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     OS DISFARCES DO EU: KIERKEGAARD SEGUNDO GUIOMAR DE GRAMMONT

 

(apresentação do livro Don Juan, Fausto e o Judeu Errante em Kierkegaard, de Guiomar de Grammont. Petrópolis: Catedral das Letras, 2003)

 

Maria Esther Maciel

        

Se, ao construir uma realidade fictícia através do exercício heteronímico, Fernando Pessoa trouxe para o contexto da modernidade do séc. XX uma experiência radical no que tange à questão da subjetividade, não se pode dizer, entretanto, que o exercício ficcional das identidades múltiplas não tenha sido praticado anteriormente, de uma forma quase tão intensa quanto a que marcou o universo pessoano. Basta um recuo à primeira metade do século XIX para que encontremos na obra de Soren Kierkegaard uma experiência bem próxima à do poeta português, visto ter o filósofo-escritor dinamarquês criado para seus textos vários autores fictícios, compondo através deles uma obra múltipla e matizada, avessa à idéia de sistema e atravessada por uma lógica paradoxal.

 

Conhecidos através do termo “pseudônimos”, os “eus” autorais  forjados por Kierkegaard não são, como se convencionou acreditar, meros porta-vozes das diferentes teses defendidas pelo próprio autor ou nomes falsos sob os quais este ocultou sua identidade civil e biográfica. Como em Pessoa, eles sustentam uma existência autônoma, são providos de uma voz própria, contracenam enquanto personagens e fazem leituras irônicas do próprio Kierkegaard “ele mesmo”. Evidenciam, portanto, um nítido trabalho de despersonalização do autor, um sair de si mesmo para viver a experiência da “outridade”, para se instalar na zona móvel, intersticial, lugar do diálogo e do embate entre os diversos autores que criou.

 

Nesse sentido é que se pode afirmar que os pseudônimos kierkegaardianos compõem um teatro de subjetividades múltiplas, um jogo de máscaras cuja finalidade não é ocultar um rosto verdadeiro, mas revelar o drama de uma existência fragmentada, a realidade atormentada do sujeito lançado à sua própria contingência e que não resta senão como ficção de si mesmo. Não à toa, em uma das passagens do Pós-escrito às migalhas filosóficas, o filósofo diz à maneira pessoana: “percebo, desde o início, que minha existência pessoal é algo embaraçoso para os pseudônimos”.

 

É exatamente sobre esse intricado universo “pseudonímico” de Kierkegaard, em que cada autor imaginário vivencia de distintas formas a concepção estética da existência, que Guiomar de Grammont constrói sua leitura do filósofo dinamarquês em Don Juan, Fausto e o Judeu Errante em Kierkegaard. Reconhecendo – à diferença de outros estudiosos da obra kierkegaardiana – que a pseudonímia, tomada como “comunicação indireta”, é a chave para o conjunto da obra do pensador, a autora não apenas explora os possíveis traços de similitude entre o filósofo dinamarquês e o poeta português, mas sobretudo constrói um sólido e instigante estudo sobre o chamado “estádio estético” de Kierkegaard. Para tanto, trata o processo de “comunicação indireta” do filósofo como um artifício irônico inspirado pelo método da maiêutica socrática e mostra que os autores-pseudônimos são estratégicos desdobramentos de três figuras paradigmáticas do estádio estético kierkegaardiano: Don Juan, Fausto e o Judeu Errante, às quais se associam, respectivamente, as categorias da sensualidade, da dúvida e do desespero.

 

Ao partir da já reconhecida tripartição da obra do filósofo nos estádios estético, ético e religioso, Guiomar elege a vertente estética como ponto de interseção das vertentes ética e religiosa, mostrando as sobreposições e os entrelaçamentos que elas mantêm entre si. Ou seja,  rompe com a prática corrente de compartimentação e hierarquização desses estádios, para considerá-los sob o prisma das relações.

 

Essa opção por um enfoque mais aberto e relacional se faz ver ainda no trato dado especificamente às figuras de Don Juan, de Fausto e do Judeu Errante, que nos são apresentadas tanto a partir das diferenças quanto das afinidades por eles compartilhadas. Se, para a autora, Don Juan e Fausto apontam, respectivamente, as vias da paixão sensual e da dúvida como duas possibilidades para o exercício da vida estética, ambos se encontram, por outro lado, na prática da sedução, a qual se inscreve no primeiro como expressão do pathos musical e no segundo como manifestação do demoníaco e do reflexivo. À dúvida fáustica é ainda entrelaçada a angústia que define o desespero do Judeu Errante, este um personagem que se consome na “busca de sentido que antecede o salto para a fé”, do que se depreende que é através da figura paradigmática de Fausto que os estádios da existência, em Kierkegaard, se aproximam e se entrecruzam.

 

Sob essa perspectiva dos entrecruzamentos, um dos pontos altos do trabalho é, inegavelmente, o enfoque dado ao personagem Johannes, o Sedutor, que além de narrador-protagonista de O diário do sedutor, destaca-se como um dos personagens medulares de O banquete (In vino veritas). Nele, como evidencia Guiomar, convergem traços que apontam tanto para a figura de Don Juan quanto para as de Fausto e Ahasverus, o Judeu Errante.  Se, no que se refere à busca do sentido imediato da existência, ele aparece como uma recriação de Ahasverus, de Don Juan (cuja sensualidade é definida como pura libido e espontaneidade musical) ele seria um desdobramento paradoxal: representaria sua outra face, a face fáustica do esteta refletido, metódico e que busca na palavra o recurso privilegiado da arte de seduzir.

 

Para trabalhar essas questões, Guiomar vale-se de uma sólida pesquisa sobre as representações culturais e literárias de tais personagens no imaginário ocidental, bem como de uma base crítico-teórica que inclui, dentre outras referências bibliográficas de relevo, as reflexões de Denis de Rougemont sobre as figurações do amor na história do Ocidente. Com argúcia e sensibilidade, investiga todo o processo maquiavélico de sedução presente no Diário, avalia o sentido de “posse espiritual” que atravessa a relação de Johannes com Cordélia, discute o caráter auto-reflexivo do personagem e tece considerações preciosas sobre a ironia que sustenta a própria construção do texto.

 

A questão da ironia, aliás, merece um cuidado especial da estudiosa ao longo de todo o trabalho, sendo tratada como a base constitutiva do próprio método kierkegaardiano na construção de seu universo pseudonímico. Para isso, ela investiga minuciosamente o conceito, buscando na “maiêutica socrática”, no romantismo dos alemães de Jena e no próprio livro de Kierkegaard, O conceito de ironia, os subsídios teóricos para suas formulações a respeito da intrincada teia pseudonímica do autor. E nesse sentido mostra como o pensamento kierkegaardiano se estrutura ele mesmo enquanto um jogo dialógico e se configura, através dos artifícios irônicos, também um desafio para aqueles que excluem do logos o exercício da paixão e da incerteza.

 

Assim, além de evidenciar como a estética concebida pelo filósofo ultrapassa “os limites de uma mera teoria da arte” para se converter em uma concepção irônica e multifacetada da existência humana – similar àquela que Pessoa nos apresentou com seu teatro de eus –, Guiomar de Grammont nos oferece uma leitura inovadora de Kierkegaard, ilumina várias zonas de sombra de seu pensamento, questiona os equívocos da crítica em torno da sua obra e redimensiona-o a partir de uma abordagem que, sem prescindir do rigor, não se furta à leveza e à flexibilidade. Enquanto pesquisadora sensível às ambigüidades, aos paradoxos e à inquietante modernidade do filósofo-esteta, ela assume corajosamente em seu texto o desafio de colocar em prática aquilo que o poeta Paul Valéry elegeu como meta de sua própria trajetória poético-intelectual: “fazer pensar,  provocar atos internos no leitor”.

 

 

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