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PREFÁCIO

 

do livro Objetos difíceis, de Alexandre Rodrigues da Costa

(Sette Letras/Funalfa, 2004)

 

 

               

Maria Esther Maciel

 

 

 

Sabe-se que o agora converteu-se no topos por excelência da sensibilidade contemporânea. Não um agora fechado onde se elidem passado e futuro, mas um ponto móvel de interseções temporais. Onde a memória do mundo se inscreve e se dissolve. Onde os sentidos migram para zonas até então indivisadas do corpo. Onde o dentro das coisas não é mais que a superfície que as define.

 

Neste contexto, a experiência da realidade acaba por se dar, sobretudo, através do exercício da visão, uma vez que o mundo parece se reduzir, a cada momento, à esfera do visível mais imediato. Fala-se, inclusive, de uma inflação de imagens pré-fabricadas em nosso tempo, de uma conversão do “ver” em um mero ato transitivo de consumir o que se acumula diante dos nossos olhos.

 

Alexandre Rodrigues da Costa, em seu livro Objetos difíceis, vem mostrar que é possível criar vias alternativas de se olhar o presente, sem que seja necessária a recusa do “estado de coisas” que o constitui. Ciente de que cabe aos poetas e artistas do agora também pôr em foco visões de olhos fechados, ver o mundo à margem dos enquadramentos, através da imaginação, ele faz do visível uma superfície para além das superfícies legitimadas, buscando captá-lo fora da “facilidade” exigida pela lógica do consumo e nele divisar o imprevisível e o insuspeitado de sua própria visibilidade.

 

Objetos do cotidiano, quadros de uma exposição de arte, naturezas-mortas, personagens de revistas em quadrinhos, filmes de Hollywood, textos poéticos, ossos, pedaços do corpo humano, detritos, máquinas, fragmentos de paisagens, tudo, enfim, que constitui o campo de visão do poeta é transformado em matéria-prima para a construção dos poemas do livro. Mas o que é extraído dessas coisas não se circunscreve aos limites de suas superfícies falazes, de seus contornos explícitos. Isso, porque Alexandre procura captar precisamente aquilo que não as define, que escapa ao olhar gratuito, viciado no previsível. Daí que tanto as coisas ditas quanto os próprios poemas que a dizem resultem em “objetos difíceis”, que desafiam o leitor a reinventar as funções de seu próprio olhar.

 

O difícil, nesse caso, inscreve-se menos no plano formal do que no conceitual. Não há nos 23 poemas da coletânea malabarismos de linguagem, ornamentos sonoros, obscuridades construídas em nome da experimentação sintática ou vocabular. Alexandre faz uso de uma linguagem que tangencia, com inegável elegância, o coloquial. A sutileza da sintaxe, o ritmo seco, o tom ora interrogativo, ora silogístico dos versos, a força imagética das palavras, as simetrias instáveis, as abstrações de um dizer que às vezes também se aproxima do discurso filosófico dão a impressão de que os poemas são “corpos que lançam para fora de si / a própria forma”. Para restarem nus, enquanto situações físicas desprovidas da proteção da moldura ou enquanto superfícies estranhas, nunca idênticas a si mesmas.

 

Nesse sentido, não é fácil definir/classificar a poesia de Objetos difíceis: nela praticamente não se vêem ressonâncias das principais linhas de força da poesia brasileira contemporânea, nem resquícios visíveis de uma tradição poética mais remota. Talvez algo de Wallace Stevens, Paul Celan, T.S. Eliot e Clarice Lispector insinue-se aqui e ali, menos como influxo do que como inflexão. Mesmo os traços de metalinguagem e/ou intertextualidade –  lugares-comuns da poesia brasileira atual –  que se dão a ver em alguns poemas também se colocam sob o signo da estranheza e do imprevisto. 

 

Vale mencionar, por exemplo, os casos em que o poeta fala de poesia através da evocação oblíqua de cenas extraídas de filmes – comerciais ou não –como Rastros de ódio, de John Ford, O homem que não estava lá, dos irmãos Cohen,  2001- uma odisséia no espaço, de Kubrick,  Memento, de Christopher Nolan, Dead man, de Jim Jarmusch, Blow up, de Antonioni, Cidadão Kane, de Orson Welles, e Asas do desejo, de Wim Wenders, dentre vários outros. Mas ainda aí não é fácil encontrar rastros explícitos de reflexão metalingüística e tampouco mapear as referências incorporadas, já que o que sobra das cenas fílmicas nos poemas é exatamente o que escapa ao olhar imediato de quem apenas as “consome”. Interessa ao poeta nelas flagrar os pontos de fuga, as sombras e as possibilidades que têm de ser outra coisa que não apenas a realidade (ou a irrealidade) que apresentam. Nesse sentido é que, ao evocar (sem necessariamente explicitar) uma passagem do filme Jornada nas estrelas no poema “Antimatéria”, ele se dispõe não a descrever a geometria do espaço,/ a cor, a forma e a medida das coisas / que se perdem no feixe/ de luz”, mas a indagar até que ponto seria “impossível explicar / ao cego/ qual o sentido de ‘to boldly / go where no man has gone before’,/ se a legenda antecede todos os movimentos/ e não deixa que, clara, / a imagem/ se traduza. Do que conclui, ainda no meio do poema, que “poderíamos assustá-lo com uma alguma dor”.

 

Essa maneira peculiar de ver as coisas vai se refletir ainda na própria configuração da subjetividade do poeta. O subjetivo, como este nos diz em um dos poemas, não se torna palpável, mas se constitui quase que abstratamente através de um olhar que se esconde atrás do olho, naquela zona conhecida como ponto cego, localizada no fundo da retina. Como se apenas lá, no ponto onde a visão falha, o olhar do sujeito sobre a realidade se tornasse, paradoxalmente, possível.

 

Assim, modulados por esse olhar deslocado da própria retina, os poemas de Alexandre Rodrigues da Costa se moldam e se desfiguram em Objetos difíceis. Trazem para a poesia brasileira e para a sensibilidade do presente um outro campo –  ou contracampo –  de visão e de percepção das coisas do mundo.

 

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