A literatura, a crítica, a cena cultural: um diálogo com as novas tecnologias
Ângela Maria Bedeschi Faria
Graduada em Letras e Mestre em Estudos Literários pela FALE/UFMG.
Resumo
Este artigo reflete sobre alguns aspectos decorrentes das transformações ocorridas na esfera literária a partir do descentramento do discurso hegemônico; aborda a prática intertextual, a ampliação do conceito de texto e a apropriação das novas tecnologias.
Palavras-chave:
literatura, intertextualidade, novas tecnologias.
As transformações ocorridas no âmbito das Ciências Humanas, no século XX, decorrentes da
descoberta do inconsciente, do descentramento do sujeito, do apagamento da noção de origem e de
autoria e da quebra de hierarquia de valores resultaram na crise da epistemologia tradicional.
Os chamados discursos das minorias, tidos como marginais, puderam, a partir de então, garantir
seu espaço. Nesse panorama de tensão e diluição de fronteiras, fez-se imperativa a revisão dos
princípios filosóficos, dos paradigmas relativos ao ensino das ciências, da arte, da literatura
e da crítica. No debate entabulado em torno dessas questões, ganha destaque a atitude inquieta
de pensadores como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault,
Jean-François Lyotard, Roland Barthes e outros, que ensejaram a captura de contradições nos
sistemas já instituídos, investindo contra a ordem do logos, estruturada em pares
opositivos, e do sentido tomado como verdade.
A quebra dos limites dos campos disciplinares e o fomento de um trânsito permanente entre a
filosofia, as artes e as ciências permitiram a relativização de valores. Nos diversos segmentos
da cultura, o estabelecimento dessas relações apontam para novas direções do saber, convocando,
no caso específico da literatura, o escritor e o leitor a lidar de outras formas com os textos
e as imagens. A essa altura, visualiza-se a probabilidade de se incorrer na apropriação e na recriação
de objetos artísticos em virtude da ampliação do conceito de texto. Tal operação os leva a
pensar no percurso labiríntico da literatura, o qual evoca a imagem do conto borgiano
"A biblioteca de Babel" (1).
O espaço dessa biblioteca, configurado em galerias, pressupunha uma organização que se estendia das estantes
à forma como nelas os livros se encontravam dispostos. Porém, não seriam apenas esses aspectos a
determiná-la. O narrador indicava medidas exatas ao esquadrinhar aquele quadrilátero,
tentando convencer o leitor de tal possibilidade. A propósito, sua insistência resvalava para
a ironia quando, por meio de suas justificativas, suscitava dúvidas no leitor, as quais o
conduziriam ao questionamento da suposta ordem de um espaço que mais se assemelhava a um
labirinto.
Na biblioteca instaura-se a disseminação de sentidos, a começar pelo espaço da obra, do
texto propriamente dito, aberto à reescrita permanente. Onde estaria a pretensa ordem nesse vigoroso
fluxo de leituras e apropriações? Metáforas, citações, paródia, rearranjo de fragmentos,
tradução, simulacro convertendo-se em diferença — transgressão que enseja uma antropofagia
literária. O improviso ocorre nas fendas, nos substratos, nas lacunas deixadas no tecido do
texto, portanto inacabado, promissor de novos significados a textos já conhecidos. Se, num livro,
opera-se a multiplicidade de conteúdos e conceitos de teores literário, filológico, filosófico,
científico, histórico e sócio-cultural, assim como de temas relacionados à memória, à alteridade,
e à tradição, como lhe precisar um gênero e um lugar seguro? Nesse sentido, não há mais o
livro único ou o livro-imagem do mundo, representado em formas eternas, mas sim o livro-rizoma.
O conceito rizoma, adotado por Gilles Deleuze (2), alude à dispersão de
sentidos, ao sistema descentrado, não representativo, não configurado em estruturas estanques,
mas numa relação transgressiva, feita de conexões e linhas de fuga que entretecem uma rede tal
qual a concebe Pierre Lévy: “A rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos
centros que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo
ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas (...)” (3).
No tocante à literatura, é sabido que o inter-relacionamento de conteúdos de diferentes épocas
não é uma prática nova, tendo em vista sua ocorrência entre as obras universais. O escritor,
pelas vias de alusões a outros textos, citações e paródias, concedia ao leitor seu percurso de
leitura como bem o demonstrou Machado de Assis. O que acontece no panorama atual é que a
intertextualidade se converteu em prática e a retomada de textos alheios, destituída da
preocupação de fidelidade, confirma o anulamento da dicotomia original/cópia, de pares opositivos,
legitimando o simulacro como produção da diferença. A propósito dessa operação,
configura-se a metáfora do canibalismo, uma vez que se efetiva, durante a construção do objeto
artístico, a devoração do saber do outro. De acordo com a inferência de alguns teóricos, essa
forma de lidar com a literatura, a crítica e a tradução permite um novo olhar sobre a tradição,
“livre para devorar as fontes” (4) e para aniquilar com a dependência em relação ao cânone.
Nesse sentido, a partir das transformações ocorridas no contexto literário, cabe-nos refletir sobre dois aspectos:
para onde e como se direcionou a crítica, desprovida dos pressupostos institucionalizados.
A princípio, reconhece-se que a crise instituída no âmbito das Ciências Humanas é concernente
aos procedimentos culturais e ao comportamento da sociedade, então tensionada por inúmeros
questionamentos.
Relativamente à nova concepção de texto e à possibilidade de sua reescrita, o escritor tem
refletido sobre a própria linguagem, o que implica uma autocrítica. Se antes o crítico se pautava
por critérios que lhe facultavam uma leitura baseada em normas, hoje seu vetor deve apontar para
outras direções. Há que se voltar para a obra, ciente da necessidade de dialogar com outros textos,
adotando a ousadia em detrimento da atitude de subserviência perante a criação artística,
operando “uma crítica que, dando-se a ler como texto, [dê] também a ler outro texto,
de modo mais novo e mais rico do que aquele [que] líamos antes; que fosse só linguagem,
conservando uma função de metalinguagem, que inventasse, no outro texto, novos valores”
(5).
Retomando o conto borgiano, acima mencionado, verifica-se que, por meio da ficção, Borges
questionou os paradigmas culturais, os modelos estabelecidos, as verdades absolutas, a ordem e
os valores eternos prognosticados pela epistemologia ocidental. Deu-nos a ver sua postura
crítica frente às narrativas que tentaram representar o real como se pudessem abarcá-lo com o
estabelecimento de uma relação de causa e efeito. Logo, revelou-se antes pelo contingente, pelo
transitório, pela transgressão, pelo fragmento, sugerindo ao leitor, por meio de caminhos
labirínticos (invenções, dúvidas), a percepção do caos, que se irrompe na biblioteca — o suposto
espaço da ordem./font>
Quanto à cena cultural, o constante deslocamento de povos pós-colonizados para os países da
língua que os colonizou e o cruzamento de saberes e bens simbólicos (língua, tradição, conhecimentos,
seitas etc.) favoreceram a troca de valores, a construção de um novo sentido de nação e de si
próprios, decorrentes do contato com a alteridade. Na busca de interação, o atrito, as
negociações e o embaralhamento de identidades resultaram em novas encenações entre os sujeitos.
Esse percurso, que se desenha num emaranhado móvel, à feição de uma rede febricitante, pode ser
sentido nos dizeres de Arjun Appadurai: “los grupos migran, se reagrupan en nuevos lugares,
reconstruyen sus historias y reconfiguran sus proyetos étnicos, lo etno de la etnografia adquire
una calidad resbaladiza y no localizada”, desenhando uma nova paisagem de identidades de
grupo que “desplegados por todo el mundo dejaron de estar firmemente amarrados a un territorio
y circunscriptos a ciertos limites espaciales” (6).
Movência em rede, multiplicidade de sentidos, interseções, cruzamentos de concepções,
linguagens, saberes e informações mediadas pelas novas tecnologias, traduzem um mundo em
transmutação. Diante desses pressupostos, tanto o escritor quanto o crítico literário enfrentam
um desafio no tocante à mudança de parâmetros na esfera literária. Torna-se relevante a
investigação de como a mídia impõe novas codificações e procedimentos à cultura literária,
tendo em vista a conexão do texto com a imagem e a sonoridade. Conforme acentua Lévy “a
cibercultura faz emergir uma nova forma e maneira de agir. O texto dobra-se, redobra-se,
divide-se e volta a colar-se pelas pontas e fragmentos: transmuta-se em hipertexto, e os
hipertextos conectam-se para formar o plano hipertextual.” (7)
Transformar o texto em um espetáculo já se tornou uma prática, que se viabiliza sob a forma de
eventos literários, entrevistas, shows, poesias sonoras, cerimônias de premiação, peças teatrais
e outros.
Lévy ainda afirma que em nossa era das mídias eletrônicas, os sistemas culturais têm
múltiplos centros de normatização e escalas de valores diversificados. Essa presença é
legitimada por grandes instituições culturais: o sistema educacional vigente, que não lida
mais exclusivamente com produtos da alta literatura, e as novas tecnologias, que têm como alvo
um público heterogêneo. Com o fenômeno da digitalização e a interiorização da mídia na percepção
humana, os recursos ampliam-se. Assim, ele ressalta:
O hipertexto ou a multimídia interativa adequam-se particularmente aos usos educativos. É bem
conhecido o papel fundamental do envolvimento pessoal do aluno no processo de ensino-aprendizagem.
Quanto mais ativamente uma pessoa participar da aquisição de um conhecimento, mais ela irá
integrar-se e reter aquilo que aprender. Ora, a multimídia interativa, graças à sua dimensão
reticular ou não linear, favorece uma atitude exploratória, ou mesmo lúdica, face ao material a
ser assimilado. É, portanto, um instrumento bem adaptado a uma pedagogia ativa.
O leitor, num lapso de segundo, vê-se diante de uma tela que lhe faculta o acesso a um
universo diversificado de conteúdos, consubstanciado de propagandas, serviços, notícias,
produções artísticas, chats, jogos virtuais, ensino à distância e outros. O contato com
grupos de diferentes nacionalidades e culturas viabiliza parcerias e trocas de experiências.
Cientes da vital importância da informação em nosso mundo, a apropriação das novas tecnologias
tornou-se um recurso a mais para a aquisição de conhecimento, o que não implica a invalidação
das formas tradicionais no processo de aprendizagem. Os recursos já disponíveis como o CD-ROM,
o DVD, o scanner, o pen drive, a câmera digital e outros suportes diversificam as possibilidades
de captação do saber, tornando mais dinâmico o nosso viver.
Nesse sentido, a partir dessa avalanche de textos e imagens, não nos compete apenas a mera seleção
de conteúdos, tendo em vista a superfluidez já instaurada no ciberespaço. Cabe-nos, portanto,
atentar para a perda de discernimento decorrente da velocidade de informações, como nos adverte
Beatriz Sarlo em sua obra Cenas da vida pós-moderna. O desenvolvimento da capacidade crítica e
da lucidez perante uma nova mentalidade que se forma são operadores indispensáveis nessa
construção.
Resumen
Esto artículo reflexiona acerca de algunos aspectos oriundos de las transformaciones ocurridas en la esfera literaria, a partir de la descentralización del discurso hegemónico; aborda la práctica intertextual; la ampliación del concepto del texto y la apropiación de las nuevas tecnologías.
Palabras-clave:
literatura, intertextualidad, nuevas tecnologías