“Negritude”, “Negridade”, “Negrícia”:
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istória e sentidos de três conceitos viajantes 1

 Lígia Fonseca Ferreira*


A palavra “negritude” aparece com certa frequência na obra de escritores brasileiros contemporâneos, bem como em trabalhos acadêmicos sobre história, cultura ou literatura negra no Brasil. Num outro nível, a palavra faz parte do vocabulário de atores, cantores e músicos negros, circulando igualmente de forma variada na imprensa e na mídia em geral, fenômeno que reforçou sua vulgarização no país, sobretudo a partir dos anos 1980. Num dos principais sites de busca da internet, no momento em que escrevemos este artigo registram-se 86.500 ocorrências apenas nas páginas brasileiras. Seja no seu emprego erudito, seja no popular, o conceito de negritude aqui não se encontra nem fora de moda nem declinante, contrariamente ao que se dá na França, seu contexto de origem, e em algumas esferas francófonas.

Em artigo ainda não traduzido para o português, Roger Bastide procurou mostrar as diferentes realidades abrangidas por palavras aparentemente idênticas. Compara, então, a negritude2 antilhana à negritude tal como foi interpretada por intelectuais negros brasileiros nos anos 1950, levando em conta as condições particulares de ordem geográfica, econômica, social, política e cultural das Antilhas francesas e do Brasil. Referindo-se aos movimentos sociais promovidos na cidade de São Paulo por entidades negras nas primeiras décadas do século XX, Bastide constata que “sentimento da negritude já existia ali antes da palavra. [Quando surge], o termo Negritude iria apenas cristalizá-lo” (BASTIDE, 1961, p. 11, trad. nossa).

Alguns autores sustentariam que, desde o século XIX, graças aos versos do poeta e abolicionista Luiz Gama, o Brasil carregava o germe de uma “negritude virtual” que, por falta de “condições históricas [adequadas] não se enunciou enquanto tal [...]” (BERND, 1988, p. 54).

Sem realmente distinguir a palavra e o conceito, bem como o que estes a cada atualização nomeiam – um movimento estético e político, um ethos, uma ideologia –, tanto Bastide quanto Bernd sugerem que o tema “negritude” implica problemas de enunciação. Com efeito, podemos considerar que a negritude histórica nasce no momento em que é nomeada em francês, ou seja, quando o significante “negritude” é forjado nessa língua. Sua disseminação se amplia à medida que seu significado vai sendo construído, definido, reelaborado. O signo não tardaria a empreender uma longa viagem…

Como e em que momento a palavra “negritude” chegou ao Brasil? Como se torna “negritude”, ou seja, uma variação da anterior, alterada por nuanças semânticas adquiridas no processo de aclimatação ao nosso país? Que circunstâncias, ideias e sentimentos aqui encontrou? E se não tivesse sido acolhida e assimilada, que palavras do vernáculo poderiam ter sido empregadas em seu lugar? Para responder a essas questões, examinamos um corpus composto de artigos de jornal, manifestos, prefácios, entrevistas, prosa e poesia produzidos por negros em São Paulo entre os anos 1920 (surgimento da imprensa negra) e 1988 (centenário da Abolição), além de alguns escritos sociológicos e de crítica literária.

A escolha da cidade de São Paulo se fez não apenas com vistas à coerência focando o estudo em um único lugar, mas também pelo fato de, no período considerado, assistirmos à emergência e à afirmação de uma “escrita negra” na qual se espelhariam autores de outras cidades e estados do Brasil. Por fim, pareceu-nos necessário incluir em nosso corpus dicionários franceses e brasileiros, a fim de observar e comparar as definições dadas.

Duas outras palavras – “negridade” e “negrícia” –, que mostrariam visíveis afinidades semânticas com “negritude”, figuram, embora com menor frequência do que esta última, em textos e momentos diversos. Se navegavam em águas comuns, no que essas três palavras-conceitos se diferenciavam? Como se operou sua criação lingüística? Seria possível determinar quando esses conceitos foram enunciados pela primeira vez e incorporados ao vocabulário da escrita negra?

A fim de elucidar essa outra série de perguntas, procedemos a uma averiguação léxico-semântica, obedecendo a critérios de datação que permitissem ou tentassem restituir o contexto preciso em que aparecem as palavras “negridade”, “négritude” (em francês), “negritude” (em português) e “negrícia”. Pretendemos apontar, nos discursos em que observamos sua ocorrência, os elementos constitutivos da situação de enunciação: enunciador(es) e destinatário(s), ancoragem espaço-temporal. O tipo de suporte e o gênero de discurso foram levados em conta por influírem na situação de enunciação.

Com efeito, a história de uma palavra ou de um conceito compreende, além de suas origens, os deslocamentos de sentido motivados por um ambiente, uma época, ou ainda pelos efeitos de uma tradução quando se fazem empréstimos de modelos culturais exógenos. As palavras carregadas de um sentido ideológico podem também variar, num mesmo contexto nacional, em função da época ou de variáveis culturais, sociais e políticas, além de muitas vezes existirem ou circularem por tempo limitado, dependendo do processo que as validou. Retraçar a gênese linguística e semântica de alguns conceitos se tornou um imperativo metodológico em vários campos do saber, principalmente quando esses conceitos passam, segundo Bertrand Badie, por uma universalização abusiva (1986).Para esse autor, toda análise de ordem cultural exigiria que se apreendesse antes “arelação entre significante e significado que funda cada linguagem e expressa a identidade de cada cultura” (BADIE, 1986, trad. nossa).

Além das marcas identitárias presentes nos conceitos estudados aqui, pareceu- nos oportuno relembrar a existência dos termos “negridade” e “negrícia”, presentes em nosso corpus, mas atualmente inexistentes ou ignorados nos estudos sobre a escrita negra no Brasil.

Negridade

A palavra se forma a partir de negro + -idade, sufixo latino que significa “qualidade”, “maneira de ser”, “estado”, “propriedade”. Com exceção do Dicionário Aurélio (2004), não se encontra em outros dicionários consultados 3 . Segundo nosso levantamento, a palavra aparece pela primeira vez no “Manifesto à Gente Negra Brasileira”, lido por Arlindo Veiga dos Santos, fundador e presidente da Frente Negra Brasileira (FNB), em 2 de dezembro de 1931, dois meses após sua criação em São Paulo, diante de uma considerável plateia de sócios e simpatizantes da associação, que, depois de se transformar em partido em 1936, estende-se a vários estados. Evocando a tarefahistórica que os negros brasileiros tinham diante de si para pôr fim à sua exploração secular, Veiga dos Santos adverte:

A nossa história tem sido exageradamente deturpada pelos interessados em esconder a face histórica interessante ao Negro, aquilo que se poderia dizer a “negridade” da nossa evolução nacional; cessem, por conseguinte, os mitos, e [...] os excessivos louvores aos estrangeiros de ontem, italianos e companhia, e faça- se justiça ao Negro. (SANTOS, apud FERNANDES, 1978, p. 33-34, grifo nosso)

Que sentido, pois, atribuir à recém-criada palavra-conceito? O sonho da FNB, compartilhado por entidades congêneres na época, era mobilizar os negros para, juntos, lutarem por um lugar digno na sociedade brasileira. O Manifesto reivindicava também a “integralização absoluta [...] do negro, em toda a vida brasileira (política, social, religiosa, econômica, operária, militar, diplomática, etc.)”, bem como a valorização de suas competências “físicas, técnicas, intelectuais [e] morais [...]” (SANTOS, apud FERNANDES, 1978, 31).

Monarquista declarado, Arlindo Veiga dos Santos não escondia sua simpatia pelo integralismo, como se depreende do órgão da FNB, o semanário A Voz da Raça (1933), cujo subtítulo – “Deus, Pátria, Raça e Família” – estampava a tríade integralista, completada pelo elemento alusivo aos homens de cor.

A presença maciça de imigrantes, sobretudo italianos, na capital paulista reforçava, decerto, o tom nacionalista do discurso do líder frentenegrino, nacionalismo, aliás, que àquela altura permeia o pensamento político e a própria cultura, no Brasil e em outras partes do mundo. Nos anos 1920- 1930, as relações entre os italianos e os trabalhadores nacionais, entre os quais se encontram inúmeros negros e mulatos, são marcadas por conflitos e ressentimentos gerados pela competição no mercado de trabalho e por mecanismos desiguais de ascensão social, à medida que a industrialização e a ordem capitalista fincam-se na cidade. Se, de início, a proteção dispensada ao imigrante europeu por seus representantes causara inveja, ela serviria de modelo à FNB, que pretende cumprir papel semelhante junto aos seus associados: “[...] nós também, os negros, já temos um consulado para defender nossos interesses” (BASTIDE e FERNANDES, 1971, p. 240).

No entanto, a FNB jamais externou uma atitude francamente hostil em relação à sociedade branca, procurando inclusive obter reconhecimento, legitimação e respeitabilidade junto a alguns de seus membros mais esclarecidos. Embora raramente se mencione, as associações negras não foram ignoradas pelos intelectuais modernistas. Em 1937, pouco antes da dissolução da FNB, Oswald de Andrade endereçou uma eloquente mensagem de apoio aos seus membros (FONSECA, 1990, p. 224-5). Em 1938, Mário de Andrade e Arthur Ramos, entre outros, organizam com membros das associações e da imprensa negra de São Paulo as comemorações do cinquentenário da Abolição (DUARTE, 1971, p. 304).

Na década em que alguns estudos seminais celebrariam a mestiçagem e colocariam em destaque a contribuição do negro para a formação da cultura e da identidade nacional, reabilitar a “negridade” não era, portanto, tarefa exclusiva dos negros, pois o Brasil inteiro deveria, segundo Veiga dos Santos em seu Manifesto, “cessar de ter vergonha de sua Raça aqui dentro e [no plano] internacional”. Ou seja, quebrando os tabus da raça e da cor. Assim, se o significante “negridade” carrega tais marcas em seu conteúdo semântico, sua formação foi possível graças à superação de um outro tabu – o uso da palavra “negro”, palavra da qual deriva e que possuía valor depreciativo, evitado até por aqueles a quem se aplicava. As associações reuniam, portanto, “pretos” ou “homens de cor”. Quatro anos antes do Manifesto de 1931, Veiga dos Santos fazia questão de definir, numa mensagem aos pais, o sentido abrangente que empresta ao termo: “São negras todas as pessoas de cor, os pretos, os mulatos, os morenos, etc. Todos os descendentes do Africano e do Índio” 4 . Apesar do amplo espectro presente na definição do líder frentenegrino, a palavra “negro”, então frequentemente usada como um insulto, continuava sendo o anátema racista lançado exclusivamente aos descendentes de africanos, inseridos numa vasta gama de cores5.

Um orador popular e original do meio negro paulistano, Vicente Ferreira, contribuiria de forma decisiva para a reabilitação da palavra “negro” e para a sua inversão semântica, empregando-a no lugar de “homem de cor”. Para ele, negros e mulatos deveriam compreender que não havia nada de pejorativo em ser chamado de “negro”, mas que seria degradante encorajar o uso de “preto”, “homem de cor” ou “moreno”. Ousar legitimar a palavra “negro” e se auto designar como tal representava uma atitude, antes de qualquer coisa, política. Assim, Ferreira proclama, sem temer a redundância que dá força e libera: “Sou negro! Sou um negro consciente dos seus deveres! Sou um negro livre para o negro!” 6

Independentemente de qualquer tendência política dos grupos ou indivíduos, a ideia de assumir a palavra “negro” se repete e se fixa. Poucos ficam insensíveis à substituição de significantes e o tabu é enfrentado. Lino Guedes, poeta e jornalista negro bastante conhecido em seu meio, publica em 1936 uma coletânea de poemas cujo título é revelador: Negro preto, cor da noite.

Mais recentemente, o termo “negridade” comparece em duas obras de Zilá Bernd, que também empreende uma discussão terminológica, cujos pressupostos são um tanto diversos do que se apresenta neste trabalho. Em A questão da negritude, após lembrar que os promotores da négritude tentaram inverter a conotação pejorativa de “nègre” em francês, a autora afirma ser este vocábulo mais agressivo do que “negro” em português, já que “no Brasil, preto e negro se equivalem” (BERND, 1984: 54), o que explicaria a inadequação etimológica da palavra “negritude” ao contexto brasileiro. Para sair do impasse, a autora indaga-se sobre a palavra que melhor traduziria a luta contra os preconceitos, estimando que “num tempo futuro, [o] combate centrado na oposição ao branco se redimension[ará] no sentido da consolidação de uma noção de identidade negra, de uma NEGRIDADE” (BERND, 1984, p. 55, grifo da autora). A proposta de um “novo” conceito para a identidade negra brasileira traduziria a crença de que esta se encontraria insuficientemente cristalizada? Em obra posterior, Bernd considerará a literatura negra brasileira contemporânea como “instrumento legítimo” para o resgate da “dignidade do negro”, uma literatura que alimentada pela “herança africana” propiciaria a “passagem da negritude para a negridade” (BERND, 1987, p. 44).

No entanto, se o significado que Zilá Bernd tenciona dar a “negridade” é novo, o significante não o é. E, naturalmente, os movimentos de conscientização dos negros entre os anos 1920 e 1930 não poderiam “reivindicar ou utilizar” (BERND, 1987, p. 36) a palavra e o conceito de “negritude” ainda inexistentes.

A releitura atenta de documentos produzidos até o final dos anos 1930, o desejo de compreender esse passado dentro das condições específicas ao país revelam a primazia e o grau de autonomia com que os negros brasileiros se pensavam e deram substância, por meio de discursos inaugurais, à afirmação e à valorização de sua identidade ao mesmo tempo negra e brasileira. Os sentimentos, aspirações e ideias que inspiraram os sentidos de “negridade” pairavam no ar antes mesmo da criação dessa palavra-conceito cuja vida foi breve. A histórica négritude, que nasceria anos mais tarde, não fizera falta ao Brasil.

Négritude (em francês)

Criada pelo poeta martinicano Aimé Césaire (1913-2008 ), a palavra aparece pela primeira vez em Cahier d‟un retour au pays natal (1939), considerado por André Breton como um dos maiores “monumentos líricos” em língua francesa, espécie de meditação poética e política, nas quais se entrelaçam, entre ruptura e programa, os fios de uma experiência pessoal e da existência torturada de uma raça.

Nessa obra, a palavra “négritude” aparece com três sentidos: a) o povo negro (“Haïti où la négritude se mit debout pour la première fois...”); b) o sentimento ou a vivência íntima do negro (“[...] ma négritude n‟est pas une pierre, as surdité ruée contre la clameur du jour / ma négritude n‟est pas une taie d‟eau morte sur l‟oeil mort de la terre / ma négritude n‟est ni une tour ni une cathédrale [...]); c) a revolta e a consternação (“je dis hurrah! La visible négritude progressivement se cadavérise...”) 7 (DAMATO, 1996, p. 116). Césaire funda, ao criar a palavra, uma nova poética, e, a partir dali, os primeiros textos da negritude seriam poemas em que o novo signo transitaria de maneira imprecisa.

O ano da publicação do Cahier coincide com o ano do regresso de Césaire à Martinica 8 , após uma temporada de quase sete anos em Paris, onde fizera seus estudos superiores, mas onde, sobretudo, travara longa e estreita amizade com intelectuais provenientes de áreas coloniais francesas, negros do lado de cá do Atlântico, como o guianense Léon G. Damas, e africanos, particularmente o senegalês Léopold Sedar Senghor, que lhe revela a África. Os dois poetas, que mais tarde se destacariam também como políticos, iniciamse juntos, compartilhando um ponto de vista negro, na crítica à dominação colonial e aos efeitos perversos para os povos africanos e seus descendentes.

É curioso notar que, confundindo seguidamente o conceito e a invenção linguística, os esforços para estabelecer a data de nascimento e a paternidade da negritude revelam-se contraditórios, como se pode constatar nos principais dicionários franceses. O Dictionnaire historique de la langue française (1992) situa a criação do termo “difundido por Senghor” por volta de 1933. Segundo o Grand Larousse Universel (1993), Senghor, Césaire e Alioune Diop teriam cunhado a palavra por volta de 1935. As definições em geral apresentam traços comuns e, a título de exemplo, reproduzimos aqui a do Grand Robert, que também indica o ano de 1933: “ensemble des caractères, des manières de penser, de sentir, propres à la race noire; appartenance à la race noire”. Esse dicionário cita ainda, para uma boa compreensão do vocábulo, o ensaio de Jean-Paul Sartre, Orphée Noir, que servira de prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre ET malgache de langue française (1948). Foi somente a partir dessa publicação, quando a França mantém ainda seu império colonial, que se procuraria dar ao conceito um conteúdo semântico mais coerente. O filósofo via como constrangimento o fato de os poetas negros recorrerem à “língua do opressor” para a expressão artística, essa mesma língua que, paradoxalmente, contribuiria a disseminação e fortuna do novo conceito em seus países. No entanto, a invenção também rompeu uma fronteira no sentido inverso: “o termo um tanto feio de “negritude”, escreve Sartre em seu prefácio, é uma das únicas contribuições negras para o dicionário [da língua francesa]”.

Conscientização, atitudes, sentimentos, posições políticas, valores morais, espirituais, psicológicos: os sentidos a que remete négritude perturbam toda investigação sobre a origem de fenômenos que pré-existiram à criação da palavra, genialmente cunhada por Césaire. Daí a necessidade de determinar em que nível - ideológico, linguístico-semântico – essa origem será procurada. O poeta antilhano evocou, como fase de incubação da noção de négritude, o período em que, nos anos 1920, estudantes antilhanos e africanos residentes em Paris voltam seu olhar para o movimento americano do Harlem Renaissance (DEPESTRE, 1980, p. 73). Senghor confirmaria essa declaração, referindo-se a Claude McKay como o “verdadeiro inventor da negritude, não da palavra, mas de [seus] valores” (DAMATO, 1983, p. 115). A nova tomada de consciência seria acompanhada de um interesse crescente pela África e pelas marcas indeléveis deixadas pelo continente ancestral na mente e na alma dos filhos da diáspora.

A formação da palavra négritude não fora casual. O autor do neologismo pretendia também expurgar, como o fizera Veiga dos Santos, o mal-estar em ser e se dizer “nègre”:

Nossa luta era contra a alienação [...] Como os antilhanos se envergonhavam de ser negros [nègres], procuravam todas as perífrases para designar um negro. Dizia-se um preto [noir], um homem de pele morena e outras bobagens dessas... Já que tínhamos vergonha da palavra nègre, pois bem, pegamos a palavra nègre [...] (DEPESTRE, 1980, p. 75-76, grifo do autor)

Como se pode então constatar, as motivações de Césaire eram idênticas às que, alguns anos antes, levaram à reabilitação da palavra “negro” por um grupo de pessoas do meio negro de São Paulo, bem como à criação do conceito de “negridade”.

A projeção da negritude em direções divergentes deixaria trincado, dos dois lados do Atlântico, um movimento e uma ideologia que se pretendiam universais. Na esfera francófona afro-antilhana, será questionado, antes de ser pouco a poucoabandonado a partir dos anos 1970, o conceito, dirão os mais radicais, “inventado por Césaire mas comercializado por Senghor” (BETI e TOBNER, 1989, p. 6).

Mas, àquela altura, a palavra “négritude” de há muito começara suas viagens, extravasando as fronteiras do mundo negro francófono, bem como os limites da língua francesa e as conotações que nela adquirira. Manteve, no entanto, uma certa vocação universalista, prestando-se por vezes a avaliações quase utópicas.

Nos anos 1980, alguns autores ressaltaram o caráter globalizante da noção que poderia servir de ponte entre os povos da América Latina, como se “uma identidade cultural própria” (BERND, 1987, p. 15) pudesse ser de modo inequívoco compartilhada por países espalhados por três continentes.

Negritude (no Brasil)

A palavra esteve ausente dos dicionários brasileiros até 1975, data em que seria consagrada como “termo corrente da língua portuguesa” a partir da primeira edição do Dicionário Aurélio, no qual se encontra, sem indicação de datas ou etimologia, a definição mantida até hoje:

1. Estado ou condição das pessoas da raça negra; 2. Ideologia característica da fase de conscientização, pelos povos negros africanos, da opressão colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra, observada objetivamente (sic) na fase pré- colonial e perdida pela dominação da cultura branca ocidental.

No Dicionário Houaiss, a definição é mais sucinta e geral, sem qualquer alusão a movimentos ou ideologias específicas ao Brasil ou a qualquer região no exterior: “1. qualidade ou condição de negro; 2. sentimento de orgulho racial e conscientização do valor e riqueza cultural dos negros”. O verbete também não traz datas nem indicação etimológica.

Seja como for, tomando por base a segunda definição fornecida pelo Dicionário Aurélio, talvez não seja um risco afirmar que a palavra “negritude” só viria a se banalizar no Brasil a partir dos anos 1970. E ela o será muito mais por influência da ideologia subjacente à descolonização africana do que pelo contato direto com a produção literária francófona. Os textos fundadores da negritude ainda aguardam traduções em português, embora os brasileiros tenham se beneficiado de uma certa forma de mediação. Textos e autores da negritude eram temas de críticas ou resenhas que circulavam nos meios intelectuais ou universitários forçosamente restritos. O que se sabe sobre negritude é aprendido por intermédio de tais escritos, como o provam os artigos de Roger Bastide publicados no jornal O Estado de São Paulo ou nos Cadernos Brasileiros.

Num certo sentido, pode-se dizer que a “negritude” brasileira, ao menos no que se refere à sua compreensão inicial, prendeu-se mais à vertente senghoriana, ou seja, africana, do que à antilhana, que permaneceria ou permanece entre nós praticamente desconhecida. O autor de A poesia afro-brasileira, que contribuiu para a introdução do conceito de negritude entre nós, salienta sua riqueza à medida que resgata a originalidade e a nobreza do pensamento africano, ou seja, a “razão intuitiva” de que fala Senghor. Bastide, aparentemente incomodado pela derivação da palavra “négritude”, teria preferido que o movimento se denominasse “africanitude”, assentando-se mais em bases culturais do que raciais (BASTIDE, 1961). Outros ecos chegam a São Paulo, como os do militantismo africanista de Abdias do Nascimento. A tônica africana da negritude se explicaria também pela repercussão dos movimentos de independência das nações africanas. Enfim, como prova dos laços que a associam a essa vertente, o Brasil receberá, no final dos anos 1960, a visita dos poetas políticos Léopold Senghor e Léon Damas, acolhidos em São Paulo pela comunidade negra e por entidades como a Academia Paulista de Letras e a União Brasileira de Escritores (OLIVEIRA, 1988, p. 210).

Vimos, portanto, que até o início dos anos 1960 o termo “negritude” não está muito em voga. Acreditamos que o fato de começar a se difundir, entre 1960 e 1975, em certos meios intelectuais paulistanos em que convivem negros e brancos sofreu seguramente a influência da publicação dos seguintes textos: 1) a tradução de Orfeu Negro (1960), de Sartre; 2) Novo conceito da negritude (1962), de R. Bastide; 3) Negritude (1966), de Henrique L. Alves; 4) Gestas líricas da negritude (1967), poemas de Eduardo de Oliveira; 5) Sérgio Milliet e a poesia negra (1968), de João A. das Neves; e 6) O carro do êxito (1972), contos de Oswaldo de Camargo. 9. Nesses textos, delineiam-se ao menos duas concepções de negritude.

Inicialmente cabe assinalar Gestas líricas da negritude, a primeira obra de um poeta negro, Eduardo de Oliveira (1926), a se referir explicitamente a uma negritude, como lembra o autor, legitimada internacionalmente por renomados intelectuais negros e brancos, de nacionalidades diversas, como Senghor, Césaire, Sartre e Langston Hugues (OLIVEIRA, 1967, p. 12-13). No “Prólogo”, o autor sintetizaria assim sua concepção do movimento no qual com sua obra acredita inscrever-se em nome do Brasil:

A arte e a poesia negras, segundo esta escola, pretendem – sem pruridos xenófobos ou sectarismos fanáticos de quaisquer naturezas – defender e valorizar tudo quanto pertença ou se identifique com o mundo negro, parta de onde ou de quem partir dentro ou fora das “Afriques noires” 10 . (OLIVEIRA, 1967: 13) O tom conciliador presente na obra de Oliveira, poeta cristão, marca seu distanciamento em relação aos movimentos de independência africanos que abraçaram a ideologia marxista, como naquele momento ocorria em países de colonização portuguesa. Trata-se, pois, de uma negritude pacífica, de inspiração nitidamente senghoriana em suas aspirações universalistas, embora preveja a necessidade de se aculturar a diferentes tempos e espaços. A tonalidade própria sobressai em vários poemas, por meio da glorificação da cultura negra brasileira, do Quilombo dos Palmares aos orixás.

Mesmo se até os anos 1960 cabe principalmente a R. Bastide a introdução (ou seria mais correto dizer transposição?) do conceito de negritude no Brasil, visto ter sido, por algum tempo, seu comentador quase exclusivo por meio da imprensa paulistana, alguns brasileiros não partilhariam o mesmo entusiasmo do mestre francês, que, por conta de sua nacionalidade, sem dúvida recebia e acompanhava o desenrolar da negritude a partir de outras referências culturais. Críticos como João A. das Neves não escondem seu ceticismo em relação a uma negritude sem fronteiras, algo quem sabe até ultrapassado, como fazem crer as considerações que, além de minimizar o fenômeno, ilustram a percepção brasileira quanto às origens puramente africanas do movimento: “a negritude”, escreve ele, “foi um movimento exclusivo dos poetas africanos [de língua francesa], o que explica que seus irmãos de língua inglesa nunca aderiram totalmente tanto ao movimento político como ao literário”. A afirmação é tanto mais interessante por coincidir com o momento em que entram em cena, no campo da literatura negra produzida em São Paulo, seus dois mais significativos representantes: Eduardo de Oliveira e Oswaldo de Camargo. Um, advogado, o outro jornalista, ambos estão em contato permanente com figuras como Bastide, Florestan Fernandes, Sérgio Milliet, Henrique L. Alves ou, ainda, Tristão de Athayde, nomes graças aos quais se criam instâncias de legitimação da literatura negra em São Paulo. Esses intelectuais escrevem os primeiros ensaios, críticas e prefácios das obras dos escritores negros. Uma análise mais detalhada dessa produção mostra que “négritude” não foi adotada sem tentativas de encontrar um equivalente no vernáculo. Por ocasião do 70o aniversário da Abolição, Sérgio Milliet dedica um ensaio à poesia negra em diferentes línguas e países, chamando o fenômeno de “negridão” (MILLIET, 1958), mesmo ao tratar de Césaire ou Senghor. O crítico bilíngüe de origem suíça não sucumbiu à tentação de simplesmente transpor para o português uma palavra estrangeira diante da qual manifestariam desconforto alguns confrades, como veremos a seguir.

Negrícia

A palavra não consta dos dicionários consultados. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa assinala a seguinte derivação: de negro + -ícia, sufixo latino, feminino de -ício = “qualidade”, “propriedade”, “maneira de ser”. Em nosso corpus, observamos a primeira ocorrência em “O novo Cruz e Sousa”, prefácio de Tristão de Athayde à obra Gestas Líricas da Negritude, de Eduardo de Oliveira.

Ora, a escolha de um prefaciador de renome e atento a novas poéticas mostrava que a crítica oficial, naquele momento, lançava um olhar interessado sobre a poesia negra brasileira, como o fizera anteriormente um “estrangeiro”, R. Bastide. Tenta-se compreender a poesia negra a partir de um possível lugar dentro do sistema e da tradição literária brasileira. Athayde vê, na poesia de Oliveira, não uma submissão, mas uma relação com a negritude. Com certa reserva e de modo sucinto, o crítico confessa seu desconforto diante do galicismo:

E. Oliveira restituiu [...] à poesia brasileira o seu sentido épico. É a epopéia de um drama universal, de uma voz intercontinental [...] Não há preocupação da escola [...] Não é nem modernista nem passadista. Não é concretista nem abstracionista. Não se filia a este ou àquele grupo, a este ou àquele estilo. É do povo e mesmo assim não é populista nem folclórica. [...] [Sua] música está substancialmente ligada à alma da negritude ou da negrícia, como eu preferiria que dissessem [...]. (OLIVEIRA, 1967, p. 8, grifo nosso).

Por que “negrícia” em vez de “negridão”, ou “negridade” ou ainda “negrismo” 11 ? A longínqua designação do mundo negro na cartografia portuguesa – “Nigrícia” – ressoava na memória do erudito Athayde? Ou o sufixo -ícia parecia mais suave aos ouvidos de um lusófono do que o sufixo -(i)tude, mesmo sendo este perfeitamente aceitável na língua portuguesa? Ao propor aquela significante estaria o crítico tentando ressemantizá-la a partir de conotações mais próximas de um caráter ou de uma identidade negra “intensamente brasileir[a]”? Podemos imaginar que o conceito de “negrícia” talvez contivesse um traço semântico menos agressivo do que “negritude”, já que a poesia de Oliveira, na qual Athayde lê a indignação em face da “dor imemorial” do povo negro e a revolta contra “imemorial preconceito”, segue o caminho da “não-violência” do grande líder negro de então, Martin Luther King, e não incita ao ódio inter-racial.

Contudo, a ocorrência do termo ora analisado não se limita ao prefácio de Athayde. Em 1972, “Negrícia” (entre aspas) é o título de um dos contos de O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo (1936). Poeta, contista, jornalista, crítico, bibliófilo e organista, Camargo é um dos primeiros a se designar “militante da literatura negra brasileira” e, se não o mais importante, uma das figuras mais conhecidas de uma corrente que ele mesmo ajudou a criar. Sua carreira se desenrolou na capital paulista, e um dos sinais distintivos desse escritor incontestavelmente negro é sua “cara de africano” 12 . Desde suas primeiras obras, anuncia-se um dos temas recorrentes de seu trabalho, o ser dividido (intelectual, sentimental e espiritualmente) entre o mundo dos brancos e o mundo dos negros, mundos entre os quais Camargo criaria pontes, pontes também por ele construídas entre os antigos e os novos “militantes” da literatura negra, papel pressentido por Florestan Fernandes, no prefácio a 15 poemas negros (1961). Se a obra de Camargo se dirige ao negro, nela se adivinha o branco como destinatário implícito.

Nos contos de O carro do êxito, Camargo põe em cena uma burguesia negra emergente no universo cosmopolita de São Paulo, composta de políticos, advogados, estudantes, jornalistas, poetas, músicos, empresários, crioulos ricos, etc. As ações transcorrem nos lugares frequentados pelos membros dessa elite negra, como por exemplo o bar e restaurante Malungo, onde jovens intelectuais se reúnem para discutir o futuro da “raça”, o ambiente nas redações de jornal, as conferências e os bailes organizados pelos clubes e associações negras. Com toques imperceptíveis, Camargo se insinua nas filigranas de uma narrativa que dá ensejo a uma espécie de regionalismo urbano negro.

O que nos conta “Negrícia”? O narrador, jornalista do Pixaim, faz uma reportagem sobre a festa organizada pelo Doutor Brasílio em homenagem à Mãe Negra. De uma hora para outra, em lugar dos sambas ouvem-se prelúdios de Liszt, deixando entre atônitos e descontentes os convidados. No fundo da sala, o repórter avista Deodato, só e alheio ao que acontece ao seu redor, e se pergunta: “Onde andava o pensamento dele? A garota dele? A "negrícia‟ dele?”. De repente, o rapaz é chamado a declamar poemas e a tocar Bach ao piano, para a exasperação dos convivas. O repórter condói-se do esforço inútil do apático jovem apresentado pelo pai como futuro líder da “sociedade negra [da] grande São Paulo”, e cala seu desejo de fazer-lhe um convite para olhar ou buscar a vida em outra direção: “Tive pena do Deodato [...] Me deu vontade de dizer: – Vem com a gente, menino, nossa mãe vai gostar de você. Vem ver nossa casa, vem ver a família da gente [...] Vem ver a "negrícia‟ da gente. Você está morto, menino, mortinho!”.

Como interpretar as aspas que acompanham negrícia no título e no corpo do texto? O autor-narrador desejaria realçar o neologismo ou a fala de outrem? A negrícia de Camargo se aproximaria, então, da negrícia brasileira proposta por Athayde, sentimento íntimo e natural de pertencer a um grupo, sem que essa atitude suponha um esforço ou uma construção conceitual. Deodato não comunga com os participantes da festa, ignora o modo de vida, os pontos de encontro, os valores fortemente compartilhados pelos outros negros. O repórter chegara até a imaginar perguntas para mostrar a Deodato a que ponto era inconsciente de sua “negrícia” e das referências inscritas na história e no cotidiano do meio negro paulistano.

O carro do êxito mostra um momento ainda de hesitação quanto à escolha de um significante para nomear as novas atitudes e comportamentos dos negros em ascensão. Na mesma obra, “negrícia” convive com “negritude”, negritude que seria então devorada, no sentido próprio e antropofágico, pela nova geração negra. A comparação das duas narrativas revela nuanças entre os dois conceitos.

No conto “Negritude” (também entre aspas), o personagem-narrador Massango (seu apelido, pois parece “africano”) medita sobre seu tédio no bar Malungo, onde encontra Berenice, uma jovem que frequenta duas faculdades. Enquanto conversam, ele abre distraidamente um livro da estudante sobre “Negritude”. Aqui, as aspas traduzem a ignorância de Massango, que nunca ouvira falar do assunto já um pouco antigo, antes de ser informado com muito entusiasmo que se tratava de “um movimento de reivindicação cultural, fincado na África em 1930”. Depois de ler uma “página do Abdias”, Berenice comenta que se trata de uma “atitude, quatrocentos anos de servidão”, enquanto o espírito melancólico de Massango o afunda em suas lembranças, até que desperta: “Quando Berenice acabou, percebi que eu estava mal de "negritude‟, eu era um que não sabia, que ficava ouvindo o Neco batucar no caixote, e parado no "Malungo‟, enquanto a África caminhava sem a nossa mão de descendentes”.

As explicações da jovem mostram que essa “negritude” entre aspas é, mais do que “negrícia”, uma fala de outrem, daí a função do livro no conto, e implicou um aprendizado intelectual. Num certo sentido, portanto, a “negrícia” é, a “negritude” se aprende. O conteúdo desta última se aclara na conversa entre Massango e Berenice: o conceito é antigo, africano, cultural, político (a África se emancipa), subjetivo (uma “atitude”), sua transmissão se faz por meio dos livros, da mediação de um ator real, Abdias do Nascimento, considerado por alguns como “profeta e apóstolo da negritude” no Brasil (NASCIMENTO, 1982).

Tanto os indícios como as referências presentes no conto de Camargo traduzem as representações, ou seja, a maneira como a negritude seria percebida, digerida e difundida entre os intelectuais negros militantes da segunda geração posterior à dos líderes negros dos anos 1920-1930. Assim, a personagem Berenice ganhou uma nova luz quando, em 1990, entrevistamos alguns membros do Quilombhoje, que se define como “coletivo de escritores negros”, fundado em 1978 em São Paulo e ativo até hoje 13 . Indagamos o que entendiam por “negritude”. José Abílio Ferreira (1960) declarou: “Aprendi mais nos textos de sociologia do que em textos literários [...] o prefácio de Sartre também foi importante [...]”; Arnaldo Xavier (1948-2004) manifestou- se no mesmo sentido: “Lemos Amílcar Cabral e a Sociologia da negritude 14 (...)”; e Márcio Barbosa (1959) acrescenta: “Começamos a usar o conceito de negritude sem saber de onde vinha exatamente. No jargão daqueles que, como eu, frequentavam os bailes [funk], queria dizer a valorização de nossa pessoa, de nossa 'negritude'”.

Para os escritores aqui analisados, a falta de traduções em português impediu a leitura dos textos fundadores sobre a negritude em língua francesa. A ideia, portanto, do que representava a noção lhes chega por intermédio de escritos sociológicos, brasileiros ou portugueses, ou da leitura de escritores africanos lusófonos.

Considerações finais

Escapa a bom número de estudos sobre a escrita negra no Brasil que a construção e a afirmação de uma identidade negra brasileira se inscreve numa continuidade temporal, como se observa no caso de São Paulo. Desde as primeiras décadas do século XX, alguns representantes da comunidade negra não deixaram de propor reflexões coerentes com a consciência que se podia ter em seu tempo e com as condições históricas capazes de favorecer ou reprimir seu projeto literário e/ou político. Pensemos nas ditaduras que, em dois momentos, amordaçaram as vozes discordantes, estancando discussões sobre temas como o racismo, as religiões afro-brasileiras, a introdução do critério cor nos recenseamentos nacionais, etc.

Se se adotar como modelo a negritude afro-antilhana como paradigma de análise de fenômenos literários ou identitários dos negros brasileiros, corresse o risco de se desconsiderar aspectos relevantes, de se criar descompassos. Retomando a expressão de R. Bastide, a anterioridade do “sentimento da negritude” no Brasil se confirma pela anterioridade da invenção da palavra “negridade”, em 1931, ou seja, oito anos antes do termo “négritude”, criado em 1939. O conceito de “negridade”, porém, não vingou.

Nos anos 1960, que consideramos como sendo os da instituição (no sentido de J. Dubois) da literatura negra em São Paulo, a alternativa representada por “negrícia” convive temporariamente, sem realmente ameaçar sua existência, com o conceito de “negritude” que vai se aclimatando. Poder-se ia aventar duas razões: por um lado, a recepção restrita da literatura negra em São Paulo e uma resistência que ainda hoje perdura em se reconhecer a corrente e se aceitar a denominação; por outro, o prestígio e a rápida internacionalização de que já se beneficiava o quadro conceitual (e retórico) da histórica “négritude” afro-antilhana, tanto no âmbito estético como político.

Há mais de vinte anos, censurava-se, no Brasil, o desconhecimento da história bem como o emprego, cercado de “ambiguidade” e “imprecisão”, do conceito de negritude por parte de representantes dos chamados “grupos oprimidos” (DAMATO, 1983, p. 112). Tal crítica remetia especialmente ao uso cada vez mais intenso da palavra por cantores e músicos brasileiros dos anos 1980 que sem dúvida lhe ignoravam a história. No entanto, não se levava em conta que, àquela altura, há mais de quarenta anos de distância, seria difícil encontrar em sua pureza as acepções iniciais de um termo nascido em condições históricas particulares. Assim, comparar as declarações apressadas feitas por artistas contemporâneos sobre o tema, tal como o conceito se afigura hoje no país, com discursos filosóficos, políticos e estéticos da negritude fundada por intelectuais negros submetidos ao colonialismo francês, conduziria inevitavelmente, do ponto de vista teórico, a alguns impasses e discrepâncias. No plano metodológico, seriam mais efetivas as comparações que levassem em conta gêneros similares, temporalidades e realidades específicas dos discursos identitários produzidos em seus contextos de origem.

A exemplo dos procedimentos habituais nos trabalhos relativos à influência das ideias estrangeiras no Brasil, talvez se devesse pensar a negritude sob o ângulo das representações e, por conseguinte, como mais uma vítima feliz de nossa antropofagia.

Mesmo assim, que não haja ilusões: depois de sua viagem, o conceito ou o paradigma da negritude não foi devorado sem reservas no Brasil, nem no que se refere à reflexão identitária nem no plano da expressão literária. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, o jornalista José Correia Leite (1900-1989), um dos militantes históricos da imprensa e das associações negras de São Paulo e colaborador assíduo das pesquisas de Roger Bastide e Florestan Fernandes, prestava um de seus últimos depoimentos. Sem sofisticação teórica, mas do alto da vivência que atravessara quase um século, Correia Leite fez o seguinte balanço: “[...] as mesmas coisas que se dizia para protestar no início do século, se diz hoje, a não ser essa coisa de 'assumir a negritude', que veio lá da França e não tem nada a ver com o Brasil” (LEITE, 1988).

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Notas

1 Este artigo baseia-se em parte, com os devidos acréscimos e atualizações, em trabalho anterior, publicado na França em 1996.164 VIA ATLÂNTICA No 9 JUN/2006

2 Manteremos esta ortografia em itálico, para diferenciá-la de “negritude”, quando for preciso evocar aspectos específicos da palavra ou do conceito em língua francesa – ou seja, do movimento estético e político antilhano e/ou africano nascido nos anos 1930-1940.

3 Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1964; Lexilello. Lello e Irmãos, 1989; Novo dicionário brasileiro Melhoramentos ilustrado. São Paulo: Melhoramentos, 1965; Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Instituto Antonio Houaiss/ Objetiva, 2001.

4 Cf. “Palavras aos pais negros”, Clarim da Alvorada, 13/5/1927.

5 Nos anos 1930, Mário de Andrade denunciou a forte conotação racista e denegridora da palavra “negro”, da qual ele mesmo fora vítima. Explicava que quando um brasileiro (branco) se zanga contra alguém cuja cor o deixa em dúvida quanto a uma possível origem africana, logo lhe joga à cara o xingamento – NEGRO! Mário, porém, afirma tranquilamente, depois de ter sofrido o insulto: “Não me destruiu, ao contrário, eu vou muito bem, obrigado!” (M. de Andrade, “A superstição da cor”, Publicações Médicas, São Paulo, junho-julho 1938, p. 64-65). A inclusão do índio e do mulato como referentes de “negro” nos remete às observações de J. R. Tinhorão acerca da oscilação semântica dessa palavra em português ao tempo das descobertas, quando podia designar qualquer indivíduo de pele morena ou escura que os portugueses passavam a encontrar. Cf. José Ramos Tinhorão. Os negros em Portugal. Lisboa:Caminho, 1988, p. 71.

6 Cf. Vicente Ferreira, “Raça Negra, de pé”, Clarim da Alvorada, 23/8/1931.

7 Em tradução literal: a) “Haiti, onde a negritude ficou de pé pela primeira vez...”; b) “[..] minha negritude não é uma pedra, sua surdez lançada contra o clamor do dia / minha negritude não é a catarata nova poética, de águas mortas no olho morto da terra / minha negritude não é torre nem catedral [...]”; c) “eu digo hurra! A visível negritude progressivamente se cadaveriza...”.

8 Ex-colônias francesas nas Américas, as ilhas Martinica e Guadalupe, no Caribe, e a Guiana, na América do Sul, são hoje departamentos da República Francesa, gozando de estatuto idêntico ao dos departamentos da França Metropolitana.

9 Cf. Jean-Paul Sartre, Reflexões sobre o Racismo, 1a. edição, São Paulo, Difel, 1960; Roger Bastide, op.cit.; Henrique L. Alves, Negritude, São Paulo, s. e., 1966; João Alves das Neves, O Estado de São Paulo, 2 mar. 1968; O. De Camargo, O carro do êxito, São Paulo, Martins, 1972.

10 Em francês no original

11 Palavra ausente de nosso corpus. Encontramo-la, no entanto, em Lima Barreto quando evoca seu desejo de um dia escrever um Germinal negro e assim fundar o “negrismo” na literatura brasileira (Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 84). Um único registro em dicionário aparece no Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos Ilustrado que apresenta a seguinte definição: “Negrismo = tendência a representar na literatura ou nas artes em geral, as ideias, os sentimentos ou os costumes dos negros” (São Paulo: Melhoramentos, 1965).

12 Entrevista concedida à autora em janeiro-fevereiro de 1990 (não publicada)

13 Entrevista concedida à autora em fevereiro de 1990 (não publicada).

14 Trata-se da obra de Maria Carrilho, Sociologia da Negritude, Lisboa, Edições 70, 1975.

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