txt [leituras transdisciplinares de telas e textos
Renato Barbosa de Almeida
 

 

Armadilhas da globalização: o fenômeno Harry Potter(1)

Diléa Pires

Professora da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte- MG. dileapires@hotmail.com


Resumo

O presente artigo tem como tema a formação da subjetividade pelos caminhos da leitura de telatextos. Evidencia a importância do oferecimento de possibilidades de interação entre estudantes e computador como caminho para a formação do cidadão planetário da era globalizada, sob o pressuposto de que é necessária a democratização do acesso à informática. Desenvolve uma análise bibliográfica para alcançar o objetivo proposto e conclui que os benefícios de uma educação inovadora, que prevê a leitura de telatexto como estratégia de formação humana, são vários e com qualidades que podem superar as possíveis restrições a esse caminho de formação da subjetividade.

Palavras-chave: literatura infanto-juvenil, globalização, Teoria Semiolingüística, Análise do Discurso.


Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar a construção do sujeito na obra literária Harry Potter de J. K. Rowling, utilizando como arcabouço teórico a Teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau e as contribuições de Dominique Maingueneau que contextualizam lingüisticamente a obra literária. O estudo tem a pretensão de se constituir em uma pesquisa bibliográfica, ou seja, estudo de obras, e em uma aplicação prática da Teoria Semiolingüística ao corpus, privilegiando essencialmente os mecanismos discursivos que evidenciam os sujeitos na obra do referido autor.

A importância desta pesquisa textual, intertextual e situacional voltada para esse campo literário liga-se não só a seu alcance social - especialmente junto ao grupo leitor - mas também ao tratamento, em profundidade, de uma tipologia literária, que tem atraído vários pesquisadores. Contudo, quando eles o fazem, geralmente aprofundam suas pesquisas em questões de marketing, visando predominantemente a apresentar análises sociológicas que, em geral, contemplam fatores extra-textuais que objetivam, em primeira instância, delinear o porquê desses livros representarem o segundo fenômeno de vendas do mundo globalizado, depois da Bíblia, o primeiro livro mais vendido no mundo. Nesse ponto, é bom lembrar que estratégias de marketing não são objeto deste estudo. Aspectos referentes ao corpus, tais como a linguagem enquanto arte, as relações entre literatura e produção/interpretação/interação, o contrato de comunicação e os sujeitos da linguagem/os papéis linguageiros raramente são contemplados em pesquisas do referido corpus. São, justamente, esses aspectos "esquecidos", que pretendemos enfatizar.

Iniciamos nosso trabalho partindo do pressuposto de que é possível estudar a linguagem levando-se em conta sua dimensão psicossocial. Dito de outra forma, uma teoria do discurso não pode prescindir da definição dos sujeitos do ato da linguagem. Podemos, então, afirmar que todo ato de linguagem é o produto da ação de seres psicossociais que são testemunhas, mais ou menos conscientes, de práticas e de representações imaginárias de sua comunidade. Sendo assim, o ato de linguagem não é totalmente consciente e é subsumido por um certo número de rituais socio-linguageiros, em que se combinam o dizer e o fazer. O fazer é o espaço da instância situacional que se define pelo lugar que ocupam os responsáveis desse ato (parceiros). O dizer é o espaço da instância discursiva que se define como uma encenação da qual participam seres de fala (protagonistas). Esse conjunto de hipóteses, Charadeau define no quadro teórico que é representado pela figura [1].

Com base na figura 1, podemos dizer que todo ato de linguagem é um processo de troca linguageira regida por um Contrato de Comunicação, que se realiza em dois níveis: o nível situacional ou espaço externo e o nível comunicacional ou espaço interno das trocas linguageiras.

No espaço externo, estão o sujeito comunicante (EUc), parceiro que tem a iniciativa do processo da produção, dotado de uma identidade e de um estatuto, e o sujeito interpretante (TUi), também dotado de identidade e estatuto. O TUi é o responsável pelo processo de interpretação.

No espaço interno estão os seres de fala da enunciação do dizer: EUe e TUd. Esses seres de fala assumem diferentes papéis que lhes são atribuídos pelos dois parceiros do ato da linguagem (EUc e TUi), em função de sua relação contratual. Os papéis são assim concebidos como comportamentos linguageiros correspondentes aos três componentes da relação contratual: o psicossocial, o comunicacional e o interacional, que representam índices semiológicos da encenação do dizer.


Aplicando a teoria exposta à obra em análise, podemos afirmar que a narrativa literária Harry Potter, dita "infanto-juvenil", constitui-se mediada por um contrato de comunicação, que se realiza em dois níveis: no nível situacional e no nível comunicacional.

Nessa narrativa, o nível situacional dá lugar a um contrato de troca que se define, por um lado, pelas restrições sociais que limitam e regulam a produção dos discursos e, por outro lado, pela finalidade interacional de J. K. Rowling, que responde às seguintes perguntas na qualidade de autora:


- Eu, Rowling, me encontro aqui para dizer o quê para o(s) meu(s) leitor(es)?
- Que papéis sociais eu e o(s) meu(s) leitor(es) representamos aqui?


Antes de procedermos às respostas aos questionamentos anteriores, vejamos, por meio da figura [2], uma tentativa de aplicação do quadro teórico de Charaudeau ao livro em estudo.

FIGURA [2]:


A observação da figura leva-nos a perceber que o quadro do contrato comunicacional do discurso ficcional de Harry Potterefetiva e, ao mesmo tempo, condiciona sua enunciação. Desse modo, o que o enunciador diz e como diz é orientado pela referência à situação em que o discurso se realiza e é, em princípio, dirigido a um receptor, que antecede a enunciação como uma ficção idealizada pela autora, que se configura textualmente por meio de marcas lingüísticas. Essas marcas linguísticas, por sua vez, projetam uma imagem de leitor, ou seja, um sujeito-destinatário para sua obra.


O enunciador, no esforço de alcançar esse receptor potencial, expressa-se por meio de atos ilocutórios e perlocutórios, na escolha do vocabulário e da sintaxe, tais como entonação e polifonia, e de muitos outros signos verbais, assim como na referência, na proposição e na predicação da enunciação. Desse modo, a situação e o contexto formam um quadro bem definido, pelo qual se produz a enunciação, como relação dialógica entre esses dois parceiros, o que é o pressuposto necessário para que ocontrato de comunicação se efetive.
Feitas essas considerações, propomo-nos a responder à primeira questão: - Eu, Rowling, estou aqui para falar como, para representar qual papel linguageiro?


O exposto até o momento demonstra a dependência do contrato de fala (discursivo) em relação ao contrato situacional. O "como falar" depende dos comportamentos linguageiros esperados e engendrados pela finalidade do ato de comunicação (projeto de influência) e, dessa forma, definido no quadro comunicacional. Rowling se propõe, assim, a ser uma protagonista do discurso e concebe seu texto na voz de um terceiro, Harry Potter, narrador participante do percurso literário como personagem principal.


Passemos, por conseguinte, ao estudo do nível discursivo do corpus, chamado, também, de mundo de palavra, por ser o nível onde se produz a linguagem e se efetiva o discurso.


É lícito afirmar que a autora (EUc) desloca-se do nível situacional (contexto histórico-social amplo e imediato) para o nível comunicacional (contexto da palavra oral ou escrita), constituindo-se em um ser de fala (EUe). Esse ser de fala (EUe), ao efetivar o seu projeto de fala, institui o seu outro (TUd).

Percebemos, assim, que o ritual sócio-linguageiro se encontra diretamente relacionado ao contrato de fala, constituído por um conjunto de restrições que codificam as práticas sócio-linguageiras e que resultam das intenções de produção e interpretação (circunstâncias de produção e co-produção do discurso) do ato de linguagem. Por conseguinte, enfatizamos que o contrato de fala estabelece um estatuto sócio-linguageiro diferenciado, em que cada um dos sujeitos de linguagem subdetermina sua fala. Em se tratando do gênero literário, Charaudeau propõe trocar o sintagma projeto de fala por projeto de escritura, nomeando o sujeito-comunicante como sujeito-escritor.


A escritora, lado-a-lado com a mise-en-scène de seu ato de escritura, projeta o TUd, sujeito-leitor-cultivado, capacitando-o com uma competência para reconhecer os signos culturais que atravessam sua época. Esses signos perpassam toda a sua obra e se fazem presentes até numa pequena parte de um de seus escritos. Podemos citar, como um exemplo marcante de captação na obra, a divisão dos alunos em grupinhos — os fortes e os fracos — responsável pelo bullying, prática que se encontra presente na grande maioria das escolas americanas e inglesas, e que vem sendo bastante contemplada nos filmes dos referidos países.


Continuando, podemos considerar que, por meio das marcas lingüísticas e das estratégias textuais, é possível especificar o TUd instituído no corpus Harry Potter. Acreditamos tratar-se de crianças/jovens em idade escolar (ensino fundamental e médio), de classes sociais diversas, que tenham acesso a veículos de informação, que percebam atos de discriminação social, racial e/ou pessoal e se posicionem perante eles. O livro destina-se também aos sujeitos apaixonados pela mágica, pelas aventuras, por grandes desafios e pelo rompimento com o cotidiano: uma escola diferente, dotada de um corpo discente e de disciplinas totalmente fora do convencional, é um estimulante convite para a leitura.

Outro tópico que precisa ser salientado é o crescimento biológico e psicológico de Potter e de seus companheiros que, a cada novo livro, evoluem, adquirindo conseqüentemente as atitudes, os gostos e as habilidades da idade biológica correspondente. As personagens vão amadurecendo na trajetória da escritura e da leitura.


Tudo isso, sem mencionar, como dissemos a priori, a avalanche de campanhas publicitárias - outdoors e todo e qualquer tipo de mídia, grife etc. que acompanham o lançamento de cada um dos livros e/ou filmes da série. Um fato curioso que vale a pena ressaltar é o destaque especial que a obra obtém nas livrarias de todo o mundo globalizado. Normalmente, os livros são colocados na entrada das livrarias, dentro de um enorme caldeirão de bruxa, ao lado de uma vassoura que, na altura, quase compete com o teto da livraria. A principal responsável por toda essa publicidade é a multinacional Coca-Cola, que comprou a produção da autora a partir do sucesso do seu primeiro livro, com contrato de produção em série anual. Sendo assim, embora o mundo de palavras continue seu percurso em direção ao TUd, imaginado pelo EUe, o mundo situacional ganha um forte e inabalável EUc, que sugere, já no segundo livro, diversificados TUd(S).

Resumé

Ce travail a comme objectif de faire une analyse du discours de la oeuvre Harry Potter, pour identifier et situer las caracteristiques socio-psychique-culturelles, qui ont géré des effets du sens présents dans la toile textuelle. Ils ont utilisé comme principal théorie, mais pas non unique, la Théorie Semiolinguistique de l'écrivain Patrick Charaudeau. Cet analyse vise estamper le Contrat de Communication da oeuvre et les sujets qu'y se constituent. Il recherche, cependant, montrer que le énonciateur, au créer une perspective hétérogène, entrecroise des plusieurs imaginaires, configurant, de cette forme, un discours ethniquemant multiple. Afin de achever, il a la intention de démonstrer que ces divers échos de cultures et langages sont très importants, car ils ont fait de Harry Potter un grandiose phénomène mis en vente dans le monde globel.