Branquitude e Crítica Literária

Uruguay Cortazzo*

A proposta que eu vou apresentar hoje é um primeiro intento de organizar algumas ideias que têm surgido das reflexões sobre o conceito de literatura negra. Ela é por isso, provisional. Mesmo que eu faça algumas afirmações, elas têm de ser interpretadas como hipóteses de trabalho, as quais devem ser aprofundadas e comprovadas com novos estudos.

Na primeira parte, fala-se da poesia negra e suas principais estratégias e núcleos temáticos (me inspiro em Sartre, Bernd, e outros). Na segunda parte, analiso a compreensão da crítica de Jean Paul Sartre e Zilá Bernd como estratégias de bloqueio da Negritude. Utilizarei o conceito de Negritude em dois sentidos: o estrita- mente histórico (movimento poético surgido a partir do encontro de Césaire, Senghor e Damas, nos anos 30 em Paris) e no sentido amplo (produções literárias negras em geral).

O discurso poético negro surge como uma disrupção, uma ruptura dentro de um sistema literário que só reconhecia a voz branca como a única autorizada, a proprietária natural e autêntica da escrita e da arte. O negro podia ingressar na literatura se não questionava essa legitimidade e apagava sua condição de negro; se ele se tornava invisível na sua corporeidade.

Luiz Gama (1830-1882) é considerado hoje o primeiro escritor negro brasileiro, pois inicia uma desestabilização desse sistema, já que instaura um eu poético que assume sua condição de negro, e, como consequência, revela indiretamente o sistema branco que está por trás do discurso literário.

A escrita negra surge, então, como uma subversão: uma voz, não autorizada e resistida, emerge no cenário literário. Como o próprio enunciador comenta no poema “Quem sou eu?”, sua voz é um “repique impertinente” que não pertence ao lugar, voz estranha, inconveniente e irreverente. Voz intrusa que vem a revelar que todos na verdade são animais.

Mas a voz negra não é uma voz isolada, individual, intimista, única e privilegiada como propõe a estética ocidental. O eu negro aparece profundamente vinculado à sua comunidade, a um nós. Não é a musa que fala através dele, nem o gênio da sua pessoa: é a voz da sua gente, do seu povo que o leva até a voz dos ancestrais, identificando-se assim com uma história especifica e uma situação social de hostilidade e negação. Aimé Césaire (o poeta da Martinica) diz em uma reportagem:

Vocês me perguntam quem sou eu? Respondo: eu sou, primeiramente, o homem de uma comunidade historicamente situada, eu sou negro e isto é fundamental. Esta é a definição da minha identidade. Eu pertenço, pois, a uma história. É uma afirmação de uma fidelidade. Em meu espírito não há lugar para a negação, é também a afirmação de uma solidariedade. Isto significa que me sinto solidário com todos os homens que lutam pela liberdade, com todos os homens que sofrem, e antes de todo com aqueles que mais sofreram e que foram frequentemente esquecidos, eu falo dos Negros. (BERND, 1987, p. 65).

É Aimé Césaire que vai definir o povo negro como uma “comunidade de sofrimento”, “comunidade de opressão”, “comunidade de exclusão”, mas também como uma “comunidade de resistência” e de esperança (CÉSAIRE, 2004, p. 81-82), marcando assim as três linhas de força que sustentam a estética da poesia negra: passado humilhante, presente de discriminação e futuro de libertação.

A voz negra, ao aparecer no espaço literário, produz também dois ouvintes diferentes, e esta é outra especificidade da escrita negra. Por um lado, aponta para um leitor branco, procurando que se reconheça como dominador, responsável e conivente com uma historia criminal. “Estamos vivos ainda, bwama” diz o poeta paulistano Oubi Inaê Kibuko. Fazendo isso, a voz negra descortina a etnicidade invisível, inconsciente, de branco que deve enfrentar-se com sua própria construção: o negro.

Por outro lado, o escritor negro tem que apelar à sua comunidade para praticar um duplo movimento contraditório: primeiro, destruir uma máscara imposta: a identidade de autonegação, para depois, num segundo momento, construir uma identidade desejada e criativa. Um mito guia este duplo movimento: morte e ressurreição.

O negro atual deve morrer, porque ele é só uma construção, feita por outros, uma ilusão que só serve para não ser, um feitiço branco para não se achar, um fantasma de si mesmo. A essa morte de uma identidade imposta através da violência, deve seguir um renascimento, uma nova identificação, que pode aparecer como uma viagem ou uma decida. Uma iniciação na negritude.

A viagem é simbolizada pelo tema tradicional do retorno a África. Esta volta não significa uma regressão. Trata-se de fazer o movimento histórico inverso: se a vinda para América significou um esvaziamento da sua humanidade (o contrário da visão do paraíso dos europeus), a volta para África significa a reconquista da plenitude. É aí que estão os ancestrais primordiais: é aí que habita o antigo homem africano, o homem integral que vai insuflar-lhe a sua energia novamente. Essa África é mítica e é uma criação da diáspora, uma “geografia interior”, como diz Césaire.

A outra imagem iniciática é a descida na própria escuridão. É aqui que vem outra característica: a inversão do simbolismo cromático; o preto, o escuro, as trevas, a noite, são uma revigorante força espiritual. Já estão sendo realizados estudos sobre o sistema de imagens da poesia negra, que mostram a inversão da simbologia do Ocidente, onde a cor negra significa a ignorância, a morte, o mal, o domínio do demônio.

Na poesia negra o branco, a luz, o dia pode significar a cor e o tempo da humilhação, da negação. É a cor e o tempo do senhor, do proprietário do algoz. Tempo branco.

A noite é o mundo que abriga os orixás, onde o humilhado se torna senhor, e o homem exausto recupera seu potencial guerreiro e espiritual. Isto explica porque o principal movimento literário – a negritude do Caribe francês – se identifica com a palavra négre, que é praticamente um insulto nessa língua.

Gostaria de fazer agora uma observação para encerrar esta primeira parte.

Trata-se de uma questão aberta que vem sendo debatida desde o momento mesmo em que a negritude fez sua aparição nos anos 30: depois da viagem, depois da descida, depois do renascimento, como retorna esse ser? Será que volta negro ou já é uma pessoa onde a cor não tem mais importância? Em outras palavras: qual é a utopia negra que se quer construir? Será uma sociedade de homens que conquistarão a harmonia e onde a cor da pele não terá mais significado? Ou será uma sociedade onde o negro continuará existindo, mas agora reconhecido como pessoa, como cultura, como espiritualidade? Será uma sociedade sem etnias, constituída por homens que terão alcançado sua plena universalidade, uma sociedade pós-racial, ou pelo contrário, será uma associação onde diferentes comunidades terão direito a se desenvolver por si mesmas?

Será um mundo de iguais ou uma comunidade de diferentes? Este é, provavelmente, uma dos grandes desafios que tem colocado a literatura negra para a crítica e a teoria literária. E, com isto, estou entrando na segunda parte da minha proposta: analisar certo tipo de recepção da negritude poética que intenta desativar seu potencial político e cultural. Escolhi dois nomes que me parecem muito significativos: o de Jean Paul Sartre, por ser o primeiro teórico da negritude, e o de Zilá Bernd, “pioneira” (Maximilien Laroche) nos estudos de literatura negra na América Latina e no Brasil.

Jean Paul Sartre, escreve em 1948 o famoso prólogo "Orfeu Negro" para a Antologia da poesia negra e malgache, organizada por o escritor senegalês Leopold Sedar Senghor. A Antologia mostrava para o público europeu uma valiosa produção literária negra da África e do Caribe francês. O prólogo de Sartre virou um clássico da crítica literária sobre a negritude, e não pode ser desvinculado desse conceito. Marcou, e marca ainda hoje, a discussão sobre a poesia negra.

No Orfeu Negro, o filósofo reconhece que a poesia negra é a grande poesia revolucionária desse momento, e que tem uma transcendência que vai além da criação de uma consciência negra poética, política e cultural. Com efeito, a consciência negra revela também a existência de uma consciência branca, sustentada na crença da sua superioridade. A consciência branca é a matriz desde onde se observa a totalidade do mundo, se estuda, se ordena, se classifica e se avalia. Sartre diz de forma magistral: “o branco desfrutou durante três mil anos o privilegio de ver sem que o viessem”. (SARTRE, 1968, p. 89). Ele não comenta, mas essa pretensão de uma visão integral abarcadora do planeta inteiro provém do expansionismo europeu, dos conquistadores, dos colonizadores, das expedições científicas: uma visão não situada em nenhuma geografia, em nenhuma cultura: uma visão universal.

Porém, a poesia negra revela que esse olho totalizador é branco e europeu. E mais: ele é agora considerado como um outro e transformado em objeto. O branco volta assim a ser situado num lugar e numa cultura. Ele é racializado (como no século XIX) e devolvido à sua etnia. A mirada negra, ao aparecer, é um espelho onde o branco se reflete e se descobre como tal. A invisibilidade do observador europeu acaba: por trás do olho universal existe um homem material com sua cor e seus interesses. A pretensão totalizadora desaba: “[...] nós somos acidentais e longínquos, devemos justificar-nos por nossos costumes, nossas técnicas, nossa palidez de mal cozidos e nossa vegetação azinhavre. Somos roídos até os ossos por estes olhares tranquilos e corrosivo [...]”. (SARTRE, 1968, p. 91).

Estas reflexões de Sartre ajudam a entender um elemento essencial para os estudos negros: a questão do negro está intimamente atrelada a questão do branco. Negro e Branco são identidades interligadas, produzidas reciprocamente.

Mas Sartre, ao mesmo tempo em que exalta a poesia da negritude, acaba por limitá-la e, no final, liquidá-la. Com efeito, a poesia negra nasceu para morrer: é só um momento na conquista de uma consciência geral da opressão da humanidade toda. Sartre usa o mito de Orfeu com duplo sentido: ele é o cantor que consegue transformar o mundo com seu canto, mas também é quem fracassa na missão maior da sua vida: resgatar sua amada Eurídice do mundo da morte. Na interpretação de Sartre, Eurídice é a Negritude:

Assim a Negritude é para se destruir, é passagem e não término, meio e não fim último. No momento em que os Orfeus negros abraçam mais estreitamente esta Eurídice, sentem que ela se desvanece entre seus braços. (SARTRE, 1968, p. 122).

A consciência negra é, então, um “particularismo”, e está destinada a se dissolver na “raça universal dos oprimidos”. Por trás de todo negro e negra, está final- mente a imagem do proletário, na qual a cor desaparece e a luta se transforma no grande combate final.

Ao utilizar um paradigma marxista de interpretação, deve entender necessariamente esse movimento poético como um momento de antítese, frente à opressão branca, que seria a tese. Portanto, o processo culminaria numa síntese, quer dizer, uma sociedade sem raças e sem classes. Ou seja: a sociedade comunista entendida como a sociedade universal final.

Sartre descobre, com certeza, as limitações da consciência branca e seu universalismo falso, mas as reduz ao período capitalista. Assim, consegue salvar e manter o universalismo ocidental através do marxismo: ou seja, conservar como propriedade da cultura branca o conhecimento e o controle das leis da história e do futuro da humanidade. O branco é, mais uma vez, quem ensina ao negro o caminho correto que deve percorrer.

Vamos nos deter agora num ponto específico da estratégia dialética sartreana: como é que este filósofo interpreta a antítese negra frente a tese da opressão branca? Vou citá-lo:

A unidade final, que aproximará todos os oprimidos no mesmo combate, deve ser precedida nas colônias por isso que eu chamaria momento de separação ou de negatividade: este racismo anti-racista é o único caminho capaz de levar à abolição das diferenças de raças. (SARTRE, 1968, p. 94).

Como pode-se observar, essa oposição dos negros à opressão branca é considerada um racismo anti-racista. Sartre não explica em nenhum momento em que sentido seria um racismo. Além disso, esta afirmação entraria em contradição com outras colocações anteriores. Só vou citar uma: “esta poesia que parece do início racial é finalmente um canto de todos e para todos”. (SARTRE, 1968, p. 92).

Poderíamos nos perguntar agora: todo anti-racismo engendra um novo racismo? Não posso entrar nessa discussão nem analisar as fortes contradições de Sar- tre. O que me interessa destacar é que esta suspeita de racismo, mesmo colocada em forma de um paradoxo, teve um impacto profundamente negativo, que se estende até hoje na compreensão da negritude.

No Brasil, à época das lutas anticolonialistas africanas, Gilberto Freyre, igual a Sartre, declara a Negritude uma mística racista sem lugar no país, um intento de afiliar os negros “ao imperialismo étnico-cultural africano”, um sectarismo fanático, oposto à identidade brasileira, que seria uma “morenidade meta-racial”, um ser “luso-tropical”.1

A ideia de Sartre continua sua carreira até os anos 80 do século XX, e será desenvolvida também por Zilá Bernd. Esta autora, além da sua tese de doutorado, tem publicado vários livros e artigos sobre a literatura negra: “A questão da Negritude” (1984); Negritude e literatura na América Latina (1987); Introdução à literatura negra (1988); Poesia negra brasileira (1992), e até uma obra de divulgação sobre Racismo e anti-racismo (1994).

Na sua teoria, Bernd se opõe a definir a literatura negra a partir da cor do autor e sugere que essa definição seria racista:

Esta classificação de base racial ou epidérmica se constitui ao meu ver, a partir de bases cientificamente falsas e ideologicamente perigosas. (BERND, 1992, p. 274).

Para evitar este perigo, Bernd procura definir a literatura negra por uma característica exclusivamente linguística, e afirma, então:

Partir da evidencia textual nos parece ser o caminho que assegurará um maior rigor científico à analise da questão. Assim, poderão ser considerados como literatura negra aqueles textos em que houver um eu enunciador que se quer negro, que reivindica a sua especificidade negra. (BERND, 1987, p. 16).

Aqui radicaria a diferença entre o discurso sobre o negro e o discurso do negro, como sujeito que procura redefinir agora a representação convencional e preconceituosa que se tem formado do negro na instituição literária.

Mas, continuando a aprofundar a teoria literária de Bernd, somos conduzidos a uma conclusão pelo menos surpreendente: o denominado discurso do negro não é necessariamente de um sujeito negro, físico, histórico e socialmente situado: é de qualquer um que se apresente no discurso poético como negro, um puro efeito de sentido vazio de referente racial.

[...] não é preciso ser negro para fazer poesia negra. É preciso, entretanto, situar-se como negro para que a poesia possa exprimir-se com uma dicção própria, reveladora de uma intenção negra. (BERND, 1992, p. 274).

Finalmente, a teoria berndiana vai anunciar a morte da Negritude. Retomando as ideias de Sartre, Depestre e outros, a teórica entende que a consciência negra proposta pela literatura dos negros é limitadora e insuficiente. Seguindo ao crítico Hookoomsing, afirma:

[...] a Negritude fracassou porque permaneceu prisioneira de uma duvidosa mística da raça. Longe de ser uma questão de comunidade de raça, trata-se essencialmente de uma comunidade de condição. A da opressão. (BERND, 1987, p. 12).

Bernd propõe então superar a Negritude por um novo programa estético-político, que ela denomina Negridade, onde o negro amplificaria a sua luta identitária:

[...] paralelamente a sua reivindicação de ser reconhecido como negro, ele também quer ser reconhecido como operário, como brasileiro, como latino-americano ou como mulher, nos casos dos membros femininos do grupo. (BERND, 1987, p. 44).

A Negridade de Bernd é, como pode se apreciar, uma exigência de que a literatura negra supere a sua consciência racial e desenvolva também a consciência de proletário, a consciência nacional e, finalmente, a de latino-americano, para participar “na crença de que os homens venham a constituir uma fraternidade universal”, como propõe Depestre. (BERND, 1987, p. 43).

Estes seriam, de modo extremamente sintético, os pontos fundamentais da reflexão de Bernd sobre a literatura negra. Passo a comentar agora esses pontos.

Primeiro princípio: a literatura não pode ser definida pela raça, pois raça não existe cientificamente falando. Minha posição é que sim, pode. O conceito de raça é questionado na biologia, mas não na sociologia. Raça é uma categoria social, atual e atuante, com efeitos reais no cotidiano das pessoas, e que continua sendo o fundamento do racismo do século XXI. É uma crença poderosa que ajuda a manter as hierarquias e os espaços sociais delimitados. Anthony Giddens, em um livro de sociologia recente (2004), define raça da seguinte forma:

A raça pode ser entendida como um conjunto de relações sociais que permite que os indivíduos e grupos sejam localizados, e lhes sejam atribuídos vários atributos ou competências, com base em características de natureza biológica. As distinções raciais são mais do que formas de descrever as diferenças humanas – são também fatores importantes na reprodução de padrões de poder e desigualdade na sociedade. (GIDDENS, 2004, p. 248).

A cor da pele pode não ter nenhuma importância para a genética, mas importa e muito para a semiótica social: os corpos negros e brancos são construídos não a partir de dados genéticos, senão da aparência imediata à qual se atribuem valores, interesses e significações históricas que permitem criar hierarquias corporais.

O corpo carrega essas narrativas e sentidos do mesmo modo que as tatuagens. O corpo negro é um corpo marcado. Na literatura negra, por isso, raça e cor devem ser interpretadas como portadores de valores míticos, sociais, culturais, políticos e estéticos que se inscrevem e reescrevem na pele e que constituem um imaginário social e artístico sólido e palpável para qualquer um.

Quando Bernd desconsidera esta corporeidade como signo social, substituindo-a por um traço enunciativo linguístico, elimina uma das principais matrizes estéticas e volta a invisibilizar o negro como sujeito produtor de textos específicos. Sua intenção é construir um autor descorporificado, um puro formalismo linguístico: um “eu que se quer negro”, mas que não precisa ser negro.

Frente a esta posição, afirmamos que a literatura negra tem como fundamento uma política corporal que se desenvolve como uma estética identitária. Isto quer dizer que a teorização desta literatura não pode separar corpo, identidade e escrita. E, neste sentido, deve ser situada junto às problemáticas das literaturas indígenas, feminina e gay.

Chegamos assim ao segundo principio teórico de Bernd: o enunciador da literatura negra pode ser qualquer um, só é preciso “situar-se como negro”. Isto quer dizer que a experiência íntima, pessoal, física, de ser negro, num mundo dominado por brancos, estaria disponível para todos, como uma espécie de fantasia literária que qualquer um pode vestir.

Levando ao absurdo este principio, poderíamos também dizer que a literatura feminina é aquela onde qualquer um se situa como mulher e a literatura brasileira é produzida por aqueles que se situam como brasileiros.

Além desta impossibilidade, temos que relembrar aqui que a literatura negra escrita por brancos já tem sido teorizada como “negrismo”, para diferenciá-la da negritude. E o negrismo (onde também aparece um eu que se quer negro) é uma celebração folclórica do negro, sem projeção política, elaborada dentro do sistema dominante.

A ideia de Bernd de que qualquer um pode situar-se na pele de um negro desconhece ou pretende desconhecer a importância da experiência vital, da subjetividade como matéria-prima artística. Sartre, que foi o primeiro profeta da morte da Negritude, não chega a esse extremo e reconhece, com maior humildade, que o branco não pode escrever como um negro:

[...] um branco não poderia falar convenientemente a respeito dela, (a Negritude) porquanto não possui experiência interior dela e nos idiomas europeus faltam palavras capazes de descrevê-la. (SARTRE, 1968, p 110).

Nadine Gordimer, escritora sul-africana branca e ativista anti-apartheid, deixa bem clara essa dificuldade para o escritor branco:

A criação de uma identidade negra está baseada numa realidade que ele, enquanto branco, não pode se arrogar e que de nada lhe serviria se o fizes- se, já que não faz parte da sua vivência. [...] ele tem de admitir abertamente que a natureza da sua vivência como branco é completamente diferente da natureza da vivência do negro. (GORDIMER, 1992, p. 159).

A vivência negra é, então, intransferível, e é a matéria bruta a partir da qual a literatura se vem construindo. Um fazer de conta de que se é negro não passaria disso, um travestismo literário, uma paródia ou um exercício de solidariedade política.

Mas o problema maior na teoria de Zilá Bernd (como em Sartre) é afirmar, sabendo que se está num espaço de enunciação dominante, que a Negritude tem que ser superada por uma nova fase que, no caso de Bernd, é chamada de Negridade, ou seja, a exigência de que o escritor negro tem que se identificar com o proletário, o brasileiro e o latino-americano, para aceder a luta geral contra a opressão e conquistar uma arte mais humana. É necessário, de acordo com nossa teórica, se liberar da consciência racial (obviamente particular e inferior) para chegar a uma consciência política de classe (obviamente superior). A Negritude não consegue chegar a esse universalismo.

Portanto, é imprescindível dissolver-se numa luta maior que o branco sabe qual é. Porque é o branco que conhece as leis gerais da história. Só nós, os brancos, podemos construir a sociedade perfeita, “esse outro mundo possível”, que só a nós cabe determinar qual é como chegar a ele. 

Só nós conhecemos o verdadeiro sentido da liberdade, e é isso o que deve ser ensinado para todos os negros revoltados que ainda confundem negritude com libertação.

Como percebe-se, usei um discurso irônico para, de modo mais rápido, procurar mostrar que a teoria da literatura negra mais desenvolvida até hoje no Brasil procura na verdade neutralizar um movimento estético desafiador e assimilá-lo ao grande discurso brasi-universalista. Miriam Alves, escritora negra, vincula, e com toda a razão, a teoria de Bernd à ideologia de Gilberto Freyre:

[...] Bernd abraça a ideologia genocida apregoada por Freyre, segundo a qual a cor da pele de um negro é importante, desde que deixe de existir paulatinamente, num processo de miscigenação induzido ideologicamente, a partir da negação de valores do povo negro e massacre da auto-estima. (ALVES, 2002, p. 236).

Considero que as estratégias que venho de descrever são emergências da branquitude dentro da teoria e crítica literárias. As principais características seriam as seguintes:

a) falar desde um espaço de enunciação pretensamente não marcado por interesses étnico-raciais, portanto mais autorizado que aqueles discursos atrelados a políticas raciais;

b) instaurar a suspeita de racismo nos discursos étnico-raciais, reservando para si o autêntico anti-racismo;

c) defender uma literatura, uma crítica e uma teoria literária, baseada em critérios universalistas (sem adjetivos), portanto superiores aos critérios étnico-raciais.

Aplicados à literatura negra, estes critérios produzem a desarticulação entre políticas étnico-raciais e escrita, reduzem o conflito racial num conceito de opressão abstrato e acabam diluindo a diferença da literatura negra em um projeto internacional de libertação, que é o velho projeto branco ocidental colonizador.

Assim, os desafios colocados pela reflexão sobre a literatura negra são bloqueados; a concepção da identidade brasileira não será problematizada; a historia literária que se fundamenta nela não será questionada e, finalmente, a teoria literária continuará sendo apresentada como livre de toda determinação étnico-racial. Desta forma, pode-se continuar mantendo o controle institucional sobre a literatura, determinando as verdades estéticas e os rumos que a escrita deve seguir.

Encerro com uma última reflexão: teorizar e interpretar a literatura negra não se faz dentro de um espaço neutro e incontaminado. Falamos, queiramos ou não, dentro de um território atravessado por interesses e conflitos étnico-raciais, onde a gente adota uma posição de enunciação.

Afirmá-los, negá-los, silenciá-los, forma parte desse conflito. E a teoria tem a obrigação de deixar claro até que ponto esses interesses atuam na compreensão dos fenômenos literários.

Referências

ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In: FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna e FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poéticas afro-brasileiras. Belo Horizonte: Mazza; PUC Minas, 2002.

BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

BERND, Zilá. Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis. Palavras da Crítica. Rio de Janeiro, Imago, 1992.

CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme suivi de Discours sur la Négritude. Paris: Présence Africaine, 2004.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

GORDIMER, Nadine. O gesto essencial, literatura, política e lugares. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.

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* Uruguay Cortazzo Gonzalez é Doutor em Letras pela Roskilde University, professor da UFPel – Universidade Federal de Pelotas e responsável pela Biblioteca Negra de Pelotas-RS. É autor, entre outros, de Indios y latinos – utopias, ideologias, literaturas (2001), Delmira Agustini: nuevas penetraciones crítcas (1996) e Zum Felde, crítico militante (1981).

1. Ver, entre outros artigos, “Negritude, mística, sem lugar no Brasil” (1971). Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_cientificos/negritude_mistica.htlm>.

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