Mayra Prates
 


Na rota do letramento

Renato Barbieri
por Maria Antonieta Pereira


Renato Barbieri é cineasta, com formação em Psicologia pela PUC-SP. Autor dos documentários Atlântico negro - na rota dos Orixás, A invenção de Brasília, Terra de quilombo - espaços de liberdade, Malagrida, Félix Varela, Do outro lado da sua casa, dentre outros. Autor da vídeo-instalação A liga da língua. O longa metragem As vidas de Maria marca sua estréia na ficção.



Maria Antonieta Pereira - Quando pensamos nas relações Brasil/África, sempre as interpretamos como uma rua de mão única, a partir da vinda dos africanos para cá. Em Atlântico negro - na rota dos orixás, você desenvolve uma leitura em rede, que mostra o vai-e-vem das culturas, incessantemente atravessando o oceano. Com base em que evidências você chegou a essas conclusões?

Renato Barbieri - A primeira evidência foi a quase ausência de informações de qualidade sobre a diáspora africana para terras brasileiras. Essa percepção aconteceu comigo em 1988, por ocasião do centenário da Abolição. Então, para fazer um projeto sobre vínculos entre Brasil e África me dei conta de que nem o mapa da diáspora existia em publicações brasileiras, algo que, segundo penso, deveria fazer parte das cartilhas do ensino fundamental. Como é que um afro-descendente vai ter idéia de sua ancestralidade, para além da escravidão? Outro fato – grave – é que no imaginário brasileiro a história dos negros começa na escravidão, não há “o antes”.

Se adotarmos um outro ponto de vista, a história termina com a escravidão, e não o contrário, já que os africanos que foram escravizados foram cruelmente arrancados de uma vida enraizada em valores culturais africanos consistentes. De 1988 para cá, foram feitas diversas publicações de qualidade, alguns documentários importantes e quase nenhum filme de ficção. No entanto, o Brasil continua sem ter nenhum correspondente em terras africanas e as notícias da África nos chegam principalmente pela Europa. O documentário que fiz, junto com o historiador e roteirista Victor Leonardi, trouxe diversas informações que se mostraram relevantes, dada a receptividade que o filme vem tendo desde sua primeira exibição pública, em outubro de 1998, na abertura do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Mostramos no filme diversos vínculos profundos entre Brasil e África, no caso, com o Benim, um país cuja língua de trabalho é o francês, e do qual a maioria dos brasileiros nem tinha conhecimento. No Benim estão nossas raízes culturais de origem jêje e nagô. Por ocasião da montagem, fizemos uma computação gráfica com o mapa da diáspora, com o auxílio do grande africanista Alberto da Costa e Silva. Esse mapa continua ausente das cartilhas do ensino fundamental, dos livros didáticos do ensino médio e, até onde eu saiba, também dos livros universitários.

Ou seja, continuamos com uma grande lacuna de informações sobre a África. Algo me diz que essa lacuna é intencional, já que um indivíduo sem história é um indivíduo sem foco e, portanto, facilmente manipulável. E assim a África continua sendo, para a maioria, um continente que contém apenas mazelas, tais como fome, guerra e AIDS. Contudo, sabemos que essa não é toda a verdade.


Que tipo de pesquisa você desenvolveu para fazer o filme?

Nossa idéia foi estabelecer os vínculos entre Brasil e África a partir das religiões africano-brasileiras, principalmente o Candomblé, de culto aos Orixás, e o Tambor de Mina, de culto aos voduns (não confundir com vudu). Isso porque uma das teses do filme é que o vínculo de raiz mais forte entre Brasil e África continua sendo os terreiros (ou templos) das religiões africano-brasileiras, principalmente se olharmos a violência com que se deu o processo de aculturação, em alguns casos, e de deculturação, em outros. Para isso, seria preciso estabelecer um vínculo concreto entre brasileiros e africanos, e isso se deu, graças aos Orixás, pelo contato, através de mensagens veiculadas em vídeo, entre Pai-Euclides, de São Luis do Maranhão, e Avimandjé-non, da cidade de Uidá, no Benim. Outro vínculo importante que o filme aborda são os “retornados”: comunidades de descendentes de africanos que retornaram à África e que, por uma série de motivos, adotaram a identidade de “brasileiros”.


Poderíamos dizer que Atlântico negro significa o desejo de manter em diálogo entre culturas afins?

Sim, Atlântico negro faz uma ponte entre Brasil e África e manifesta claramente o desejo de intensificar esse diálogo.


Como foi a experiência de lidar com quatro línguas ao mesmo tempo (português, francês, fon e iorubá) num único filme?

A questão da língua é facilmente contornável, desde que você disponha de tradutores competentes. Tínhamos uma estrutura profissional que nos permitiu ultrapassar esse obstáculo. Na verdade, os assuntos que nos unem são muito mais fortes do que a diferença entre as línguas. A comunicação se deu num nível muito profundo.


Você acha que o audiovisual (cinema, TV, computador) pode ser um instrumento de educação das massas e da juventude na sociedade contemporânea?

Nossa equipe tem plena convicção disso. A televisão pode ser um lixo ou um luxo, depende do que você coloca dentro dela. Ela é um luxo na medida em que pode transportar o espectador no espaço e no tempo.


Em que medida os recursos audiovisuais são mais impactantes que o texto impresso, na formação de leitores e cidadãos?

O audiovisual tem seus potenciais, assim como o livro também tem os seus, inegáveis. A força do audiovisual pode estar na capacidade de transmitir conceitos de forma consistente, envolvendo simultaneamente os sistemas cognitivo, emocional e perceptual. Quando isso ocorre, pode dar uma grande potência à mensagem, para o bem ou para o mal. O audiovisual, a meu ver, tem uma capacidade maior de transmissão de conceitos e valores do que, por exemplo, de dados, pois, se eles forem excessivos, corre-se o risco de perder a eficácia na comunicação.


Considerando que o tema da manipulação/libertação sempre esteve presente em seus filmes, qual é sua posição a respeito da importância da alfabetização hoje?

Não basta mais saber ler e escrever para poder conhecer e interpretar o mundo em que vivemos. Hoje é preciso saber “ler” imagens e sons. A narrativa audiovisual, presente em todo tipo de tela (tv, cinema, internet etc.), é uma linguagem potente, tanto no sentido do aprendizado quanto da manipulação. Os meios de comunicação tendem a ser, cada vez mais, um poder central. Portanto, será preciso formar cidadãos capazes de pensar e de escolher, diante de um mundo cada vez mais virtual e que oferece múltiplas escolhas. Mas isso só vale para aqueles que aprenderem a pensar. Quem não souber pensar, tende a virar estatística. As escolas têm a missão de ensinar a pesquisar e a pensar, e não mais tanto a função de lugar de transmissão do conhecimento, mesmo porque, hoje, o conhecimento está em toda parte.


Numa palestra na FAE/UFMG (2007), você afirmou que “ensinar o subtexto e o contexto me parece hoje uma missão absolutamente fundamental para a formação da consciência”. Em seu trabalho cinematográfico essas idéias estão presentes?

Exato, eu acredito na consciência e acredito que ela liberta. Saber o contexto é ter uma perspectiva histórica. Quem não souber sua história vai ficar perdido em um mundo cuja velocidade só tende a aumentar. Quem souber o que quer, vai também saber aproveitar melhor seu tempo, um de nossos bens mais preciosos e vitais. A oferta de múltiplas escolhas, mesmo que apenas virtualmente, no plano do desejo, tende a gerar foco ou diluição. Para ter foco, é preciso conhecer o próprio desejo, ter consciência dele no mundo. A diferença entre desejo e delírio é que o desejo é realizável. Foco e desejo tendem a andar juntos, assim como diluição e delírio. O contexto situa o indivíduo no mundo perceptível.

Nesse sentido, ter consciência da ancestralidade é uma das chaves para estar no mundo. Aquela visão meio idílica de que, no Brasil, estamos “livres de tradições”, “que deste patamar cultural podemos partir para onde quisermos”, é bem relativo. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo e com índices alarmantes de corrupção. Está na hora de descobrirmos que cada um de nós tem uma história ancestral e ela precisa de algum modo ser resgatada, sob pena de sermos “profundos como um pires” e a vida passar a valer muito pouco, como de fato ocorre em nosso país.

Acho que a orientação vocacional [vocação = chamamento], que é uma matéria da Psicologia que ajuda o indivíduo a descobrir seu desejo profundo de atuar no mundo, também está nessa ordem, de ensinar pessoas a pensarem seu próprio destino. Lamentavelmente, estudantes do ensino médio ainda fazem suas escolhas na base da adivinhação, o que é um desperdício imensurável de potências e uma fonte de frustração e infelicidade.

O subtexto está na ordem do inconsciente, do que é dito de forma não expressa. Diz respeito ao desejo do mundo, ao desejo do outro. A publicidade e o jornalismo trabalham muito bem o subtexto, e assim orientam tendências e atitudes, por vezes, de forma subliminar. Não saber “ler” o subtexto é crer apenas no manifesto, é não perceber que a realidade possui camadas, algumas aparentes, e outras ocultas, subjacentes. Essas camadas ocultas podem esconder tesouros do conhecimento, podem articular manipulações, podem reforçar preconceitos, ou seja, o subtexto pode conter do melhor ao pior e, tanto em um caso como em outro, vale a pena acessá-lo.

O mito da “verdade” na notícia é um dos cânones sagrados do jornalismo. No entanto, sabemos que os veículos de comunicação pertencem algumas vezes a políticos, outras vezes a poderosas corporações, com diversos interesses. E a notícia, por vezes, atende, orienta ou favorece esses interesses. Por exemplo, nos períodos eleitorais, é comum as pessoas repetirem literalmente alguns argumentos de campanhas políticas na defesa ou no ataque a determinado candidato. Quem não perceber o subtexto da informação estará sujeito a ser papagaio de interesse de outrem, e isso não está na ordem da cidadania. A conquista da cidadania necessita de consciência, e não de repetição inconsciente. O subtexto está presente em todo texto (seja ele escrito, verbal, radiofônico, audiovisual) e em sua transmissão. Ele pode gerar tanto consciência como inconsciência, e isso depende apenas do “leitor”. A meu ver, a missão da escola é formar “leitores”. Até que ponto ela está fazendo isso?

Belo Horizonte, 15 de setembro de 2007.