Ilustração Rubens Estevão
 

 

A luneta mágica da tradição cultural

Maria Antonieta Pereira

Maria Antonieta Pereira é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras/UFMG. Pós-doutora pela Universidad de Buenos Aires. Autora de vários livros e artigos sobre telas, textos e educação. Pesquisa atual: Tecnologias intelectuais da leitura. Coordenadora do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto.


MACEDO, Joaquim Manuel de. A luneta mágica. São Paulo: Iluminuras, 1997.

Para a grande maioria dos leitores brasileiros, Joaquim Manuel de Macedo é apenas o autor de A moreninha, romance que durante décadas teria atendido ao nosso pendor para o dramalhão e o sentimentalismo barato. Sob a alcunha de “romancista de donzelas”, Macedo integra a história da ficção nacional como autor de uma literatura de segunda categoria, mesmo quando ela significa a experimentação de um novo gênero entre nós. Contudo, sua obra A luneta mágica permite retomar uma discussão já proposta por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira e que, indubitavelmente, também contribuiu para a formação do gosto de um público leitor no país. Nesse caso, seria necessário tomar de empréstimo as lunetas mágicas de Macedo para repensar, à luz da crítica contemporânea, o papel de sua obra no cenário cultural brasileiro, pois consideramos que ele ultrapassa, pelo menos no romance em pauta, os papéis de conversador e conservador a ele atribuídos por Candido.

Ao explorar um tempo linear e a organização do texto em partes simétricas, A luneta mágica constrói-se de forma simples: o narrador apresenta as personagens uma a uma, a começar por si próprio, e desenvolve um relato direto e seqüencial. Contudo, por mostrar-se como um ingênuo míope com o significativo nome de Simplício, o personagem imediatamente introduz-se como nota dissonante na estrutura da narrativa. O procedimento irônico é reforçado pela denúncia da corrupção dos laços familiares e das estruturas políticas do Segundo Império, quando são apontados, como fenômenos de natureza idêntica, tanto as mazelas do sistema político-administrativo do Brasil quanto a família que controla as rendas e o futuro de Simplício. Assim, seu irmão Américo, a prima Anica e tia Domingas encenam na micro-estrutura familiar o mesmo comportamento de estadistas, ministros, polícia, guarda nacional e justiça pública, comparados por Simplício a grilos, cupins, aranhas e ratos empenhados na tarefa de dilapidar o patrimônio nacional e atravancar a máquina do Estado.

Uma questão a se observar é que, se muitas dessas críticas são realizadas numa linguagem cotidiana ou exageradamente trágica, o narrador também utiliza outros recursos para desenvolver seu relato, garantindo, ao mesmo tempo, a atenção do leitor da época e a experimentação de novos processos discursivos. O trecho a seguir é um exemplo disso: “Essas três afeições, essas três únicas flores do jardim do meu coração murcharam para sempre, e o meu seio ficou deserto e noite.” Temos aí, por um lado, adjetivações e reiterações excessivas, além de chavões melodramáticos cujo objetivo seria corresponder ao gosto do leitor mediano do século passado. Por outro lado, a frase termina com um súbito “ficou deserto e noite”, que ressalta o uso pouco comum desse verbo nesse tipo de construção e, simultaneamente, produz uma relação inusitada entre ele e seus complementos, constituídos por substantivos com função adjetiva. O fragmento acima apresenta também a recorrência do número três o qual, em todas as antigas civilizações, constituiu um símbolo de perfeição. A freqüente utilização desse signo ancestral, ao longo do romance, aponta como a leitura do mundo realizada pelo narrador deixa de ser ingênua, sob influência de uma perspectiva mágica e cabalística.

Convidado a participar de um júri, um narrador simplício descobre muito surpreso a respeito de si mesmo que, contra a opinião geral e familiar, era dotado de senso comum. Uma convocação externa provoca no herói o antagonismo interno necessário ao desenvolvimento do enredo e à aceitação da oferta de Reis no sentido de consultar um armênio, especialista em lentes. As artes cabalísticas do armênio constroem lunetas mágicas, que lhe permitem ver o mundo e, após três minutos de contemplação, conhecer os segredos de qualquer ser. A partir de então, o narrador perderá pouco a pouco sua inocência, fustigado igualmente pela visão do mal e pela visão do bem, já que ambas o submetem a desgosto e engano.

A súbita mudança de quase cego a visionário, ao invés de melhorar a vida de Simplício, traz-lhe mais dilemas e aprofunda sua solidão. Se antes seu isolamento era devido às dificuldades visuais, quando passa a perceber os outros para além das aparências, depara-se com tantas vilanias que rejeita todos os homens e é por eles rejeitado. De forma semelhante, as lentes do bem lhe proporcionam uma mirada paradisíaca que, por cegá-lo e desprotegê-lo frente aos demais personagens, transforma-o em ridículo objeto de exploração, ampliando seu ostracismo e levando-o ao paradoxo de desejar a morte. Antes de tornar o mundo visível para o narrador, as lunetas tornam o narrador visível para o mundo que, logo após reconhecê-lo, volta a abandoná-lo.

Contudo, embora pareça estimulá-las, a magia das lentes na verdade critica as visões do bem e do mal enquanto elementos diametralmente opostos, excludentes e caricaturais, mostrando como um personagem sem perspicácia se transforma em sagaz observador do mundo. A perda da miopia física e moral é resultado de um ritual de iniciação proposto pelo armênio e ao qual não faltam exorcismos e invocações dos anjos. Após as provas de praxe, nosso herói ascende à vida aspirada pelo leitor burguês do Brasil imperial. A experiência cabalístico-estética encerra-se com um ensinamento metalingüístico do armênio que se auto-intitula Lição e nomeia Simplício como o Exemplo - aquele que partiu do senso comum e, depois de tantas peripécias, logrou reunir o bem e o mal adquirindo a desejada autonomia por meio das lunetas do bom senso.

Ao valorizar fatos e tipos cotidianos da capital do Segundo Império, a obra de Macedo, além de obter êxito perante o leitor do século XIX, também fascina o de nossos dias. Como aponta Teresa Cabañas, em sua apresentação de A luneta mágica, o melodrama da narrativa macediana permanece “placidamente instalado na telenovela” em A moreninha. Crônica de costumes, documentário de uma época, ou simples dramalhão numa perspectiva mais estreita de literatura, o fato é que a luneta dos oitocentos viu o futuro — e nele, nós, seus leitores — como uma nuvem sombria cortada por um raio de luz. Se aos olhos do escritor poderíamos reunir o bem e o mal, talvez também sejamos capazes de ler sua obra como elemento importante da tradição cultural brasileira. Do contrário, a ironia do personagem Reis poderia nos dizer:
“— Meu amigo, o senhor está na cidade e não vê as casas.”