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A TRADUÇÃO DE TERMOS CULTURALMENTE
MARCADOS Ms. Elzimar
GOETTENAUER (Universidade Estadual de
Londrina) "As
pedras do calçamento são negras como os escravos que as assentaram, mas,
quando o sol do meio-dia brilha mais intensamente, elas possuem reflexos cor
de sangue. Muito sangue correu sobre elas, tanto e tanto que nem a distância
do tempo pode apagar. Essa praça do Pelourinho é ilustre e grandiosa: sua
beleza é feita de pedra e de sofrimento. Por aqui passa a vida inteira da
Bahia, sua humanidade, a melhor e a mais sofrida." Jorge Amado Segundo documentos oficiais, o conjunto
arquitetônico dos séculos XVII e XVIII conhecido como Pelourinho – que os
baianos chamam simplesmente de Pelô – além de ser o Centro Histórico de
Salvador é também Patrimônio Cultural da Humanidade, segundo reconhecimento
da Unesco, em 5 de dezembro de 1985, reduzido hoje a uma pequena área de mais
ou menos dez ruas, onde estão localizados igrejas de preciosas fachadas e 300
casarões – alguns com três séculos de existência, reformados e coloridos, que
abrigam bares, restaurantes, lojas, bancos e museus. O local onde está situado o
Pelourinho é a parte mais alta da cidade que Tomé de Souza,
primeiro Governador Geral do Brasil, fundou em 1549. O termo que dá nome à
área é na verdade o nome dado ao local onde os escravos eram castigados pelos
senhores de engenho. Para demonstrar à população sua força e poder, os
senhores de engenho resolveram construir um pelourinho no centro da cidade e
ergueram então uma coluna de pedra no meio da praça. A partir daí os escravos
passaram a ser açoitados em público para que todos pudessem assistir aos
castigos. Devido a esse fato o lugar virou ponto de referência da cidade;
mais tarde o nome se popularizou e Pelourinho passou a designar todo o conjunto
arquitetônico barroco-português compreendido entre o Terreiro de Jesus e a
Igreja do Passo. O Pelourinho esconde uma infinidade de
segredos – lembranças de martírios e torturas sofridos pelos africanos que
com seu trabalho, seu suor e seu sangue ajudaram a constuir nossa história,
nosso povo e nossos costumes. Terminado o martírio dos escravos, restou o
nome para relembrar um passado de
feitos nem sempre gloriosos que sobrevive nas construções antigas e na cultura
brasileira; uma cultura variadíssima que guarda a contribuição não só dos
negros mas também de índios e europeus, e está presente nas coisas mais
simples do nosso cotidiano, como o vocabulário e a comida, disseminando-se
pelo mundo através da música, da dança, da literatura e da arte. Se consideramos complexa a definição do
termo cultura, mais ainda será a definição de cultura brasileira. Trata-se de
uma conceituação que, mesmo sendo abrangente, não consegue dar conta da
diversidade de costumes e tradições que caracterizam o povo brasileiro porque
nossa realidade é, como caracteriza uma expressão cunhada há poucos anos,
multicultural. Para ilustrar uma vertente desse
multiculturalismo e direcionar o assunto deste breve estudo, pergunto: o que
significam os seguintes termos: adufe, caxixi, ebiri, erukerê? São palavras
que não fazem parte do nosso vocabulário corrente; talvez até não as tenhamos
ouvido nunca. Há outras palavras, porém, que certamente conhecemos e do mesmo
modo não sabemos explicitar a contento: babalorixá, orixá, ganzá, cafuringa,
balangandã. Indo mais além, quem saberia explicar o que é: aú com rolê,
cutilada, chapa-de-frente? Todas estas palavras encontram-se no dicionário e
para saber sua definição bastaria então ler o verbete. Será mesmo? Vejamos a explicação do termo
ebiri: ibiri .
[Do ior.] S. m. Bras. Rel. 1. Insígnia do orixá Nanã, feito de um feixe de
nervuras de palmeira, cuja extremidade superior é presa para formar uma
espécie de alça. [Var.: ebiri.]1 Mesmo lendo o verbete, parece difícil imaginar
o que é na verdade este objeto. Por quê? Porque a definição remete a outras
referências – orixá, Nanã – cujas definições remeterão a outras referências –
candomblé, umbanda – que por sua vez só serão apreendidas satisfatoriamente a
partir de um conhecimento mais profundo da realidade, pois os ritos
religiosos afro-brasileiros, assim como várias outras manifestações culturais
brasileiras – a capoeira, por exemplo –, escapam a conceituações. As palavras citadas anteriormente e
muitas outras similares aparecem com frequência na extensa obra de Jorge
Amado. Isto significa que se o leitor, mesmo brasileiro, quiser fazer uma
leitura minuciosa e saber o significado de cada palavra, terá que ler com um
dicionário à mão e, ainda assim, seguramente ficará com algumas dúvidas. Bem,
e o que representaria a tarefa de traduzir os livros de Jorge Amado para
outro idoma, o espanhol por exemplo? Certamente, este seria um grande
desafio, principalmente se levarmos em consideração que a tradução "é,
também, algo que tem lugar entre culturas, ideologias e visões de mundo
distintas" (AUBERT, 1998, p.99). Quais seriam, então, as alternativas
diante de termos culturalmente marcados da língua de partida, vocábulos como
os citados, que dependem de um contexto específico, próprio da cultura
brasileira, e que por isso não encontram correspondência na língua de
chegada? Além disso, seria a proximidade entre o português e o espanhol um
obstáculo a mais para esse dasafio? Para refletir a respeito dessas
questões, vejamos a seguir algumas considerações sobre a tradução para o
espanhol do capítulo que introduz Tenda dos milagres2
(Tienda de los milagros3),
decorrentes do Projeto de Pesquisa "Para uma Tipologia da
Tradução", desenvolvido na UEL, sob a coordenação da Profª Drª Regina Helena
Correa. O livro em questão, publicado em
1969, apresenta um capítulo inicial
sem título, com caracteres em itálico; dois traços que o distinguem dos
demais capítulos. A finalidade desse texto introdutório é descrever de modo
peculiar o Pelourinho, como verificamos logo nas primeiras linhas: No
amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam.
Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do
Carmo [...], em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e
as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na
mistura criaram uma côr e um som, imagem nova, original. (p. 7) O Pelourinho é comparado a uma
"universidade livre", onde se encontram a Escola de Capoeira Angola
instalada pelo Mestre Budião e as tendas e oficinas dirigidas pelos
"professores": são riscadores de milagres, santeiros, prateiros,
capoeiras, conhecedores de ervas, todos fazendo nascer através da criação a
arte. Não faltam sequer a Reitoria – a Tenda dos Milagres, onde o mestre
Lidio Corró pinta sob encomenda as graças recebidas pelos devotos – nem a Faculdade de Medicina – o Terreiro
de Jesus. Este texto inicial de Tenda dos milagres
transporta o leitor a um local específico – o Pelourinho – e apresenta alguns
personagens que aparecerão com frequencia no desenrolar da história: Lídio
Corró, Rosa de Oxalá, Archanjo, Agnaldo, etc. Trata-se de um capítulo que
descortina o cenário da narrativa e sua importância é tal que o autor optou
por usar recursos para destacá-lo do restante da obra. Aparecem nesta parte do livro muitos
termos que podem ser considerados culturalmente marcados, a começar pela
própria palavra Pelourinho, estreitamente relacionada à história do Brasil e
tão repleta de significações. Segundo Jorge Amado, no seu Guia de ruas e
mistérios, situa-se ali o "coração da vida popular baiana"; para
ele "Toda a riqueza do Baiano, em graça e civilização, toda a pobreza
infinita, drama e magia, nascem e estão presentes nessa antiga parte da
cidade". (1980, p. 70). Outros exemplos de vocábulos cuja
apreensão depende de dados culturais são os nomes de entidades espirituais
(Oxum, Oxossi), objetos referentes à indumentárias dessas entidades (abebés,
paxorô), sementes (obis, orobôs), movimentos e golpes de capoeira
(rabo-de-arraia, aú com rolê), instrumentos musicais (berimbau, atabaque),
madeiras (putumuju, massaranduba), frutas (cajus, pinhas), danças / ritmos
(afoxé, caapora do reisado) ; e também as palavras relativas aos ritos
religiosos (orixá, caboclo); as designações de funções e profissões (riscador
de milagres, cangaceiro); as expressões qualificativas (porreta, cafuringa). Far-se-á menção a vários desses
vocábulos e à sua respectiva tradução4
com o fim de demonstrar algumas das alternativas para vencer, ou não, as
dificuldades de estabelecer uma correspondência adequada entre palavras da
Língua Fonte e palavras da Língua Meta. Deve-se destacar que embora este
levantamento esteja fundamentado nas modalidades de tradução propostas por
Francis Aubert, os procedimentos tradutórios apontados não seguem fielmente a
terminologia adotada pelo autor já que não se pretende quantificar o grau de
diferenciação entre o texto original e o texto traduzido. O objetivo é
ilustrar e explicitar os recursos empregados na tradução para superar os
empecilhos dererminados pelas barreiras culturais.
A partir dos dados apresentados é
possível observar que diversos são os procedimentos dos quais lança mão o
tradutor na tentativa de empregar na língua de chegada o termo que
corresponde adequadamente ao utilizado na língua de partida. Quando há a
possibilidade da correspondência direta, emprega-se a tradução literal (ex:
leque 8abanico); este procedimento, no entanto,
esbarra às vezes na questão semântica, ou seja, na língua de chegada o termo
não tem aquela acepção em que foi usada a palavra na língua de partida
(martelo [golpe de capoeira] 8 martillo). A correspondência direta contudo nem sempre
é possível e, nesta circunstância, uma alternativa é a reprodução do termo
– empréstimo –, usando ou não um
recurso para destacar a palavra (grifo, aspas, notas, etc.). No texto
analisado, este procedimento foi empregado naqueles casos em que não haveria
possibilidade alguma de tradução literal ou de emprego de outra palavra de
sentido aproximado. A aproximação de sentidos é outra opção (ex: riscador de
milagres 8 ilustrador de milagros), porém, nem
sempre o resultado é satisfatório e a tradução torna-se assim inadequada
(escorão 8 acecho). Por fim, ocorre o erro quando
os sentidos do termo de origem e do termo traduzido são completamente
distintos (cafuringa 8 mezcla de indio y negro) não havendo
nenhuma possibilidade de correspondência. Tratando-se de línguas tão próximas como o português
e o espanhol, o erro e a tradução inadequada podem ser consequência do
contexto cultural mas também da semelhança entre termos, como demonstra o
emprego de birimbao e piña para
traduzir berimbau e pinha respectivamente. O compositor Noel Rosa já há muito tempo alertou
numa canção intitulada "Não tem tradução" (ou "Cinema
falado"): "Essa gente, hoje em dia,/ Que tem a mania/ Da exibição/
Não se lembra que o samba não tem tradução/ No idioma francês/ Tudo aquilo que
o malandro pronuncia/ Com voz macia/ È brasileiro: já passou de
português." O viés cultural que permeia obras como
as de Jorge Amado constitui, sem sombra de dúvida, uma barreira que dificulta
a tarefa de traduzir. Diante de palavras como ibiri, ganzá, caboclo talvez
tenhamos que nos render: não tem tradução! Afinal, estas são palavras que
também não são genuinamente portuguesas pois procedem do ioruba, do quimbundo
e do tupi respectivamente. Nossa língua as acolheu, incorporando-as ao
léxico: viraram brasileiras, já passaram de português! Notas |
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1 Dicionário Aurélio XXI (versão eletrônica)
2 Edição usada em português: Livraria Martins Editora, s.d. Todas as citações desta obra feitas neste estudo foram tomadas desta edição.
3 Edição usada em espanhol: Madrid / Buenos Aires: Alianza Editorial / Editorial Losada, 1981. Tradução de Lorenzo Varela.
4 Utilizou-se o Diccionario Enciclopédico Espasa 1. 7ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1992, para a pesquisa das palavras em espanhol.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos .Guia de ruas e
mistérios. 28ed. Rio de Janeiro: Record, 1980.
AUBERT, Francis Henrik.Modalidades de tradução: teoria e
resultados. In: TradTerm. São Paulo: Humanitas, 1º semestre de 1998, nº 5.