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DISCURSO DE
APRESENTAÇÃO DE AUGUSTO ROA BASTOS NA
SESSÃO DE OUTORGA DO TÍTULO DE DR. HONORIS CAUSA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SANTA CATARINA ( in memoriam) Magnífico Sr.
Reitor Lúcio José Botelho, autoridades presentes, conselheiros, diretores de
Centros, professores, estudantes e
demais ouvintes, Prezado amigo Carlos Roa, a quem agradeço
por ter vindo representar seu pai, Nuestra alma es
idéntica a nuestra imagen. Nuestra cara, nuestra
oreja, nuestras piernas, Nuestros brazos. Toda
nuestra imagen. Está en medio de
nosotros nuestra verdadera alma. Se encuentra en el
medio. As palavras do
informante do grupo indígena paraguaio Nivakle ensinam como o ser humano
nunca deixou de criar imagens e ver-se como imagem de suas criações. Enquanto houver ser humano haverá
representação e isto está no bojo de qualquer cultura, seja esta poesia
cantada, escrita, dançada ou desenhada em códigos aparentemente
indecifráveis, haverá sempre alguma solidariedade a ser descoberta através da
arte. A lástima é que tenhamos sofrido com as hierarquias entre culturas
diferentes, entre territórios, entre seres humanos, desde a colonização. No início do
século XX, o peruano Luis Alberto Sánchez, em visita forçada a Assunção, se
refere à "incógnita do Paraguai",
aludindo a um vazio cultural
existente. Esta visão perpassa muitos discursos de intelectuais
latino-americanos que acabam identificando um "atraso" no sistema
cultural paraguaio relativamente a outros países. Entretanto, mais que
ignorância, isto revela um preconceito, pois um país bilíngüe em quase 90% da
população com uma guaranização do castelhano e uma castelhanização do guarani
exige novas categorias e ferramentas para a leitura do campo cultural a
partir da inclusão de práticas de oralidade. Como escritor,
Augusto Roa Bastos, soube extrair dessa realidade híbrida e multifacetada, em
termos culturais, um relato em que a experiência histórica carrega uma marca
da subjetividade e de uma visão
mítica, mesclando em seus romances desde Hijo
del hombre (1960); Yo el Supremo
(1974); Vigilia del Almirante (1992);
El fiscal (1993); Madame Sui (1996) diversos gêneros
literários se abrem como um leque ao leitor, passando da biografia, ao ensaio
e da autobiografia ao testemunho para transformar a literatura num caleidoscópio
em que estes discursos se cruzam de modo circular com o uso da simultaneidade temporal que traz à baila a marca
da violência. A quem diga que a história da América Latina é uma história de
violência e Roa Bastos apresenta, em grande parte de seus textos, a lucidez
de quem captou o trauma cultural bélico, seja através da memória da guerra
mais violenta do continente americano no século XIX: a guerra Grande,
responsável por dizimar mais da metade da população masculina do país e
chamada no Brasil de Guerra do Paraguai (1864-1870) e na Argentina e Uruguai
como a Guerra da Tríplice Aliança. Outro conflito, a Guerra do Chaco entre o Paraguai e a
Bolívia de1932 a 1935, foi vivenciada por Roa Bastos entre os jovens
combatentes por ter nascido em 1917. Pode-se entender por que o elemento épico
nunca se dissociou da biografia de Roa Bastos. Desde sua juventude, inicialmente pelas guerras em que
participou como militar, jornalista ou depois na luta interna em seu país
como militante contra um regime de exceção que, em 1947, lhe obriga a exilar-se para não morrer como muitos de
seus companheiros de geração. Sem a pretensão
de abranger todo o universo da produção roabastiana, vale relembrar que se
tornou um nome respeitável no panorama cultural latino-americano, além de
escritor consagrado na literatura em língua espanhola por sua capacidade de
crítica, e engajamento e autocrítica, posturas consideradas até certo ponto
anacrônicas no contexto do século XXI. Na
América do Sul como parte da
geração do “boom”, de fins dos anos 50 aos 70 desenvolveu uma escritura transculturadora como a do brasileiro João Guimarães Rosa, do
peruano José María Arguedas; Garcia Márquez e Juan Rulfo. Como um dos
gestores da novelística em tempos de Guerra Fria e das ditaduras experimentou
o monoteísmo do poder na trilogia composta por Hijo del hombre e Yo
el Supremo e El fiscal – eixo
temático de sua narrativa, segundo palavras suas. Em Hijo de Hombre,
primeiro romance trata de um percurso mítico pela história paraguaia através
de um jogo simbólico com o cristianismo; Yo
el supremo, o segundo trata da ditadura de Gaspar Rodríguez Francia –
conhecido como “Doutor Francia” – que governou o país quando da independência da coroa espanhola - 1814 a 1840 mesclando subjetividades num
Yo plural que engloba o próprio ser que escreve. El fiscal, o terceiro romance da trilogia, relaciona
dois tempos em dois espaços: o sujeito diaspórico Félix Moral que vive na
França em viagem camuflada de retorno, sob a ditadura de Stroessner no século
XX. E a memória de outro período
autoritário (entre 1850 a 1870) entre focos que se superpõem com o
governo de Solano Lopes, cujo delírio
leva o país à Guerra do Paraguai. Ao
final há uma constelação de sentidos na redundância do espetáculo de sacrifício que reúne o
exilado à cena de morte de Solano Lopez
que renarra parodicamente o martírio da crucificação. Estes romances
estão traduzidos em diversas línguas, e alguns deles receberam mais de uma
versão em uma única língua. Ainda há muito que traduzir de sua obra para o
português. Sua última vinda ao Brasil
foi para o lançamento de um de seus últimos livros mais consagrados - Vigilia del Almirante (1992) – editado
em português pela Mirabília, lançado
no ano de celebração do Quinto Centenário da Descoberta da América. Roa Bastos também é autor do roteiro
cinematográfico de El trueno entre las
hojas (1958) entre outros. Tarefa árdua a de resumir em pouco tempo essa
rica trajetória como romancista, contista, autor de roteiros. Por isso apenas esbocei i alguns temas
nesse breve panorama, para dizer que foram poucos os escritores latino-americanos que
conseguiram em sua escritura dar conta da pluralidade lingüística e cultural,
da oralidade escrita e da escritura em forma oral que o bilingüismo realiza.
Também a transculturação ocorrida como marca da colonização surge para romper
o equilíbrio e a linearidade da narrativa exigindo um leitor atento e maduro
para observar o sentido das marcas de
ocultamentos, das tantas mortes culturais sofridas historicamente pela
violência de imposições externas e internas. Por isso quando encontro o conceito de
Walter Mignolo de que para entender
os conflitos sociais na América Latina seria necessário perceber a raça como uma categoria mais importante
do que a de classe, entendo a
perspicácia de Roa Bastos em sua defesa das culturas indígenas. A discussão sobre a crise no Equador e na
Bolívia no ano de 2005 suscita uma revisão dessas categorias e nos permitem
repensar que a classe se relaciona como categoria à história européia, mas
etnia, conseqüência direta da colonização do século XVI, para a América
Latina , segundo a concepção de
Aníbal Quijano, está no bojo das relações entre cristãos que reivindicavam
sua superioridade em relação a religiões inferiores como a dos muçulmanos e
judeus e às não-religiões dos indígenas e africanos. Como não deixar de
apontar a Augusto Roa Bastos como uma referência precoce com a organização da obra Las culturas condenadas, em 1978, ao denunciar o etnocídio das culturas
indígenas? Nesta obra se
desbravam a mitologia, relatos e poemas das dezoito tribos paraguaias para
mostrar como a "raça
superior'" dos brancos e cristãos europeus, matriz do poder e de racismo, hierarquizou os seres humanos não
brancos e europeus. Como intelectual
Roa apresenta inúmeras pesquisas sobre a riqueza deste patrimônio imaterial
que são as culturas indígenas em seu país. O foco de Roa
Bastos ao apresentar a cultura dos sobreviventes é a demonstração de que é a humanidade quem
perde com o extermínio que continua sendo diário, segundo ele: "
não pode ser compreendida em toda a sua significação mas em um marco global
de nossas sociedades baseadas no regime de opressão e espoliação dos estratos
humanos que elas consideram
"inferiores"; seu resultado é um processo de extinção destas
comunidades. A tentativa de "civilizar" o índio terminam por
exterminá-lo." Sua vida no
exílio não o afastou da problemática regional. Ninguém como Roa Bastos se engajou mais na integração regional
da cultura dos países do Cone Sul ao propor uma discussão bilateral sobre a
questão dos “brasilguaios”, em 1995. Graças a esforços desse intelectual orgânico, bem como unidos a movimentos fronteiriços, hoje
proliferam as cooperativas que reúnem
ambas as nacionalidades em solo paraguaio.
As palavras de Roa Bastos podem servir não
somente aos paraguaios, a bolivianos, aos equatorianos ou aos peruanos, mas
também a nós que temos quase duzentas línguas indígenas e portanto culturas,
praticamente desconhecidas em território brasileiro. A leitura de Las culturas condenadas serve para
repensarmos a questão indígena em
diversos aspectos. A concessão de um território espacial - uma
reserva não dá conta do respeito e da necessidade de difusão cultural de que
são merecedores. Os guaranis que
vivem aqui do nosso lado e morrem de fome nas reservas indígenas de Massiambu
e do Morro dos Cavalos. À beira de uma rodovia e cercados por terras
inférteis, um território não basta e
como diz Bartomé Meliá- "agonizam cantando". Enfim, a representação de Roa Bastos mostra
a cultura pluriétnica do Paraguai que, na verdade, nada tem de “incógnito”, exige apenas disposição e novas categorias para pesquisá-lo e descobrir sua
riqueza cultural. Este era o olhar de Roa e daí vem um lirismo que não se
esgota em sua prosa e transcende gêneros e que denso de humanismo e energia
merece ser revisitado também como um dos poema da obra El naranjal ardiente, escritos entre 1948 e 1949. Lembrem-se de que interna e externamente
era o período pós-guerra, embora só tenha sido publicado em 1983. LOS HOMBRES Tan tierra son los hombres de mi tierra Que ya parece que estuvieran muertos, Por afuera dormidos y despiertos Por dentro con el sueño de la guerra. Tan tierra son que son ellos la tierra Andando con los huesos de sus muertos. Y no hay semblantes, años ni desiertos Que no muestren el paso de la guerra. De florecer antiguas cicatrices Tienen la piel arada y su barbecho Alumbran desde el fondo las raíces. Tan hombres son los hombres de mi tierra Que en el color sangriento de su pecho La paz florida brota de su guerra. E para concluir: Segundo a cultura guarani, o ser humano ao morrer tem a possibilidade
de renascer, mas poucos são os que o conseguem. Disso depende toda a trajetória
individual. O primeiro nascimento é uma dádiva, o segundo são as sementes
plantadas nos demais. Até pelas datas de seus dois nascimentos,
Don Augusto comprova uma vida emblemática.
Nasce no mesmo ano da Revolução Russa (1917) e morre renascendo com uma
data significativa, 2005, a celebração do IV centenário do primeiro romance
moderno do Ocidente - el Quixote. Augusto Roa
Bastos foi quixotesco em vida? 1917 - 2005... essas datas poderiam
corresponder às tensões entre as
armas e as letras, existentes na trajetória dessa figura transnacional que se
formou na vanguarda paraguaia dos anos 40, luta contra o poder político local
e depois passa a representar-lhe ficcionalmente em várias de suas obras.
Quanto ao público, Roa Bastos deixa claro que não escreve para um público
determinado. Cito:"O público escolhe seu próprio
livro. Também não escreve para a posteridade. A posteridade não é
rentável". Não teme anunciar que escreve para
sobreviver porque nunca deixa de reivindicar seu direito de interpretação;
mesmo no exílio instaura uma voz. Tendo nascido paraguaio, após ter sido
expulso de seu país de origem em um complô mal explicado em 1982, torna-se
apátrida e recebe o direito à nacionalidade francesa e espanhola, adotando em
1983 a cidadania hispânica. Representante da diáspora latino-americana
seria hoje classificado como mais um “sudaca”? Extraindo saberes do
sofrimento de uma geração que sofreu o êxodo político, soube deixar uma
grande lição ao transformar a ficção
da memória em memória da ficção. Cito: Não
nos resta outro refúgio que a sonhadora memória do esquecimento. Mas o
esquecimento também pode esquecer que esquece. Só onde há tumbas a
ressurreição é possível. Augusto Roa
Bastos renascido, aceita essa homenagem porque: Nuestra alma es idéntica a nuestra imagen. Nuestra cara, nuestra oreja, nuestras piernas, Nuestros brazos. Toda nuestra imagen. Está en medio de nosotros nuestra verdadera alma. Se encuentra en el medio. Desterro, 21 de junho de 2005 Alai Garcia Diniz |
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