FORMAS PRONOMINAIS DE TRATAMENTO:
UMA ABORDAGEM SÓCIO-CULTURAL

 

Elzimar Goettenauer de Marins Costa

(Universidade Federal de Minas Gerais)

 

A idéia que norteou este texto foi a de abordar um tema relevante para o ensino-aprendizagem de espanhol no Brasil, sobre o qual desenvolvo um projeto de pesquisa na Faculdade de Letras da UFMG. Tomei como referencial minha própria experiência como falante e como professora de E/LE: carecemos de subsídios para aprofundar vários tópicos e assim adquirir mais segurança para usar a língua, pois as gramáticas apresentam repertórios de normas e os manuais de E/LE, repertórios de funções em unidades isoladas.

A proximidade entre o português e o espanhol nos faz desconsiderar algumas vezes o fato de que não só as formas e os significados são diferentes, mas também as conotações que adquirem os enunciados nos diversos contextos. As duas línguas são parecidas, mas as culturas, diferentes. Portanto, diferentes são também as convenções sociais que regem os usos.

Por isso, torna-se importante o estudo contextualizado da língua, como defendem tantos lingüistas. A comunicação é uma forma de interação entre os indivíduos desenvolvida em contextos que impõem certas condições ao uso e ao mesmo tempo proporcionam elementos para a interpretação correta dos enunciados.

Aprender espanhol significa ter acesso a outras realidades, cujas normas e convenções muitas vezes diferem daquelas que condicionam as relações em nossa sociedade. Sendo assim, não basta o conhecimento do código lingüístico e dos expoentes funcionais, é necessário também o preparo para conhecer, interpretar e relacionar-se com outros contextos sócio-culturais.

Estes princípios associam-se a uma concepção de linguagem como “lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente inexistentes. Trata-se [...] de um jogo que se joga na sociedade, na interlocução, e é no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo” (Koch, 1992: 9-10, grifos da autora). Sob este prisma, linguagem e sociedade são vistas como indissociáveis, gramática e significado da linguagem são categorias de análise inter-relacionadas.

Portanto, quando se trata do ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, é fundamental ter em mente que a falta de adequação entre o uso e a situação provoca desajustes não tanto informativos, mas de expectativa quanto à conduta. Romper certas convenções pode significar, na perspectiva do interlocutor, o fracasso do ato comunicativo (Briz, 1998: 16).

¿Tú o usted? ¿Tutear o vosear? ¿Ustedes o vosotros? O estudo das formas pronominais de tratamento pautado no contexto e nos fatores sócio-culturais pode contribuir para dissipar dúvidas freqüentes quanto à maneira ideal de referir-se ao interlocutor. Esta é uma das regras do jogo!

O que se observa a partir da perspectiva do brasileiro aprendiz de espanhol é que a escolha do pronome adequado para tratar a pessoa com quem se fala gera dúvidas e insegurança. Isso ocorre por diversas razões: primeiramente, impõe-se a distinção entre “formal” e “informal”, relacionada a noções de cortesia, confiança, respeito, intimidade, relações de poder/status/solidariedade, etc. Como no contexto brasileiro, devido a fatores culturais, essas noções não mantêm necessariamente a mesma correspondência com o universo hispânico e não condicionam de modo igual o emprego de você (s), o(s) senhor(es), a(s) senhora(s), torna-se difícil delimitar com segurança as circunstâncias que regem um trato de formalidade ou informalidade em relação ao interlocutor, tendo como parâmetro apenas uma breve descrição de situações ou somente as normas gramaticais – que muitas vezes entram em conflito com os usos concretos. Para uma compreensão satisfatória dos valores distintivos das fórmulas de tratamento e um registro sintonizado com o contexto, seria suficiente a seguinte explicação ao aprendiz brasileiro?

 

¿Tú o Usted?

De manera general, en español usamos el pronombre cuando hay confianza o intimidad entre los hablantes; es un tratamiento informal que corresponde a você en portugués. En cambio, cuando se trata de personas desconocidas o entre las cuales hay una distancia jerárquica o de edad, usamos usted, que corresponde al tratamiento formal y es equivalente a las formas o senhor/a senhora en portugués (Briones, Flavian y Fernández, 2003: 21)

 

A generalização e o paralelo estabelecido com as fórmulas do português, sem observações mais específicas, induzem a uma interpretação equivocada que leva os alunos a empregar e usted indiscriminadamente na simulação de alguns diálogos na sala de aula, principalmente porque há um outro agravante: em português as formas verbais são homônimas para os dois tratamentos.

Como segunda razão pode-se apontar o pouco conhecimento de variações relevantes, tais como o voseo. Embora o uso do pronome vos seja uma característica importante do espanhol americano e esteja presente em pelo menos dois terços da área hispano-americana (Kany, 1970: 80), aparece normalmente como uma peculiaridade das formas de tratamento restrita à região rioplatense e é abordado superficialmente, ou nem sequer abordado, nas gramáticas de mais fácil acesso para o público brasileiro.

Uma consulta aos livros didáticos de E/LE permite-nos constatar que, de modo geral, as fórmulas de tratamento, e em particular o voseo, não recebem a atenção necessária. Como assinala Andión Herrero, a presença do voseo nos manuais de E/LE é “francamente lamentable” (Andión Herrero, 1998: 54). Apesar de ser mencionada, a forma vos não é explorada suficientemente, seu uso raramente é ilustrado com textos autênticos e quando isso acontece, na maior parte dos casos, são apenas os quadrinhos da Mafalda que servem de exemplo. Além disso, não se propõem atividades comunicativas que levem o aluno a empregar vos e as outras formas que constituem o paradigma pronominal da 2ª pessoa do singular e não se faz menção às diferentes combinações do pronome com as formas verbais. Os dados sobre a extensão do voseo diferem de um material para o outro, parecendo decorrer de um recorte aleatório e a alusão aos fatores sócio-culturais, que interferem no emprego ou não e no prestígio maior ou menor da forma vos, quando feita, é insuficiente e em alguns casos acaba por denunciar, nas entrelinhas, uma visão preconceituosa.

Outro tópico nem sempre abordado com clareza é o emprego de ustedes tanto para tratamento formal como informal. A neutralização da oposição vosotros/ustedes aparece não raro vinculada ao voseo, induzindo à conclusão errônea de que é um traço exclusivo do espanhol americano quando, na verdade, ocorre também em zonas da Península Ibérica e Canárias (Fontanella Weinberg, 1999: 1.403), onde não se emprega o pronome vos.

Contudo, a omissão de algumas informações relativas aos contextos e às normas sociais que regem o tratamento entre as pessoas no mundo hispânico é o fator que mais interfere na seleção da fórmula apropriada para aludir à segunda pessoa. Fontanella Weinberg destaca que a oposição entre as fórmulas de confiança e de respeito está condicionada por dois eixos fundamentais: o eixo do poder ou status marcado por fatores como idade, relação familiar, relação de trabalho, situação social, etc.; e o eixo da solidariedade, marcado por relações simétricas nas quais os interlocutores empregam usted ou tú/vos de forma recíproca (Fontanella Weinberg, 1999: 1.415).

A título de exemplo, uma pesquisa realizada em San Juan sobre a adequação das formas de tratamento em âmbitos específicos, apresentada por López Morales, demonstra concretamente esse condicionamento em circunstâncias comunicativas específicas. No âmbito das relações de trabalho, constatou-se que a idade está acima do fator poder: se o chefe é mais velho que o subalterno, o tratamento formal é quase unânime; se não é, aumenta o emprego do tuteo, muito mais pelos homens do que pelas mulheres, que se mostraram mais conservadoras. Fora do ambiente de trabalho, entretanto, os padrões podem reestruturar-se (López Morales, 1992: 148-151).

Deve-se considerar ainda os diversos matizes que podem adquirir as formas em questão de acordo com as situações comunicativas. Garrido Domínguez informa que na América Hispânica há um uso peculiar de usted como tratamento afetuoso: na Colômbia e no Chile é empregado entre pais e filhos, entre amigos e entre marido e mulher. Esse uso é desconhecido no espanhol peninsular (Garrido Dominguez, 1992: 202). Kany comenta ainda outras especificidades: no Chile, a esposa usa o usted afetivo ao dirigir-se ao esposo, mas este a trata por tú; o uso de usted em relação a crianças pode indicar tanto ternura como reprimenda. A substituição de por usted para indicar repreensão é comum na América e na Espanha (Kany, 1970: 123). E Carricaburo observa que em vista da disseminação do vos e a restrição do usted a situações mais específicas na Argentina, dado revelador do “encurtamento das distâncias sociais”, o emprego indiscriminado de usted pode não só marginalizar socialmente como também segregar alguém por ser de idade avançada (Carricaburo, 1997: 25).

Em síntese: a distinção entre tratamento de respeito e de intimidade, a conservação do voseo em grande parte da América Hispânica, as implicações sócio-culturais dos diferentes usos, os desvios em relação às regras gramaticais, a existência de uma norma peninsular e outra hispano-americana, todos esses fatores dificultam uma abordagem coerente e significativa das formas pronominais de tratamento em espanhol.

Quando se trata do ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira falada por mais de 300 milhões de pessoas, distribuídas em mais de vinte países, é impossível desconsiderar o fato de que a língua espanhola se manifesta de diferentes formas segundo a geografia, o tempo, a sociedade e a situação (Moreno Fernández, 2000: 23), dando origem às variações diatópicas, diacrônicas, diastráticas e diafásicas. O procedimento mais comum entre professores e autores de manuais didáticos é adotar uma norma como referência ou, em outras palavras, costuma-se optar por um espanhol estándar, apesar de que nem sempre esse procedimento está claramente formulado[1].

Não há um conceito unânime de língua estándar, porém, é possível assinalar algumas de suas propriedades. Dentre as destacadas por Hernández Alonso (2000), encontram-se a capacidade de adaptar-se a todo tipo de enunciados (intelectualización) e às necessidades comunicativas mais diversas (estabilidad flexible), e também o caráter de prestígio sobre as demais variantes.

Sem dúvida, como falante de uma língua estrangeira tanto professores como alunos devem adotar e seguir uma norma para garantir a coerência lingüística das mensagens que emitem. Essa coerência é particularmente importante em relação ao emprego do pronome de 2ª pessoa no plural para o tratamento informal – ¿vosotros o ustedes?[2] Entretanto, a adoção de uma norma só é possível quando se tem conhecimento das diferentes possibilidades. Portanto, o professor de E/LE, sobretudo quando trabalha com alunos do nível básico, deve oferecer informações consistentes sobre as formas de tratamento e criar situações de uso na sala de aula para que os aprendizes se conscientizem a respeito das diferenças e das implicações dos usos inadequados aos contextos e possam de fato desenvolver sua competência comunicativa.

Embora a opção por um espanhol estándar não apareça expressa claramente nas apresentações de vários manuais didáticos, uma análise cuidadosa permite constatar que majoritariamente a norma utilizada como referência é a peninsular. Ainda que se mencionem o voseo e o uso de ustedes também para tratamento informal, via de regra através de notas breves, a sistematização gramatical das formas pronominais e verbais, os textos veiculados e as atividades propostas apóiam-se predominantemente no paradigma tú, vosotros/usted, ustedes[3]. Essa questão é especialmente relevante se considerarmos os seguintes aspectos:

– como explica Hernández Alonso (2000), a língua padrão não deve ser interpretada como algo fixo e fechado. Ela possui um suporte comum, patrimônio de todos os falantes, e também “un mundo de posibilidades de crear nuevos mensajes, apoyándose para ello en las más variadas combinaciones de unidades en los distintos niveles en que se estructura la lengua”.

– os autores nos últimos anos têm dado preferência à abordagem comunicativa na elaboração de materiais didáticos para o ensino/aprendizagem de E/LE. Na abordagem comunicativa, o estudo da língua em seu contexto social ganha relevância. A comunicação é entendida como uma forma de interação social e a competência comunicativa dos falantes resulta da combinação de seis componentes[4]: o domínio do código lingüístico (competência gramatical), a adequação dos enunciados à forma e ao significado (competência sociolingüística), a capacidade para combinar as estruturas e os significados em um texto oral ou escrito (competência discursiva), o domínio de estratégias verbais e não verbais para tornar a comunicação mais eficaz (competência estratégica), a capacidade de interpretar e relacionar-se com uma realidade sócio-cultural diferente (competência sócio-cultural) e a capacidade para interagir em sistemas sociais (competência social) (Giovannini, 1996: 10-11).

– o fator cultural tem sido focalizado nos materiais didáticos de E/LE, principalmente porque atualmente há maior preocupação em destacar a importância de estudar espanhol no Brasil devido a sua proximidade com povos falantes dessa língua.

Tendo em vista o que foi exposto até aqui, podemos fazer algumas considerações críticas: primeiramente, devemos admitir que é viável e inclusive recomendável conciliar a adoção de uma norma para o ensino/aprendizagem de E/LE com a exploração das variantes lingüísticas. Contudo, explorar não significa simplesmente citar peculiaridades como se fossem meras curiosidades, nem apresentar alguns usos sem contextualizá-los adequadamente.

As formas pronominais de tratamento demandam uma abordagem cuidadosa nas aulas de E/LE para aprendizes brasileiros. No entanto, isso não significa fazer generalizações indevidas, confundindo o aluno com informações desencontradas, mas sim estabelecer critérios para a seleção e aprofundamento de tópicos relevantes de acordo com as necessidades comunicativas dos aprendizes.

Exatamente devido à localização geográfica do Brasil, são maiores as oportunidades de interagir com um falante de espanhol procedente de algum país hispano-americano. Sendo assim, faz-se necessário dar ênfase ao voseo e ao uso de ustedes em situações de informalidade. Não se trata de privilegiar as normas hispano-americanas em detrimento das normas peninsulares – o que pode acontecer, se for de interesse dos alunos –, mas sim de estabelecer critérios que norteiem de forma coerente a definição de uma norma geral, se for o caso, e criar espaço para apresentar e efetivamente explorar as variantes. Deve-se questionar: por que é tão rígido o emprego de vosotros se nem mesmo na Espanha ele é absoluto? E não parece contraditório o fato de uma manual que se propõe a contribuir para a aproximação cultural entre os povos latino-americanos, como está declarado na apresentação do livro Por supuesto, faça a seguinte observação quanto aos pronomes pessoais?

 

Aunque la forma vos haya reemplazado casi por completo la forma , en la Argentina y en el Uruguay, independientemente de la clase social o nivel de escolaridad del hablante, no la usaremos regularmente en este curso por razones de uniformidad didáctica (Souza, 2003: 20)

 

Pode-se deduzir que, neste caso, a uniformidade didática pressupõe uniformidade lingüística e que a aproximação cultural está desvinculada das conotações de poder, status ou solidariedade que pode adquirir o emprego de um pronome para referir-se ao interlocutor. Caberia aqui então citar o alerta oportuno de Andión Herrero. Segundo ela, na prática comunicativa, a seleção de uma forma para tratar a pessoa com quem se fala traz como conseqüência que o destinatário “haga una composición de jerarquías y poderes dentro de la conversación que no corresponde a la realidad, o, peor aún, que se sienta agredido por su interlocutor [...]” (Andión Herrero, 1998: 56).

Portanto, se o enfoque da língua em seu contexto social é fundamental no ensino/aprendizagem de qualquer língua estrangeira, não é coerente dissociar os elementos lingüísticos de seu efetivo emprego na comunicação e nem ignorar o papel do contexto e das convenções na interação que se estabelece entre os indivíduos. O outro – nosso interlocutor em potencial – está sempre presente nas situações do cotidiano: nas ruas, no ambiente de trabalho, no transporte, na fila do cinema, enfim, em qualquer lugar. Não escapamos disso quando viajamos, pelo contrário, em lugares desconhecidos são maiores as probabilidades de termos de nos dirigir a outra pessoa para pedir uma informação, comprar algo, fazer uma solicitação, etc. Por isso, uma das principais razões para estudar uma língua estrangeira é justamente a necessidade de aprender a falar com outra (s) pessoa (s) em outro idioma.

Se o professor adota um enfoque comunicativo, é necessário dar ênfase às fórmulas de tratamento e mais ainda aos fatores sócio-culturais que interferem no seu emprego. Sendo assim, tendo em vista todos os pontos discutidos e considerando-se que a linguagem e mais especificamente os elementos lingüísticos se materializam por meio de textos, a análise de variados gêneros textuais, produzidos em diferentes regiões do mundo hispânico, pode ser uma alternativa para focalizar de modo mais específico o emprego das formas pronominais de tratamento. Tomando como base as definições de Motta-Roth e Marcuschi, respectivamente:

 

Um gênero textual pode ser definido como um tipo de texto normalmente associado a um objetivo comunicativo, conteúdo específico e contexto determinado, em que dada atividade humana está sendo desenvolvida. O repertório de gêneros textuais existentes cobre toda a atividade humana mediada pela linguagem: a carta pessoal entre amigas adolescentes que trocam informações, entrevista de seleção para emprego, orçamento do marceneiro para o cliente, telegrama de pêsames entre parentes, etc. (Motta-Roth, 1998: 12)

 

pode-se verificar e demonstrar como os contextos comunicativos e as condições sócio-culturais estão intrinsicamente relacionados à forma de referir-se à segunda pessoa, se são considerados na análise alguns aspectos: características visuais, características textuais – léxico, gramática, coesão, coerência – relações exofóricas e endofóricas, características discursivas, as condições de emissão, recepção e difusão do texto e as posições relativas dos interlocutores (emissores/receptores).

Desse modo, pode-se elaborar um repertório de muestras de lengua que permita demonstrar as fórmulas de tratamento em situações de uso, destacando-se o(s) sentido(s) e/ou conotações no processo de interação social. Obviamente, amostras ideais de emprego das formas pronominais de tratamento são conversações espontaneamente produzidas em situações reais, por exemplo: um telefonema, uma entrevista de seleção para emprego, conversas em fila, restaurante, sala de espera, etc. Entretanto, não é possível obter amostras desses gêneros textuais, porque estamos fora dos países que falam espanhol. Uma alternativa é explorar diálogos extraídos de filmes e novelas. Apesar de serem na verdade textos escritos previamente, memorizados e repetidos, existe, nestes casos, a intenção de reproduzir as situações do cotidiano. Por essa razão, os diálogos podem ser usados como exemplos verossímeis de usos lingüísticos. A mesma observação vale para contos e romances que, por já estarem na forma escrita, facilitam a análise e podem fornecer um variado repertório de amostras de língua.

Um exemplo, extraído de Boquitas pintadas (Puig, 1989: 190):

Diálogo entre duas personagens, que serão nomeadas de A e B. A reprodução gráfica é fiel ao texto.

 

A – ¿Se puede? el estómago se me revuelve

B – Sí, pase por favor. La estaba esperando, qué arreglada se vino la petisa

A – Qué lindas tiene las plantas... pero la casa da asco

B – Es lo único que me daría lástima dejar, si me voy de Vallejos... ¿qué mirás tanto los mosaicos rotos del piso? se vino impecable, la lana del tapado es cara, el sombrero de fieltro

A – Qué frío hace ¿no? no tiene estufa, esta orillera

B – Sí, perdone que esta casa es tan fría, venga por acá que pasamos a la sala. vas a encontrar mugre si sos bruja... fijate qué limpieza.

 

Uma análise possível[5]: trata-se de um diálogo entre duas mulheres; a apresentação gráfica chama a atenção logo à primeira vista, pois aparecem dois tipos de letras e não há nenhuma justificativa expressa para isso. Uma leitura atenta nos leva a inferir que os trechos em itálico representam o pensamento das personagens. A variação tipográfica marca a separação entre o que elas dizem e o que realmente pensam. Mas há outras marcas: o vocabulário, o tipo de enunciado, a sintaxe e as fórmulas de tratamento, estas últimas expressas principalmente pelas formas verbais, como fica mais evidente na última fala da personagem B: perdone, venga/vas, sos, fijate. São, na verdade, dois diálogos: o que é concretizado na fala se submete às convenções de cortesia, e o emprego de enunciados como por favor e perdone dão um tom formal à conversa; o diálogo pensado, livre do jugo das normas sociais, está à vontade para “dizer” o que quer, daí o uso dos termos petisa, asco, orillera, bruja. O contraste que se estabelece é reforçado pela oposição entre as duas formas de tratamento usadas: o de respeito (usted) e o de intimidade (vos).

Em outros gêneros textuais que podem ser usados para os fins propostos, o interlocutor não está explícito, por exemplo: a propaganda, o manual de instrução, a bula, o panfleto, etc. Costuma-se dizer nesse caso que se dirigem ao público em geral, aos consumidores. Mas não é assim, todo texto visa pelo menos a um tipo de destinatário[6] que pode ser inferido a partir dos próprios aspectos da língua presentes no texto, como o léxico e as estruturas gramaticais. As propriedades dialógicas também devem ser consideradas, ou seja, é necessário identificar tanto as opiniões e idéias que são veiculadas, representativas por sua vez de uma visão de mundo, como as respostas que são estimuladas. Sendo assim, os enunciados são reconhecidos não só por sua natureza gramatical, mas também por sua potencialidade comunicativa, pelo sentido que têm ou adquirem em determinado contexto. Este sentido, portanto, está associado aos fatores sócio-culturais em jogo no ato comunicativo: faixa etária, sexo, classe social, nível de instrução, etc.

Para ilustrar, observemos duas propagandas veiculadas pela mesma revista: Muy Interesante, versão argentina, publicada em abril de 2003.

Ø      Texto 1: propaganda de uma rádio FM (97.1) de Mar del Plata; tratamento informal/voseo, expresso pelas formas verbais llegues, sintonizá, decís, sintonizanos, escuchanos e pela forma pronominal vos.

Ø      Texto 2: propaganda da revista Geo; tratamento formal, expresso pela forma verbal transforme, pelo possessivo su e o pronome le.

Em linhas gerais, considerando o tipo de revista, as matérias e propagandas veiculadas, a linguagem empregada e sua diagramação, pode-se dizer que ela está direcionada a um público de nível social médio ou alto, com nível de instrução médio ou superior, possivelmente constituído de diferentes faixas etárias. As propagandas selecionadas são dirigidas a duas faixas diferentes do público da revista. A primeira visa a um público “conhecido”, com o qual já se tem certa intimidade, dado implícito nos enunciados como vos decís la 97 e siempre, e a um público em potencial – aqueles que cheguem a Mar del Plata e que, igualmente, podem tornar-se íntimos. A idéia principal parece ser a de mostrar proximidade e afinidade entre a rádio e os ouvintes. A segunda propaganda dirige-se a uma parcela mais restrita do público, talvez de faixa etária diferente e nível social mais alto, interessado em conhecer o mundo através de informações selecionadas e específicas que a revista anunciada (Geo) pode fornecer por sua singularidad e original enfoque. O tom de intimidade, nesse caso, não está presente, pois a finalidade parece ser a de anunciar um serviço de informação sério, isento e de qualidade, que mantém a distância recomendável entre o prestador do serviço e o cliente.

Esses exemplos demonstram que o emprego das formas pronominais de tratamento em espanhol tem significação e matizes específicos, diferentes do português. Se traduzirmos o diálogo retirado de Boquitas pintadas, o contraste entre as formas de tratamento será possível única e exclusivamente através dos pronomes (você/a senhora), já que as formas verbais são homônimas. Por outro lado, em espanhol, o léxico, o pronome e as formas verbais formam uma unidade que serve para marcar a animosidade entre as personagens; em português, apenas o léxico cumpriria eficientemente essa função. Do mesmo modo, se pensarmos nas duas propagandas em português, constataremos que as formas de tratamento empregadas nos dois casos (vos/usted) só podem ser traduzidas por você. Sendo assim, a inferência do destinatário seria possível apenas pela análise de outros elementos lingüísticos.

Atividades que desenvolvam esse tipo de análise levarão o aluno a perceber que o interlocutor pode ser responsável pela variação do contexto comunicativo, o que, por sua vez, irá determinar mudanças no modo como o locutor constrói os enunciados. Em outras palavras: qualquer falante emprega diferentes enunciados para comunicar a mesma mensagem a diferentes destinatários. Não falamos da mesma maneira com uma criança e com um adulto, com um amigo e com um motorista de táxi, seja qual for a língua. Contudo, necessitamos mais ainda de pautas claras quando aprendemos uma língua estrangeira.

 

Bibliografía

 

Andión Herrero, Maria Antonieta, 1998, “¿De usted o de tú?”, Cuadernos Cervantes de la Lengua Española, 21.

Briones, Ana Isabel, Eugenia Flavian y Gretel Eres Fernández, 2003, Español Ahora, São Paulo, Moderna.

Briz, Antonio, 1998, El español coloquial: situación y uso, Madrid, Arco/Libros.

Carricaburo, Norma, 1997, Las fórmulas de tratamiento en el español actual, Madrid, Arco/Libros.

Fontanella Weinberg, Maria Beatriz, 1999, “Sistemas pronominales de tratamiento usados en el mundo hispánico”, en: I. Bosque y V. Demonte, Gramática descriptiva de la lengua española, vol. 1, Madrid, Espasa.

Giovannini, Arno, et al., 1996, Profesor en acción I, Madrid, Edelsa.

Hernández Alonso, César, 2000, “¿Qué norma enseñar?”, Conferencia, II Congreso de la Lengua Española, www.cvc.es/obref/congresos/valladolid.

Kany, Charles E., 1970, Sintaxis hispanoamericana, Madrid, Gredos.

Koch, Ingedore Villaça, 1992, A inter-ação pela linguagem, São Paulo, Contexto.

López Morales, Humberto, 1992, El español del Caribe, Madrid, Mapfre.

Moreno Fernández, Francisco, 2000, Qué español enseñar, Madrid, Arco/Libros.

Motta-Roth, Désirée (org.), 1998, Leitura em língua estrangeira na escola: teoria e prática, Santa Maria, UFSC.

Souza, Jair Oliveira de, 2003, ¡Por supuesto!, São Paulo, FTD.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Já é possível encontrar em algumas livrarias materiais didáticos alternativos, que adotam o espanhol da América como referência. É o caso de Puentes e Voces del Sur.

[2] É importante acrescentar que a coerência lingüística que se menciona aqui diz respeito também à pronúncia e ao léxico.

[3] Estudos como os de Andión Herrero (1998) e Bugel (1999) corroboram esta afirmação. Deve-se destacar como exceção a série Estudiantes (Edelsa) que inclui o pronome vos e as formas verbais correspondentes nos paradigmas de conjugação do Presente de Indicativo e do Imperativo.

[4] Está sintetizado aqui o esquema proposto por Canale e Swain (1980), posteriormente ampliado por Canale (1983) e Van Ek (1986), que desenvolve o conceito formulado por Hymes na década de 80.

[5] Deve-se observar que a análise a ser feita é bem mais ampla e deve levar em consideração a totalidade do texto. Aqui foram indicadas somente algumas pistas de abordagem a partir de um fragmento.

[6] Cabe chamar a atenção para o fato de que, quando lemos um texto em língua estrangeira, somos leitores, mas não necessariamente os destinatários do texto.