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UMA VOZ SOBRE A PEDRA: (Posfácio do livro Bissexto Sentido, de
Carlos Ávila. São Paulo: Perspectiva, 1999) Maria Esther Maciel "a
pedra dá à frase seu grão mais vivo:
(João Cabral de Melo Neto)
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Tal cumplicidade
com esses poetas da lucidez não significa, contudo, uma filiação absoluta ou
um confinamento. Carlos Ávila não apenas transita, com desenvoltura, em
outros territórios, como também ocupa o seu próprio espaço poético,
construído aos poucos, através de um trabalho silencioso e particular com a
linguagem. Mesmo mantendo os
seus inegáveis vínculos com a tradição que vem de Oswald de Andrade, passa
por João Cabral e desemboca na poesia concreta; mesmo dialogando com as
linguagens de ruptura que marcaram o horizonte estético da modernidade
ocidental, Carlos Ávila conseguiu burlar as armadilhas do epigonismo, como
observa José Paulo Paes, para exercitar a sua própria dicção. E é nessa
medida que ele não se presta ao confinamento literário em um topos
previsível. Sob o prisma do
que Octavio Paz chamou de "estética da agoridade", Carlos Ávila -
como outros poetas de sua geração - já não se ilude com a promessa utópica do
futuro, que norteou os movimentos de vanguarda ao longo deste século.
Por isso, não apenas se dá a tarefa de "pensar a poesia do
presente", como propõe Haroldo de Campos, mas também se desobriga de
assumir pactos poéticos coletivos, passando a se dedicar, cada vez mais, à
exploração individual das potencialidades criativas da linguagem e a fazer de
sua voz (ainda que pluralizada pela ressonância das vozes de seus precursores)
o seu habitat poético por excelência. Consciente, como ele próprio
admite, de que o "novo, hoje, é o que cada um puder acrescentar de
seu". Mineiro de
Belo Horizonte, Carlos Ávila estreou em livro no ano de 1981, com Aqui
& Agora (BH, Ed. Dubolso), de perfil predominantemente
experimental/ construtivista, e em 1989, publicou Sinal de
menos (Tipografia do Fundo de Ouro Preto), livro substantivo, cujo
título, derivado de um verso de Drummond, abaliza a opção do poeta pela
lógica da subtração, na linha aberta pelo "poetamenos" Augusto de
Campos. A partir daí, vem publicando seus poemas esparsamente em
periódicos diversos, e hoje conta com Ásperos, obra
prismática, de refinado feitio intertextual. Os três livros de
Carlos Ávila sustentam, entre si, uma relação simultânea de continuidade e
descontinuidade. Se o primeiro apresenta, como diz o próprio poeta, os passos
iniciais de um "work in progress", o segundo funciona como avanço e
contraponto das conquistas anteriores, enquanto o terceiro, em simetria
dissonante com os outros dois, recria os procedimentos já explorados e
se abre para vias até então intransitadas. Mas em todos, percebe-se um
traço invariável: o cuidado formal, a lucidez crítica e a atenção dispensada
à textura da linguagem, ainda quando o poeta se permite - em alguns poemas
- um certo feeling de contido caráter expressivo ou imprime em sua
poesia uma maior densidade verbal. Creio,
aliás, que essa aliança entre expressão e construção, que traduz, de
alguma maneira, o jogo entre sensibilidade e entendimento, proposto por
Fernando Pessoa ou a busca da palavra "toda nervo e osso", no dizer
de Murilo Mendes, é o eixo da poesia de Carlos Ávila, como ele próprio
admitiu em um ensaio-depoimento: "Nossa poesia continua ‘em trânsito’,
no difícil circuito pessoano que envolve o sentir e o pensar, não como
opostos mas sim como complementares".
Jogo
Creio
que a melhor maneira de traçar esse "trânsito" do poeta entre os
dois pólos referidos, bem como traduzir o diálogo textual entre os seus três
livros, seja percorrer, entre idas e vindas simultâneas, toda a trajetória
poética do autor, desde o início da década 80. Mostrar, em uma perspectiva
não-linear, as intersecções (aqui, no sentido pessoano da palavra) que
compõem o seu trabalho.
Devo começar esse
transcurso, lembrando que tanto Aqui & Agora quanto Sinal
de menos foram publicados dentro do que se convencionou chamar de
circuito paralelo de produção e distribuição independentes. De caráter,
por isso mesmo, mais artesanal, e dirigidos a um grupo seleto de leitores,
ambos exibem, desde a capa até a arte final, um projeto gráfico cuidadoso e
criativo, coerente com a proposta construtiva do autor. Aqui &
agora pode ser configurado como um verdadeiro laboratório
verbal onde Carlos Ávila põe a sua lucidez a serviço da palavra poética,
sondando suas múltiplas possibilidades visuais, sonoras e semânticas. Nele, o
poeta manifesta uma nítida consonância com a linha
experimental/construtivista que marcou a poesia concreta dos anos 50 e 60,
mas já prefigurando uma poética própria que, a partir de Sinal de menos,
vai mostrar com maior desenvoltura. O fato de o
primeiro livro e, em certa medida, o segundo incorporarem explicitamente
procedimentos estéticos da poesia de vanguarda, não significa uma adesão
ingênua ou apaziguadora do poeta a essa tradição. Aliás, uma das lições que
ele aprendeu com os poetas concretos foi exatamente a do exercício crítico da
criatividade. Por isso mesmo, não transformou formas em fórmulas. Afeito à
pesquisa, criou novas formas e reinventou outras já existentes, assumindo
lucidamente os riscos que toda ousadia requer. Pode-se dizer que
Carlos Ávila soube extrair da poesia concreta a busca de uma linguagem
poética substantiva, celular, refratária aos transbordamentos retóricos e às
erupções sentimentais. E ainda: o exercício lúdico com a palavra,
compreendida como um "campo magnético de possibilidades", e a
apropriação engenhosa de outros códigos que não apenas o verbal. Carlos Ávila soube
aproveitar, com habilidade, todos esses ensinamentos. Desprovido de qualquer
ânimo beligerante e ao mesmo tempo realizando uma rebelião silenciosa contra
qualquer tipo de superfetação retórica ou contra o que Augusto de Campos
chamou de "as águas desorientadas e permissivas dos ecletismos pós-modernos",
construiu uma poesia mineral, de estrutura cristalina e de fina
granulação. Fiel à geometria
do menos e sempre atento à idéia de limite, Ávila, já em Aqui &
Agora, mostra-se não apenas lúcido, mas sobretudo lúdico no
trato com a linguagem. Seu apreço pelos jogos verbais o leva a experimentos
plásticos e sonoros que desafiam as leis da gramática e do dicionário. É
nesse sentido que, ao longo do livro, desmembra vogais e consoantes de uma
palavra ou de um verso, numa estrutura visual aberta; brinca parodisticamente
com certos dizeres de origem bíblica ou do repertório popular; revitaliza -
através de pequenas subversões semânticas - palavras esclerosadas pela
força do uso convencional; insurge-se contra a tirania tipográfica que
impõe uma visão linear e contínua do verso; evoca as radicalidades de
Huidobro, Torquato e Rimbaud; briga com o adjetivo; converte
brancos e silêncios em signos tão poderosos quanto a palavra e cala-se, ao
associar a "nudez da página" à "mudez do poeta",
em um poema de apenas dois versos, separados um do outro por um enorme branco
de papel. Esse movimento
rumo a uma espécie de grau zero da escrita, minimalmente semantizado no jogo
sonoro nudez/mudez e mallarmeanamente visualizado na ênfase dada
ao espaço vazio da página, se repete, com outras modulações, nos livros
posteriores. Neles, a "carnadura concreta" do dizer se
debate com o "deserto de possíveis" que a página representa. Uma
"luta branca sobre o papel", como bem a definiu João Cabral,
que vai ser problematizada em vários poemas de Carlos Ávila: seja através da
superfície fragmentada da linguagem, seja em imagens reincidentes como a do
poeta "diante da máquina/olhos/ nos dedos/ sem palavras", que
aparece inalterada nas duas versões que ele fez do mesmo poema, uma em Aqui
& Agora e outra - mais verticalizada - em Sinal de
Menos. Neste livro,
inclusive, o poeta retoma - submetendo-o a um processo de ressemantização
através da exploração ambígua do significante, o poemínimo da nudez/mudez,
transfigurado agora em "mudo / diante de tudo", em que a mudez
ganha uma nova vibração, por estar identificada com a idéia de mudança .
Idéia, aliás, que vai ser explorada metaforicamente - e pela via intertextual
- em Ásperos, onde o nada aparece como signo de um outro dizer: "o
nada/ de novo sob o sol:/ nada como um dia atrás do novo/o sem-sentido/aponta
sempre para um sentido outro". Vale mencionar que
essa mudança do poeta diante de tudo, que indicia também a busca, dentro do
próprio silêncio, de uma nova dicção, já aparece no primeiro livro.
Como se da mudez declarada na obra irrompesse uma outra voz: mais
pessoalizada e menos desconfiada dos ardis da subjetividade. Surge uma poesia
menos centrada em si mesma, mais ávida de vida e na qual o eu do poeta ganha
um certo relevo. Esta nova dicção alcança uma maior nitidez em Sinal de
menos e se cristaliza, sem contudo renunciar ao substrato do menos, no livro
inédito Ásperos, já que neste, a abertura temático-expressiva
se alicerça no mesmo requinte formal que sustenta os demais. Creio que o
primeiro poema da seção intitulada "Eixo", de Aqui &
Agora, pode ser tomado - com a devida cautela - como o ponto
tangencial desse outro momento da poesia de Carlos Ávila, embora não
apresente indícios explícitos de subjetividade. Nele, as palavras -
impulsionadas por sucessivos deslocamentos e repetições - compõem um
movimento rotativo vertiginoso e de forte densidade verbal. "Vida"
e "texto", palavras nucleares do poema, se espalham e se espelham,
sob as voltas e revoltas dos signos sobre a página. O texto, com isso,
"ganha em vida", apontando uma "direção múltipla de
leituras", no dizer do próprio poeta. Essa abertura se
completa na última parte do livro, "Não", onde o poeta - em tom de
rebeldia e provocação - assume a primeira pessoa para exercitar uma poética
de recusas: recusa da "gorda glória" e da "fama
fácil", recusa dos "beltranos beletristas beletristes",
enfim de todas as redundâncias poéticas e prosaicas. Carlos Ávila, aí, compõe
o que ele mesmo chama de "biotexto", ou seja, poema,
que sem deixar de ser linguagem e metalinguagem, descortina também um
compromisso mais visceral com a realidade extratextual. Nas suas palavras:
"difícil é ser/ verbo que ninguém conjuga mais/ poesia subentende
vida/para que sobreviva". E não bastasse essa posição, que se
intensifica ao longo do poema, Carlos imprime - num repentino gesto autoral -
a sua assinatura no final da página. Essa "mise-en-scéne" da
subjetividade vai se configurar, na poesia de Carlos Ávila, como um desvio
maior para o campo da expressão, sem que isso signifique descaso para
com o suporte construtivo ou adesão a uma poética confessional. A assinatura que o poeta
deixa no final do referido poema metaforiza, sem dúvida - pelo viés da
caligrafia - a idéia de "traço pessoal". Mas essa pessoalidade
encenada não vai significar uma concessão ingênua às fulgurações da
intimidade. Mesmo quando, em Sinal de Menos, Carlos Ávila diz
que "voltei à vida/ aprendiz de mim/ por outras vias/que não a poesia",
constrói pequenos auto-retratos, ou extrai do seu pathos amoroso uma lírica
erótica, percebe-se que tudo isso passa pelo crivo da depuração estética.
Contaminado pelo "vírus da linguagem", o poeta constrói uma
subjetividade sem nudez, que, em alguns momentos, se ironiza a si mesma. É o
caso do primeiro poema da segunda seção do livro, onde o nome CARLOS é
desmembrado em letras que se dispõem verticalmente, quebrando o ritmo linear
de um verso também vertical, e do qual é subtraído - explicitamente - o
mais do sobrenome. Esse nome visualmente cindido, que contrasta com a
inteireza caligráfica da assinatura deixada no livro anterior, mostra uma
consciência irônica do próprio autor em relação a si mesmo enquanto poeta em
permanente risco dentro da linguagem. "O poema devora o poeta",
diz Ávila, à feição de Octavio Paz. Com isso, revela-se vigilante - embora
flexível - quanto às armadilhas da palavra eu. Tanto que, mesmo quando
explora alguns flashes de sua vida pessoal, em Ásperos,
o pronome eu freqüentemente desaparece sob uma espécie de subjetividade
despessoalizada. Isso já se mostra no poema intitulado 30, publicado na Revista
Código , em 85, que funciona como ponte entre os dois primeiros livros do
autor. Numa visível e bem humorada referência a um dado de ordem biográfica,
ou seja, os seus trinta anos, o poeta faz do eu uma figura em elipse dentro
da linguagem. No livro Ásperos,
a subtração de pronomes pessoais é mais evidente, se comparado ao Sinal
de menos, embora na mesma proporção dessa economia se possa perceber
uma ênfase no timbre particular da voz do poeta. Sustentando a sua opção
anterior por uma dicção laminar, propondo-se a entonar "o dizer
& o não-dizer/através do não-canto", Carlos Ávila vai tensionar
os seus poemas entre a reflexão ácida sobre o que é poesia ("une
femme: infâme", segundo ele) e a inserção de cenas prosaicas dentro
da obra. Tensão que se avizinha daquela que Cesário Verde soube conduzir com
maestria em sua poética feita de "ácidos, gumes e ângulos agudos" e
que Baudelaire levou aos deslimites com sua poética. Não é à toa que o poeta
francês é evocado no instigante poema "Baudelaire sob o sol", onde
surge em "efígie gráfica" na estante exposta ao sol do
escritório do poeta, e reaparece - por vias oblíquas - em
"Rascunho no espelho", poema-trash, que busca alegoricamente
sua matéria nas ruínas, naquilo que o poeta perdeu, esqueceu ou
desprezou no "terreno baldio" da página, depositária
dos "montes de palavras não-ditas/ como montes de lixo". Se, em Sinal
de Menos, a linha "biotextual" se apresenta
concentrada no "grão da voz" do poeta, em Ásperos
ela se expande, inclusive no âmbito temático. Temas como a morte, o
caos, a embriaguez, o tédio e o nada, conjugados com cenas triviais da
vida urbana, como um velho jogando dados ao acaso com uma prostituta no fundo
do bar, "vizinhos invizinhos" em ebulição no edifício, um copo de
whisky invadindo o poético, denunciam um descentramento do autor rumo a uma
poesia mais pluralizada no campo da expressão e mais afinada com aquela
aspereza inerente ao poema que é levado, como afirma Cabral, a
"andar pé no chão/pelos aceiros da prosa". A tensão vibrante
entre as esferas da arte e da vida, visível nas últimas páginas de Aqui &
Agora e filtrada pelo micro-rigor de Sinal de Menos, ocorre, assim, em um
novo contexto poético, no qual pode-se observar ainda um trabalho de Ávila no
sentido de conferir às associações de imagens presentes ao longo do livro,
uma notável concreção. É o caso do poema "Rua Outono", de caráter
mais solar, em que a imagem da rua é geometrizada e semiotizada pelo
olhar substantivo do poeta-flâneur que, ao optar pela vida, fora dos livros
que "... exalam/ palavrasonscores/em difícil poesia"
(mencionados no poema anterior, intitulado "Da palavra ao corpo"),
segue "...ao vento/sem metro/ou mestre", sem, contudo,
conseguir se livrar da poesia. Esta continua, áspera e musical, ao mesmo
tempo, em todo o livro. Menos concisos,
embora essencializados em termos de imagem, expressão e apuro sonoro, os
poemas de Ásperos se prismatizam ainda na fina rede
intertextual de que são feitos. Apollinaire, Cabral, Haroldo de Campos,
Baudelaire, Rimbaud, Valéry, Drummond, Bandeira, Sá-Carneiro, Eliot,
Mallarmé, Aragon, são alteridades que Ávila incorpora habilmente, através de
pactos, raptos, saques e rastreios de versos, imagens, expressões e palavras,
ciente que está agora de que até mesmo o branco da página é "soma de
todos os textos", como disse Paulo Leminski em "Plena pausa".
Aliando-se a isso um entrecruzamento sutil de versos, títulos e palavras
escritos em francês, inglês e latim, o que também contribui para que a obra
seja lida como um todo móvel e fragmentado, um espaço de confluência de vozes,
tempos e espaços distintos. Não obstante essa
pluralidade, a marca digital do poeta permanece nos arranjos e desarranjos de
linguagem, no trânsito entre a vida e o texto, na "fascinação do
difícil", na combinação dialógica entre o nervo e o osso da
palavra. Toda a poesia de
Ávila se equilibra nesse eixo. Talvez a melhor maneira de defini-la seja pela
sua ambígua textura de cristal. Isso, se evocarmos Italo Calvino, no
capítulo "Exatidão" do Seis propostas para o próximo
milênio, quando diz que o cristal, além de ter certas propriedades
emblemáticas, como a capacidade de refratar a luz, é formado por processos
similares aos dos seres biológicos mais elementares, constituindo, por isso,
"quase uma ponte entre o mundo mineral e a matéria viva". É isto a poesia de
Carlos Ávila: substrato sólido, superfície transparente: pedra viva. |
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