Literatura e Teoria da Diáspora Negra das Américas:

entre tempos e lugares em busca de lares

 

Roland Walter*

 

The real tragedy of our postcolonial world is not that the majority of people had no say in whether or not they wanted this new world; rather, it is that the majority have not been given the tools to negotiate this new world.
Chimamanda Ngozie Adichie

… an old woman embarrassed by the world; her way of objecting to how the century is turning out. Where all is known and nothing understood.
Toni Morrison

 

Se segundo a narradora em Half of a Yellow Sun de Adichie (2007, p. 129), a maioria de nós não tem “as ferramentas para negociar este novo mundo pós-colonial” e a voz narrativa de uma mulher idosa em Love de Morrison (2003, p. 4) descreve o mundo de hoje como espaço/ lugar “onde tudo é conhecido e nada entendido”, então é necessário examinar esta não negociação e este não saber contemporâneos.[1] Neste ensaio entrarei em diálogo com as duas epígrafes mediante obras de vários escritores/as afrodescendentes das Américas com o objetivo de contribuir para o entendimento de certos aspectos de uma colonialidade que sombreia o Dasein na diáspora e cujas raízes encontram–se no sistema da plantação e na máquina da escravização. Neste processo, apresentarei uma abordagem teórica que estou desenvolvendo para a análise da representação da dupla brutalização (pessoas/ ambiente) nas literaturas interamericanas, aqui representadas pela literatura negra.

Genocídios, escravizações, máquinas de plantação, subalternizações: voilà a história das Américas resumida em quatro termos. Quatro termos que descrevem o que Eduardo Galeano memoravelmente chamou “la mémoire brisée” (2005, p. 93) e “la memoria secuestrada de toda América” (1982, p. 12) dentro de  uma “não historia” (GLISSANT, 1992, p. 62), ou seja, uma história esquizofrenicamente caracterizada por lacunas e rupturas com base na violação dos direitos humanos, vegetais e animais. Francisco Alarcón (1992, p. 34) argumenta que as Américas continuam ser “invadidas, ocupadas, branqueadas, fragmentadas, higienizadas, suprimidas e/ ou ignoradas”. Como trabalhar este espejo trizado[2] das Américas? Em seguida, gostaria de problematizar esta questão mediante a literatura negra das Américas.

O filósofo, poeta e romancista martiniquenho Édouard Glissant diferencia entre o mundo universal da mesmice cultural e um padrão da diversidade fragmentada. A diversidade, portanto, é um dos conceitos-chave do pensamento glissantiano sobre relações culturais rizomáticas que constituem o Todo-Mundo: Caos-Mundo em que cada identidade é continuamente constituída e reconstituída mediante a interação de enraizamento e errância: um universo caracterizado pelos polirritmos do entrelaçamento da humanidade com toda a biota ― uma complementaridade de elementos contrários inerente aos estilos e cosmovisões barrocos das Américas. A teoria da crioulização é baseada nos fluxos transculturais que abrem fronteiras fixas e nações homogêneas para seus espaços fronteiriços, arquipelizando as Américas e o mundo. Neste processo, a relação com a terra torna-se uma questão-chave em particular para os afrodescendentes e para a humanidade em geral. Os escravos e seus descendentes viveram como exilados proibidos de desenvolver qualquer relação de livre escolha com a terra e o lugar onde trabalharam e viveram. Desta alienação resultou a não inscrição na história e cultura oficiais vividas e percebidas como não lugares; ao mesmo tempo, esta alienação tornou-se o solo fértil para a (re)apropriação/ (re)criação de lugares-lares nos diversos contextos sociais, históricos e geográficos das culturas deste continente.

Para os escritores afrodescendentes, portanto, é de suma importância trabalhar a relação entre o indivíduo e a paisagem em busca da “duração temporal” e cultural. A estética da terra glissantiana, ao enfatizar que a terra pan-americana e os seus habitantes são saturados por traumas de conquista — o violento “tempo sofrido”, e o “espaço transferido” (1997a, p.144) do continente americano —, liga o individuo, a comunidade e a terra no processo de criar história da “não historia” (neo)colonial cheia de lacunas, desvios, rupturas e distorções; não história esta que impossibilita os afrodescendentes de criarem uma posição de sujeito baseada na afirmação de direitos humanos delineados, entre outros, na Universal Declaration of Human Rights das Nações Unidas. Esta não posição enquanto identidade/ discurso alienados, quebrados, distorcidos, ou seja, outrizados, é, segundo as escritoras Toni Morrison e Jamaica Kincaid, resultado de um longo processo de  ‘orfanização’. Em seguida, examinarei esta questão em textos de Toni Morrison, Jamaica Kincaid, Patrick Chamoiseau e Gisèle Pineau.

Em Compaixão (2008) de Toni Morrison a voz narrativa observa que o processo da colonização e dominação (de pessoas e terras) levou à fragmentação e alienação (de pessoas e coisas) e o seu efeito mais perverso é o “murchar por dentro que escraviza e abre a porta para a ferocidade” (p. 150). O livro de Morrison — que enquanto metaficção historiográfica volta às origens multiétnicos e culturais dos Estados Unidos para revelar e problematizar as raízes coloniais da árvore neo/ pós-colonial contemporânea da nação — delineia uma sociedade escravocrata onde as pessoas se deixavam guiar pela selvajaria colonial, as múltiplas formas e práticas de uma violência embrutecedora encadeada pela máquina colonial que transformava as pessoas em “órfãos” (p. 59); selvajaria esta que começou a ter um impacto em todos envolvidos, como enfatiza Stamp Paid, personagem no romance Amada da mesma escritora (1994, p. 233): “Era a selva que os brancos tinham plantado neles [os negros]. E ela crescia. Aumentava. Na vida, durante a vida, depois da vida, ela se espalhava até alcançar os brancos que a haviam plantada”. Assim, os Estados Unidos não constituíam uma casa como lar, um home, para muitos dos seus habitantes. Numa passagem memorável do romance Paraíso de Morrison um padre lamenta esta situação e seus efeitos no presente dos anos 80 do século XX:

Terra natal não é pouco’. [...] Não uma fortaleza que você comprou e construiu e tem que manter trancada para os de fora e para os de dentro. Uma terra de verdade. Não um lugar que você reclamou, que conquistou pelas armas. Não um lugar que você roubou das pessoas que viviam aqui, mas uma terra própria, onde você pode recuar até os seus tataravós, e antes e antes deles, antes de toda a história ocidental, antes do começo do conhecimento organizado,  [...] (1998, p. 246-247).

Além de conotar um u-topos americano, Morrison desconstrói a teoria do/a ‘selvagem’, humanizando os indígenas e afrodescendentes, num ato de descolonização literária que descarta a dependência da definição ocidental da humanidade da presença do não humano como incivilizado e animalesco. Neste sentido, a escrita morrisoniana revela e problematiza a justificação de processos de invasão/ colonização/ dominação e sua base antropomórfica e racista-sexista que nega e cancela o self independente dos Outros (humanos e não humanos) com o objetivo de contribuir para a criação de um mundo/ uma linguagem/ uma casa caracterizados por “racial specificity minus racial hierarchy” — especificidade racial menos hierarquia racial, o que ela chama “the deracing of the world”, ou seja, a desracialização do mundo (MORRISON, 1998, p. 8, 11)[3].

Em Mr. Potter, como em toda a sua obra, Jamaica Kincaid problematiza os efeitos que a colonização continua exercendo na chamada pós-colonialidade antilhana. O protagonista Sr. Potter, órfão de um pescador que morreu e uma mãe que se suicidou, passa a mesmice de sua vida de taxista sem jamais aprender a ler e escrever. A única exceção a esta rotina diária — simbolizada pelo sol que nunca falha em brilhar — é constituída por momentos passageiros nos braços de diferentes mulheres. Das muitas filhas, que ele não faz questão de conhecer, somente a narradora (Jamaica Kincaid) consegue uma educação. Contar a história de seu pai significa dar-lhe uma voz que ela própria nunca ouviu e que ele nunca teve: “O Sr. Potter nunca diz nada, nada mesmo. Deve ser triste […] nunca ter tido uma voz” (KINCAID, 2002, p. 189). O livro problematiza esta voicelessness pós-colonial, ou seja, o paradoxo de ter e não ter uma voz enquanto legado principal da colonialidade. O Sr. Potter tem uma voz e sabe falar, mas num inglês mascavado, difícil a entender.  O Sr. Potter tem uma voz, mas por ela não ser ouvida/ entendida, permanece muda.

A subalternização dos iletrados pelos letrados, portanto, continua como “o palimpsesto da continuidade pré-colonial e pós-colonial fraturada pela imposição imperfeita de uma episteme iluminista” (SPIVAK, 1999, p. 239). Em termos identitários, isto significa que o Sr. Potter, nas palavras da narradora, move-se de “darkness” para “blankness”: da escuridão colonial (do navio negreiro e da plantação) para o vazio, a nulidade, a não expressão pós-colonial; um movimento estático na sua essência porque a posição subalterna do sujeito é aprisionada na sua inferioridade. A violência desta contínua estratificação social e racial, portanto, consiste em tirar dos subalternos a sua história e a sua voz (ambas necessárias para articular seus sentimentos e pensamentos) e, desta forma, marginalizá-los enquanto “desprezados” (KINCAID, 2002, p. 69), “odiados” (p. 86) e, portanto, seres humanos danados à sombra do esquecimento. Neste sentido, sem receber reconhecimento, sendo “seres [...] impedidos de possibilidade” (BUTLER, 2004, p. 31), como é que o ser pode persistir no próprio self?

Neste contexto, surge a questão-chave do livro (e uma das mais importantes na obra de Kincaid), a saber: como é possível existir “amor e justiça num ermo, num mundo tão vazio de sentimentos humanos” (KINCAID, 2002, p. 72)[4]? Por meio de um estilo que faz lembrar aquele de Gertrude Stein — estilo impessoal e direto; blocos de episódios caracterizados por contextualização incremental e iteração, entre outros — Kincaid grafa a mente do Sr. Potter, numa tentativa de inscrevê-lo dentro de sua própria inteligibilidade nativa. Desta perspectiva, o Sr. Potter surge enquanto ser que vive dentro de suas (não) possibilidades sem entender o contexto sociocultural e histórico que determina sua posição identitária. Por um lado, o Sr. Potter é uma pessoa cujo self é enraizado na sua terra; por outro lado, vendo a paisagem e o mundo, o Sr. Potter não sabe o porquê das coisas. Esta falta de conhecimento, sua indiferença perante si mesmo, os outros e o mundo, faz com que este self seja desterritorializado, sem âncora, joguete num jogo cujas regras são feitas por outros. Ele sabe o que é fome e injustiça, já que sua própria mãe (sem entender e poder lidar com seu destino) o deixou para trás, mas não sabe por que caem sobre ele. Somente uma vez na sua vida vê seu pai que lhe nega reconhecimento, mas não sabe o que significa não ter um pai, nem o impacto desta negação: a falta de amor que lhe impede de amar e dar amor.

Assim, igual à linha que cruza o lugar onde deveria aparecer o nome do pai no seu certificado de nascimento, o Sr. Potter é cruzado por uma linha que aniquila seu autoconhecimento — melhor dizendo, seu ethos e sua cosmovisão, que lhe facilitariam entender o mundo e sua posição nele. Sem ser inscrito numa episteme cultural feita por ele e os seus conterrâneos, ele fica na sombra da luz dos outros — aqueles outros que o desprezam nem tanto pela sua “miséria” e “ignorância”, mas principalmente por verem refletido e refratado nele a sua própria desgraça enquanto exilados; a aniquilação e frustração do seu “potencial de triunfo” (p. 86) — e constitui a sombra que assombra os seus descendentes: sombras que, ao longo dos anos, fazem acumular o passado que não passa. Segundo Kincaid, a vida do Sr. Potter foi “como o seu carro, fabricado em outro lugar, aparecendo do nada como por magia e sem revelar como veio a existir” (p. 171). Por um lado, portanto, o Sr. Potter, enquanto vítima vive uma vida cujo destino ele não consegue determinar, mas igualmente a um carro que precisa de alguém que o conduza, ele como sujeito-agente simplesmente vive sem (poder) se perguntar por que vive desta forma e não de outra.

Esta (não) vida do Sr. Potter é um bom exemplo de como Kincaid, em toda sua obra, desconstrói binarismos e relativiza qualquer verdade, negando a validade de respostas conclusivas. Como a vida do Sr. Potter que ao mesmo tempo é e não é, a sombra escurece a luz, o mesmo suplementa o outro, o aleatório nutre o planejado, o amor é carregado de ódio e vice-versa: um estilo que traduz a complementaridade contraditória (nada existe sem os seus prolongamentos e suplementações) enquanto filosofia de vida que rompe com os limites binários do paradigma ocidental de inteligibilidade cultural. É nesta zona transcultural onde a episteme nativa (ela mesma um conglomerado de diversos elementos culturais) é fissurada por forças e práticas neocoloniais advindas de outras culturas que se situa a problematização kincaidiana da neocolonialidade do pós-colonial.

Desta maneira, Kincaid enfatiza a violência brutal da exclusão e rasura do ser nativo muitas vezes sem possibilidade/vontade (pelas escolhas negadas) de resistir. Aqui nem mímica resistente existe. O que existe é um continuum de outrização do self nativo desde os tempos coloniais. Com uma diferença: enquanto Caliban falou o idioma do colonizador para amaldiçoá-lo, o nativo Sr. Potter nem reage/resiste mais, levando uma existência caracterizada por invisibilidade e silêncio. Mas nisto reside um dos problemas-chave: invisível e silencioso de que perspectiva e para quem? Parece-me que Kincaid (cujo nome original é Elaine Potter Richardson), mediante a narradora, a única filha do Sr. Potter que sabe ler e escrever, conota que a escrita, o instrumento imperial da sabedoria ocidental, é incapaz de grafar e revelar a consciência interior do afrodescendente caribenho. Em vez de dar voz a ele, a escrita o traduz para o silêncio dos signos onde vibram os ecos de sua voz entre os ditos e não ditos. E é neste ‘silêncio’ que o Sr. Potter fala, que sua mente pensa e sua alma sente.

Resumindo, alego que para Adichie, Glissant, Morrison e Kincaid a orfanização da existência negra resulta de uma violência física e epistêmica ancorada no tempo e num lugar/ espaço não linear, escorregadio, intervalar e ao mesmo tempo torna o individuo um efeito desta violência. Em seguida, gostaria de examinar mais detalhadamente o trauma da violência colonial, analisando o efeito do mesmo no pensamento e agir das personagens em três romances de Parick Chamoiseau e Gisèle Pineau.

Para Patrick Chamoiseau (1997a, p. 120) “as memórias irradiam no Traço; habitam-no de uma presença-sem-matéria oferecida à emoção. Suas associações, Traços-memórias, nem fazem monumentos nem cristalizam uma memória única: são o jogo de memórias entrelaçadas. [...] me fazem compreender-ver-tocar-imaginar o entrelaçamento das histórias tecidas por minha terra”. 

Em L’esclave vieil homme et le molosse (1997b),  a natureza é quem guarda a memória de todos aqueles povos, indígenas e afros, que resistiram ao intruso europeu. Enquanto que a história oficial registra o desaparecimento dos povos indígenas nas ilhas antilhanas devido ao genocídio colonial, a escrita de Chamoiseau os reintegra no panorama da paisagem enquanto entidades e/ou espíritos vivos: “os ameríndios dos primeiros tempos transformaram-se em cipós de dor que estrangulam as árvores e correm sobre os escolhos da mesma forma como o sangue agitado do seu próprio genocídio” (1997b, p. 21). Enquanto que estes autóctones nutrem “a memória inter/ transbiótica” (WALTER, 2016), a memória do escravo velho é reprimida. Apesar de não se lembrar do navio negreiro, ele tem “o sabor do mar nos lábios” e “ouve [...] a boca [...] dos tubarões contra o casco” (1997b, p. 51). Sem a memória sedimentada em consciência individual e coletiva, ele está traumatizado. Antes de ele fugir da plantação, o trauma da escravização se manifesta enquanto “descarga”, uma “pulsão vomitada de um lugar esquecido” (1997b, p. 41). Durante anos o velho consegue mais ou menos controlar estas descargas mnemônicas comendo terra e esfregando-se contra uma parede de pedras. Mas um dia essa pulsão o provoca a fugir da plantação em direção à floresta — este ecossistema caracterizado por uma eficiência harmoniosa por detrás da aparência caótica e violenta de plantas, árvores, flores e animais.

Durante a fuga, o escravo velho encontra-se de repente perante uma pedra enorme que lhe impede avançar. Quando se agarra a ela, sente-a cheia de vida e começa a se relacionar com os “povos [nela] refugiados” (1997b, p. 135):

A Pedra sonha. Seus sonhos me fazem delirar. [...] os nossos sonhos se entrelaçam, um enlace de mares, savanas, de grandes terras e ilhas, de atentados e guerras, de porões escuros e errâncias migrantes [...]. Uma junção de exílios e deuses, de fracassos e conquistas, de dependências e mortes. [...] Tudo isso, [...] remoinha num movimento de vida — vida na vida nesta terra. A Terra. Nós somos toda a Terra. [...] A Pedra não fala para mim, seus sonhos materializam no meu espírito a palavra destes moribundos que deixei atrás. A Pedra é dos povos; dos povos que resta somente esta pedra. Sua única memória embrulhada em mil memórias. Sua única palavra grávida de todas as palavras. Grito de seus gritos. A última matéria de suas existências. [...] Estes desaparecidos vivem dentro de mim mediante esta Pedra. Um caos de milhões de almas. Elas narram, cantam, riem. [...] O canto da Pedra está dentro de mim. Ele me enche [...] de vida.

Além de ser um dos símbolos-chave da resistência à escravidão, a floresta é um lugar de iniciação histórico-cultural e, portanto, identitária. Comparada a um “ventre-mãe” (CHAMOISEAU, 1997b, p. 105), a floresta é o lugar do renascimento onde o escravo velho aciona a reconstrução do seu ego; o que significa que a fuga à floresta é, ao mesmo tempo, uma viagem ao self e uma perlaboração do trauma. Ao unir-se com a pedra quando morre encostado nela, o velho negro ancora seu self na história e diversidade étnica da Martinica, ou seja, numa identidade dinâmica de diversas raízes que remontam a um tempo antes da plantação e do navio negreiro. Reunidos na pedra enquanto identidade híbrida em processo de créolisation, o escravo e os povos esquecidos/ desaparecidos constituem o que Chamoiseau, em Écrire en pays dominé, chama de “pierre-monde” (1997a, p. 281): um universo de inúmeras diversidades que se inter-relacionam num constante intercâmbio nutrido de conflitos e tensões dentro do processo histórico.

Como tal, a pedra-mundo, semelhante ao que Glissant chama “tout-monde”, simboliza a “dinâmica da Unidade que se faz em diversidade”: um universo caracterizado pelos polirritmos do entrelaçamento das humanidades entre si e delas com toda a biota e que Chamoiseau chama de “Diversalité” (1997a, p. 297). Mesmo sendo influenciado por Glissant, Chamoiseau diverge dele ao usar uma metáfora tangível e material para articular sua versão da poétique de relation. Em L’esclave vieil homme et le molosse, a identidade créole da pedra-mundo irradia uma força que tem um impacto sobre aqueles que perseguem o escravo, a saber: o cão e o senhor da plantação. Quando o cão chega à pedra, em vez de atacar o escravo, lambe-o. O senhor, ao sair da floresta sem o escravo fugido e com um cão apaziguado, aceita a situação sem rancor, com equanimidade.

Neste sentido, a floresta como espaço e a pedra como lugar mnemônico de transformação cultural e aproximação de etnias constituem o palco onde a resistência e a violência das diferenças enquanto separação cedem a uma diversidade em relação. Em outras palavras, estamos perante o processo de créolisation caracterizado pela prorrogação de um elemento da biota no/pelo outro; prorrogação esta que suplementa e assim mina a diferença enquanto separação com a diversidade em relação. Neste sentido, Chamoiseau compartilha a responsabilidade autoral com o coletivo enchendo de vida a morte esquecida do genocídio e da escravização.

A força da imaginação e emoção que enchem os rastros mnemónicos e sem a qual não há memória evoca a violência do passado, não somente para trazê-la à superfície da história enquanto inconsciente cultural negada da sociedade contemporânea, mas principalmente para incorporá-la como experiência vivida (e não negada) na episteme cultural dos afrodescendentes caribenhos. Só assim os traumas indizíveis e inconcebíveis se sedimentam enquanto memórias coletivas cujas imagens podem ser sintetizadas na consciência dos martiniquenhos. Destarte, a pedra-mundo de Chamoiseau articula o que Glissant chama a “estética da terra”, ligando o individuo à comunidade e à terra no processo de criar história da “não historia” (neo)colonial. Glissant (1997a: 147) espera que a literatura possa ensinar a força política da ecologia, ou seja, que a literatura possa traduzir “a interdependência de todas as terras, do mundo inteiro”. Estou convencido que isto é a base ética não somente da literatura e da crítica literária, mas das artes em geral: criar de maneira comparativa e interdisciplinar uma ciência da/ para a vida caracterizada pela relação (e não pela separação) das diferenças culturais.

Em L’espérance-macadam (1996) e Morne Câpresse (2008) de Gisèle Pineau, a estetização da violência tem como objetivo a revisão da historiografia hegemônica e neste processo a problematização de aspectos culturais e identitários marcadamente imbuídos de questões de raça e gênero. Se para Cathy Caruth (1996, p. 4), experiências traumáticas provocam “uma ruptura na experiência do tempo, self e mundo”, então é necessário examinar como e com quais objetivos Pineau traduz eventos traumáticos e seus efeitos para a escrita num processo histórico no qual o passado faz parte do presente, como é revelado no pensamento de Rosette em L’espérance-macadam:

[...] a vergonha e as feridas remontaram das profundezas do passado para emergir suas miragens, suas promessas do fabuloso amanhã no presente. Não, nada tem mudado desde que os primeiros Negros da África foram transbordados neste país que somente sabe gerar ciclones, esta terra violenta onde tanta maldição pesa sobre os homens e as mulheres de todas as nações. Nada tem mudado.... O sabre, a corda, as correntes... (1996, p.241-242; grifo meu)

Filhas sexualmente abusadas pelo pai; mães batendo em filhas por não (querer) acreditar nestes atos; homens violando mulheres num ambiente de vivência caracterizado por fúria, ódio, rancor, inveja e desconfiança: voilà o panorama de uma violência que, igual à força natural dos ciclones, castiga a comunidade de maneira cíclica. A violência representada na escrita de Pineau é cruzada por sexo e gênero e resumida em três palavras: “Destruir, rachar, cortar” (1996, p.99). O caso de Hortense, brutalmente assassinada por seu companheiro, Regis, que a acusa de traição, serve como exemplo da bestialidade humana. Depois de matá-la, Regis corta Hortense em pedaços com seu “sabre” e coloca a cabeça, as mamas e a vagina em cima de uma folha de banana no chão da cozinha (1996, p.88).

A repetição desta imagem sangrenta ao longo da trama reforça o eco gritante da acusação silenciosa por parte da mulher assassinada; imagem esta, que igual a uma fotografia ou pintura de cores berrantes e/ou motivos chocantes, grava-se na mente dos leitores enquanto lugar de memória, articulando não somente a violência contra a mulher nesta sociedade pós-colonial, mas a coisificação da mulher como objeto de consumo masculino numa sociedade contemporânea onde a colonialidade do patriarcalismo escreve capítulos neocoloniais. Neste sentido, e especialmente à luz da internalização da culpa pelos próprios afrodescendentes, aceitando “a maldição” da raça negra como algo ‘natural’, as raízes do ‘neo’, que imbuem o ‘pós’, se alimentam do fértil subsolo da máquina colonial de plantação e escravização dos africanos e seus descendentes. Como tal, este subsolo do passado alimenta os que vivem no presente, alienando/ fragmentando os sujeitos via crises traumáticas ― Regis que vive sua ansiedade de castração herdada da maquina de plantação escravizadora mediante o que Fanon (1967) chama de violência desviada dos colonizados; violência esta que pode ser de natureza tanto psicológica e auto-infligida, como física e direcionada contra seus iguais ― ou via pós-memoria[5] como no caso de Rosette, que de vez em quando imagina os tempos passados ao observar a realidade do presente: “Em sua volta surgiram os Negros da África mortos nos porões dos negreiros sob o chicote, dilacerados pelos cachorros, vomitados pelos chamados senhores do mundo. Ela ouvia os suspiros das mulheres e os gritos dos órfãos, mas também as vociferações dos quilombolas que fugiram para o alto dos montes” (1996, p.166). Rosette, em contraposição à maior parte dos personagens, consegue perlaborar o trauma e curar sua culpa de sobrevivente, descendente de africanos escravizados, desassociar sua libido de uma subjetividade sexual autônoma negada e controlar o impulso de reviver cenas de uma violência incompreensível, inefável, num ato de conscientização que compreende o impacto contínuo da violência formativa da era de plantação na vida das pessoas, sedimentando-a enquanto memória coletiva e assim libertando-se da vitimação autocolonizadora.

Também em Morne Câpresse (2008) Pineau utiliza a estetização da violência para enfatizar e problematizar questões históricas e culturais. O romance descreve a criação e destruição de uma instituição — a Congregação das “Filles de Cham” — que ajuda as mulheres (ab)usadas e deixadas à margem pelo sistema patriarcal e consumista; mulheres caídas  na “mundialização do Mal” (2008, p. 107): drogas, prostituição, infanticídio, incesto, violação (2008, p. 123). A pergunta que a trama do romance conota — qual a razão das mulheres se encontrarem nestas condições — tem duas respostas: a atitude dos homens e a cultura consumista. A fundadora da comunidade, Pacôme, foi criada pela mãe depois que o pai abandonou a família para viver com outra mulher. O costume dos homens de ‘trocar’ mulheres e abandoná-las grávidas ou com crianças recém-nascidas é, segundo a narração, endêmico de uma sociedade que nasce na violência do sistema de plantação. Esta prática que sustenta a virilidade e enfraquece a base da família enquanto lar, proteção e educação das crianças que crescem sem esteio, soltas, piruetando em direção aos abismos de uma sociedade baseada nos valores do consumo: o paraíso falso de um hedonismo instantâneo e contínuo regido pelo Moloch do capital que coloniza tudo o que é natural: “[...] a ilha transformou-se docemente em descarga selvagem, [...] as antigas plantações eram envenenadas pelos pesticidas e adubos químicos, [...] os montes verdes, as terras virgens desapareceram cada dia um pouco mais sob o concreto, ferros velhos, alcatrão, as carcaças de carros e todas as imundícies da sociedade de consumo” (2008, p. 59).

Segundo o narrador, os “fantasmas do passado” (2008, p. 260) imbuem toda a biota da ilha e é neste sentido que a voz narrativa pergunta: “Será que a terra se lembra deste passado? As correntes, a dor, o chicote, a cólera perante a ignomínia e o silêncio das Nações...” (2008, p.59; grifo meu). Toda a obra de Pineau delineia diversas versões desta pergunta, revelando diferentes aspectos e matizes de uma terra onde o mundo humano e não humano cresce de geração a geração como “plantas de raízes cortadas. Arbustos fracos que cresceram na sombra do ódio. Rebentos com sede, queimados pelo sol, arrastados pelo vento e que se alimentaram pelos seus próprios erros de sobreviver, resistir à desgraça...” (2008, p. 259). Ao crescer e viver na “sombra do ódio” (2008, p.121), as gerações guadalupenses, mesmo esquecendo o passado, têm “um espinho [...] plantado no meio dos seus corações” que parecia “fossilizado na carne” (2008, p. 122):

Os descendentes dos escravos se lembravam que chegaram de lá... Desta história apagada das memórias... E uma dor infernal, sem nome nem rosto, começou a roê-los, devorá-los. A partir deste momento, os filhos buscaram consolação no fumo das ervas, nas pipas do crack, loucura, álcool... (2008, p.122).

Assim, pela desintegração da capacidade humana de sintetizar impressões num todo consciente, conduzindo a uma fragmentação na percepção do self, da realidade e das emoções e impedindo que as memórias se sedimentassem, os acontecimentos traumáticos do passado provocam diversas formas de violência — inerentes às múltiplas práticas neocoloniais de dominação e resistência — que contribuem para a brutalização das pessoas e do espaço no romance. Gisèle Pineau, nos seus romances, delineia um povo sem raízes na terra, um povo traumaticamente e violentamente ancorado nas ondas do Atlântico Negro que liga e separa as costas africanas e americanas. Ao trabalhar a relação rizomática e violenta entre a palavra latina cultura e seus desdobramentos epistemológicos ‘cultura’, ‘colônia’, e, por extensão, ‘terra’, ‘solo’ e ‘cultivação’, a ficção de Pineau estabelece um senso de lugar enquanto recuperação retórica— as ramificações culturais, político-econômicas e históricas da geografia — ligado a um senso de história e cultura e neste engajamento estético constrói a base para um pertencimento à terra. É neste sentido que a estetização da violência na obra de Pineau serve para diagnosticar e problematizar questões de identidade cultural num processo histórico. Neste sentido, ela nos dá um exemplo maravilhoso o que significa ‘révéler c’est changer’, ou seja, revelar enquanto transformar no sentido sartreano em Qu’est-ce que la littérature?

Como trabalhar esta dupla brutalização de pessoas e lugares em termos analíticos? Com que abordagem teórica examinar a estetização da violência na literatura da diáspora negra? Portanto, como tecer analiticamente um mapa de geografia crítica que liga a literatura negra das Américas num gesto de descolonização? Como examinar o Dasein intervalar que liga a ”senzala-favela” do passado-presente mediante correntes de “miséria” e “ódio” nas palavras de Conceição Evaristo (2006, p. 70, 139, 79)? Uma existência que Elio Ferreira (2014, p. 52), poeta e crítico literário brasileiro, descreve da seguinte forma: “[...] Brasil,/ não aceito mais ser tratado desse jeito/ no meu próprio país/ como estrangeiro em terras inimigas. [...]”.

Se nas palavras do narrador sem nome no clássico mundial de Ralph Ellison, Invisible Man (1947, p.9), “A mistake was made somewhere, [...] ‘I’m confused [...]. I too have become acquainted with ambivalence”, alego que a literatura negra pan-americana, tem sido e continua ser uma tentativa de mapear, revelar, problematizar de maneira criativa, diversa e multidimensional “este erro cometido em algum lugar” e seu efeito de confusão ambígua, ambivalente e por isto altamente inovadora em termos étnico-culturais.   

O processo de criar história significa criar vida e está intimamente ligado ao Dasein humano. Dentro da criação artística um dos pilares deste processo é a memória; os outros: a imaginação e a emoção. Em Traité du tout-monde, Glissant (1997b, p.119) afirma que, ao contrário da ciência, “a escritura nos leva às intuições imprevisíveis, nos faz descobrir os constantes escondidos do mundo”. É mediante o imaginário, o seu prolongamento “por uma explosão infinita” (GLISSANT, 1997b, p.18), que se pode descobrir novas possibilidades e vencer os obstáculos que impedem o ser humano de realizar-se de maneira digna e justa. Neste processo, Glissant espera que a literatura possa ensinar a força política da ecologia, ou seja, que ela possa traduzir a essência ecológica “da interdependência de todas as terras, do mundo inteiro” (1997b, p.147): voilà o cerne da “estética da terra”. O que Glissant não providencia, porém, são as ferramentas analíticas com as quais podemos reativar e assim pôr em prática esta estética. Ao ter aberto o horizonte da “estética da terra”, ele nos convida ao trabalho imaginário de encontrar metodologias e abordagens que abrem as trilhas para chegar a este horizonte. É necessário, portanto, perguntar qual é o papel da teoria literária neste empreendimento. Em outras palavras, como e com que objetivos engajar-se analiticamente dentro de uma “estética da terra”? E como trabalhar esta estética em relação com os diversos tipos do violento ‘entre’ afrodescendente?

Na tentativa de responder às perguntas, gostaria de apresentar o eixo teórico entre o inconsciente político, cultural e ecológico desenvolvido nas minhas pesquisas desde 2014. Fredric Jameson (1992, p.64), com base no argumento de Northrop Frye que a literatura é uma forma mais fraca do mito ou estágio posterior do ritual, alegou que “toda literatura deve ser permeada por aquilo a que chamamos de inconsciente político, que toda literatura tem que ser lida como uma meditação simbólica sobre o destino da comunidade”. Neste sentido, argumento que se pode falar de um inconsciente ecológico que imbui a relação entre seres humanos e seu (meio) ambiente, já que ambos se baseiam nas relações humanas caracterizadas por domínio, exploração, subalternização e resistência. Se para Jameson o inconsciente político é a ausente e ao mesmo tempo presente porque desejada revolução cultural que transformaria a hegemonia injusta do sistema político em uma convivência mais justa, defino o inconsciente ecológico como ausente e ao mesmo tempo presente porque desejada revolução ecológica que constituiria uma mudança de visão em relação à biota. Uma mudança de visão e das nossas atitudes em relação ao mundo vegetal e animal — uma ética biótica — é necessariamente baseada numa mudança de imaginação cultural, especialmente dos sistemas internalizados, este conjunto de disposições que gera práticas específicas, o que Pierre Bourdieu (1977) no processo da analisar o habitus chamou de “inconsciente cultural”.

Para Lawrence Buell (2001, p.170), esta mudança seria caracterizada por “um compromisso re-habitador” que “implica a extensão de uma posição moral e, de vez em quando, até mesmo legal ao mundo não humano”. Em outras palavras, o objetivo desta mudança de visão é outra forma de se relacionar e viver: uma forma de convivência entre humanos e não humanos baseada numa “consciência planetária” igualitária (GLISSANT, 1997a, p. 164-165) que inclui “a linguagem da paisagem” (GLISSANT, 1992, p.146). Assim, o trabalho analítico mediante o “inconsciente ecológico” (WALTER, 2009) ligado aos outros inconscientes acima mencionados pode dar respostas à pergunta feita pelo narrador em Morne Câpresse de Gisèle Pineau, se a terra lembra-se das atrocidades do passado ou não.

Por meio destes três inconscientes enquanto eixo teórico, alego, é possível trabalhar as diversas encruzilhadas das identidades afrodescendentes do continente americano na interface do passado/ presente: a dupla e inter-relacionada brutalização dos seres humanos e do seu (meio) ambiente constituindo o inconsciente político, cultural e ecológico da experiência pan-americana — os fantasmas destas experiências violentas recalcadas que voltam em resposta à Verleugnung fazendo sentir sua presença tanto no nível da enunciação quanto no da experiência vivida e imaginada. Alego, que mediante este eixo teórico se pode revelar e examinar os traços mnemônicos das diversas fases e tipos de colonização e colonialidad del poder que imbuem a tessitura de obras literárias da diáspora negra. O objetivo é demonstrar que além do estético a arte literária destes escritores traz no seu bojo uma carga cultural que traduz o subsolo político do poético: a poetização de um holocausto vivido no passado e transmitido como trauma coletivo para o presente através de diversas gerações, com o objetivo de sedimentá-lo como memória coletiva. Se segundo Charles Taylor (1989, p. 28) a memória constitui um "espaço moral, um espaço no qual questões são levantadas sobre o que é bom ou mal, o que vale a pena fazer ou não, o que faz sentido e tem importância para alguém e o que é trivial e secundário", então pode-se argumentar que para muitos escritores/artistas o imperativo ético da arte reside na democratização/ humanização da memória cultural. Embora que todas as testemunhas da escravidão, do sistema mercantil da plantação desapareceram do nível da “memória funcional” e se deslocaram para o da “memória armazenadora”, os estereótipos e preconceitos implícitos neste processo colonial continuam agindo no nível da memória funcional.[6]

Um dos objetivos principais da escrita negra na diáspora é o de voltar às raízes das ideias de subalternização (de hoje e ontem) para conscientizar os leitores da injustiça sofrida. O que constitui a poética-política desta transescrita[7] mnemônica, portanto, é uma democratização da memória cultural distorcida, falsificada e silenciada pelos diversos discursos hegemónicos. Neste sentido, a volta aos horrores do Atlântico Negro na ficção contemporânea dos escritores afrodescendentes das Américas, por exemplo, envolve a recuperação de um senso de responsabilidade sincera e compartilhada pelo passado, presente e futuro, ou, nas palavras da narradora no romance Ponciá Vicêncio da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo (2003, p.130): “enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino”. Nisto, argumento, reside o direito enquanto dever ético à comunicação / narração (BHABHA, 2007, p.25).

Muito trabalho ainda precisa ser feito neste sentido já que existem poucos estudos comparativos cujo enfoque problematiza os efeitos pós-coloniais em diversas partes das Américas. Por exemplo e entre outros: a ampliação da pesquisa de comunidades quilombolas; um trabalho comparativo dos diversos tipos de transculturação nas zonas (trans)fronteiriças de contacto intercultural; um levantamento e uma teorização de cunho comparativo e interdisciplinar dos diversos tipos de ‘outridade’ e ‘outrização’ nas e entre as zonas rurais e urbanas; uma profunda comparação continental entre as escritas de (ex-)escravos/as; análises que focalizam a ligação entre colonialismo/ escravização/ resistência na plantação e colonialidade/ subalternização/ resistência nas favelas de hoje; estudos comparativos sobre o terrorismo sexual na maquina da plantação e seus efeitos contínuos  e sobre as diversas formas de resistência ao longo dos séculos. Seguimos, então, enquanto críticos literários de emancipação os lemas de Bob Marley (Redemption Song): “free our minds of mental slavery”, libertar as nossas mentes da escravidão mental levando a sério le cri du monde, o grito do mundo como dizia Édouard Glissant, the scream of centuries, o grito dos séculos nas palavras de Derek Walcott (1990, p.246).

 

Referências

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[1] As traduções neste ensaio são de minha autoria.

[2] Joaquín Brunner (1988, p.15) descreve com este termo a realidade fractal da América Latina desde a chegada dos europeus.

[3] Para uma análise abrangente da obra de Morrison entre 1970 e 2009, ver Walter, 2009.

[4] Mudei a sequência dos elementos da frase.

[5] Marianne Hirsch (1999, p.8) utiliza o termo postmemory para descrever o tipo de memória daquelas gerações subsequentes que não viveram os eventos traumáticos, mas os conhecem somente por meio de “estórias e imagens com as quais cresceram”.

[6] Aleida Assmann (1999) distingue entre dois modos de memória — Funktionsgedächtnis (memória funcional) e Speichergedächtnis (memória armazenadora) — cuja relação é caracterizada por um constante fluxo de seus elementos mnemônicos. Os termos foram cunhados para superar a oposição entre a memória habitada (que pertence a um indivíduo, grupo, etc.) e a memória não habitada (livraria, museu, universidade, arquivo, etc.) estabelecida por Pierre Nora em The Realms of Memory, vol. 1: Conflicts and Divisions (1996, p. 1-20).

[7] Para a definição do termo ‘transescrita’, ver Walter, 2003, 2009.

 

* Roland Walter é Professor Titular do Departamento de Letras da UFPE, Pesquisador do CNPq e coordenador do Núcleo de Estudos Canadenses (NEC) da UFPE. É autor, entre outros, de Magical Realism in Contemporary Chicano Fiction (1993), Narrative Identities: (Inter)Cultural In-Betweenness in the Americas (2003) e Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas (2009). Editou o e-book As Américas: encruzilhadas glocais (2007), coeditou os livros Narrações da violência biótica (2010) e Entre centros e margens: literaturas afrodescendentes da diáspora (2015), além de publicar numerosos artigos e capítulos de livro no Brasil, na Argentina, em Cuba, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha e na Holanda. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.; Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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