que se pode concluir? Foram avanços significativos os passos dados até aqui. Conquistas que possibilitaram hoje vermos protagonistas negras e negros vivenciando conflitos comuns a toda criança, tendo orgulho de seu corpo e de sua história e podendo rememorar e reverenciar sua ancestralidade, marcada não somente na sua memória afetiva, mas, sobretudo, em seus corpos pretos, em seus cabelos crespos e nos olhares sempre atentos e altivos. Se tal altivez não foi possível aos seus antepassados da literatura infantil brasileira, hoje as meninas e

meninos, jovens, adultas e adultos protagonistas podem, ainda que em minoria, erguer suas cabeças, olhar para si próprios diante de espelhos e gostarem do que veem.

E, atrás delas e deles suas avós e avôs, antes tão amordaçados, os observam olhando no espelho e anunciam: “Que ousadia! Que orgulho!”.

Este é o fim da história que escolhi, mas sei que não é necessariamente o fim que o racismo quer e tem lutado. Por isso, usando as palavras de Mama Panya, andamos “um pouco e um pouquinho mais” (CHAMBERLIN; CHAMBERLIN, 2005), mas precisamos continuar a caminhada. Se nossos passos vêm de longe, temos a plena certeza de que sabemos muito bem aonde queremos chegar. Portanto, avante!

Com os ensinamentos dos mais velhos sobre suas dificuldades nas tramas literárias, com a esperteza da juventude que não se cala diante do racismo que insiste em enredá-la como meninas bonitas usando laços de fitas de exotismo e com a proteção dos ancestrais que cada vez mais ocupam os textos e as mentes de escritoras e escritores, sigamos abrindo novos caminhos! Que possamos destituir do trono o cânone literário que insiste em dizer mentiras racistas para que verdades humanizadoras e um novo tempo com histórias de todos os grupos humanos tenham o mesmo peso e o mesmo valor na literatura, seja ela endereçada a bebês, velhas/os, adultas/os ou adolescentes. Que a literatura seja a mais bela expressão da arte em toda a sua potencialidade humanizadora

 

Referências

ALMEIDA, Gercilga. Bruna e a galinha d’Angola. Ilustrações de: SARAIVA, Valéria. 3. ed., Rio de Janeiro: EDC e Pallas Editora, 2012.

ARAUJO, Débora Cristina de. Relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil: a produção acadêmica stricto sensu de 2003 a 2015. Relatório Final de Estágio Pós-Doutoral. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Paraná, 2017.

ARAUJO, Débora Oyayomi Cristina de; SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Diversidade étnico-racial e a produção literária infantil: análise de resultados. In: BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2012, p. 194-220.

CHAMBERLIN, Mary; CHAMBERLIN, Rich. As panquecas de Mama Panya. Ilustrações de: CAIRNS, Julia. São Paulo: SM, 2005. (Cantos do mundo). Título original: Mama Panya´s pancakes.

DEBUS, Eliane. A escravização africana na literatura infanto-juvenil: lendo dois títulos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 141-156, Jan/Abr 2012. Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/vol12iss1articles/debus.pdf. Acesso em: 19/10/2017.

DEBUS, Eliane; BALÇA, Ângela. Literatura infantil portuguesa e brasileira: contributos para um diálogo multicultural. Via Atlântica, n. 14, p. 63-74, dez/2008. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50380. Acesso em: 19/10/2017.

DEBUS; Eliane Santana Dias; VASQUES, Margarida Cristina. A linguagem literária e a pluralidade cultural: contribuições para uma reflexão étnico-racial na escola. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 133-144, maio/ago. 2009. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/viewFile/19/18. Acesso em: 19/10/2017.

DIAS, Lucimar Rosa. Cada um com seu jeito, cada jeito é de um! Ilustrações de: LAVANDEIRA, Sandra Beatriz. Campo Grande: Gráfica e Editora Alvorada, 2012.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construidos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

GOUVÊA, Maria Cristina Soares. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 1, p. 77-89, jan./abr. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n1/a06v31n1.pdf. Acesso em: 19/10/2017.

JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In: SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p. 179-217.

LOBATO, Monteiro. Histórias da Tia Nastácia. Edição integral. São Paulo: Círculo do livro, por cortesia dos herdeiros de Monteiro Lobato e da Editora Brasiliense, S.A, s/d [1ª edição: 1937].

MASSARANI, Mariana. Adamastor, o pangaré. [ilustrações da autora]. São Paulo: Melhoramentos, 2007.

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Negros personagens nas narrativas infanto-juvenis brasileiras: 1979-1989. Dissertação (Mestrado em Educação). Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2003.

______. Literatura afro-brasileira infanto-juvenil: enredando inovação em face à tessitura dos personagens negros. In: Anais... XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 13 a 17 de julho de 2008, USP –São Paulo, Brasil. Disponível em: http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/024/MARIA_OLIVEIRA.pdf. Acesso em: 19/10/2017.

______. Personagens negros na literatura infanto-juvenil no Brasil e em

Moçambique (2000 – 2007): entrelaçadas vozes tecendo Negritudes. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2010. PIZA, Edith. O caminho das águas: estereótipos de personagens negras por escritoras brancas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com Arte, 1998.

SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Relações raciais em livros didáticos: estudo sobre negros e brancos em livros de Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. (Coleção Cultura Negra e Identidade).

WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Vents d'Est, vents d'Ouest: Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux [en línea]. Genève: Graduate Institute Publications, 2009.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil


Nota: o presente texto da autora Débora Oyayomi Araujo foi originalmente publicado no periódico TOM UFPR, v. 3, p. 20-42, 2017. Disponível em: https://issuu.com/tom_ufpr/docs/tom6. Acesso em: 13/06/2018