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Ilustração Aroldo Dias Lacerda

 

A descoberta


Elias Mol

Elias Mol é estudante da Belas Artes, com especialização em Artes gráficas em andamento. Artista plástico e ilustrador, colabora com a Revista txt desde 2006.


Devo confessar, preliminarmente, que eu não sei
o que é belo e nem sei o que é arte.

Mário de Andrade

Uma sombra. Nadamais. Poderia ser um pássaro, uma harpa, um fogo, um vício, qualquer coisa. Mas se escolheu como sombra. Impôs-se com inadmoestável convicção, era agora uma sombra. Uma vontade que sem querer-se apoderou de toda uma filosofia precária mal resolvida, uma espécie de ilusão, maia; aliás, meticulosamente construída para suportar o peso todo do mundo certo. Ou antes, construída para nada, como objeto puro de contemplação estética. Objeto torpe. Homo ludens, homo agens. Um processo que não se inicia nem termina. Um processo eternamente sempre. Mas agora: sombra. Tchekov. A descoberta. O vazio que se instaura. Abyssus regnat in nidum aquilarum. Quem não for águia não deve fazer seu ninho sobre o abismo. Nietzschedamente. O frio, não um, a sombra, não ela. O indistinguível sopro de razão na face de dionísio. A baforada do diabo. Mas quem acredita no diabo? Em carne viva, o nu ad infinitum. Precisava mais que palavras. Visceralidade. Verocilidade. Vociferare.

Um cismo – repetidamente – maneirismo. Sinceridade perdida, tanto melhor; ah, a desobrigação de ser sincero e todas as vaidades. E poder colocar máscaras, moldes de gesso e argila. Branco e barro. Misturemos. Dum uiuimus, uiuamus. Horácio. A via indelével, irreversível, o gesto. Twombly. Multum. Repetidamente. Viuamus. Sem se repetir. Há mudança, há guerra, há mas não se permanece; oroboros come a própria cauda, mas, espera: há duas cabeças! Uma devora o passado, a outra o futuro. E o que sobra, essa sobra, essa indefinível fronteira, o presente. E o presente avança para as entranhas do monstro. Olhaste para mim, abismo? Flertarei. Libidinoso. Jocoso até. Espírito de chumbo. Sê forte. Sê forte. Arremessa a mediocridade e abraça o vulgar – é dele a matéria-prima desta vida.

(Carmina Burana toca ao fundo. Fortuna. Fortuna.) Mas, em si, as coisas não são tão trágicas. A tormenta, febril, que se arrasta de enfermidades doentias, é tão somente uma tormenta, nada mais. Tantum. E um mundo se inicia, onde menos se espera. Esperamos um mundo? Vendo azul. Féboba. Os bobos governam o mundo. O melhor dos mundos. Assim falou Pangloss. Mas será preciso cuidar do jardim. (A música cessa, nem ela nem outro sonoplástico.)

A curva, manifesto, tem hora. Ou isso ou milhares de outros sins. A curva, não reta não finalidade, a curva acurva. Um rito, traço mágico que traz a caça, fazer-se desfazer que traz à vida a possibilidade de rascunho enquanto tempus fugit. A consciência de si próprio num repente desavisado: Por que aqui e não lá? Por que há? Mas porquês são finalidades e finalidades, que importam! Pessoa. "Se ao menos chovesse menos." E, de sobreaviso, fique registrado: nada de perguntas.

Avidamente prosseguindo sem caminho, erro e não erro. O acerto torto de linhas tortas de mensagens ininteligíveis... queisso, immo vero, não há mensagem. A utopia segue com seu rebanho rumo ao açougue. Uma fila que começa numa parede – o último não vê o extremo oposto – a parede – só vê a fila. E marcha-se para trás da moita, onde há um menino:

_ o que fazes aqui?

_ vejo cegos e me procuram.

_ quem te procura?

_ os cegos que vi.

_ Tolo, sai dessa moita, não são cegos?

_ eu menti.

_ então vêem?

_ não saberia, tenho os olhos fechados.

IN MEAS AVRES MENDACIVM CARMINEM MVSSITAT.

O espelho quebrado, não era espelho, mas a imagem basta e permanece. Fractal em lenta e definitiva – inexorável – quebra. Quebramento. Gerúndio. Uma cadeia simbólica, a corrente que arrasta pesados grilhões e com eles inúmeros significados até a destruição. Delere. Deseja deletar este arquivo? Sim Não Cancelar. Sim. Sim. Sim. Mas há o ressurgimento, não a renascença, não ao renascimento, não, mil vezes não. O renascer em fogo mesmo que destruíra tudo antes. A negação em afirmação. A cinza em fogo. Mefisto em Fausto pleno. Tempestade e ímpeto. Mas a sombra se espalha. Apaga a fênix, censura as cabeças da hidra, deusa-mãe, aborta o jesus menino no ventre cheio de graça e placenta. Espuma.

"Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso." Heráclito, o Obscuro. Obscurecência plena que eclipsa ipsa uerba. "O Senhor cujo oráculo está em Delfos não fala nem esconde, mas indica através de sinais." Sinal. Signum. Odi et amo. Odi et amo, logo sentio et excrucior. Catulo. Um risco, decerto. Um risco. Um risco que desafia séculos e séculos de história da arte. Rabisco. Rascunho, o incompleto contido na mesma fórmula figural. O incompleto Fausto. Nefasto. Satírico. Irônico. A mentira como última verdade, aparência e essência. Ecos. Eco. "As condicionais contrafactuais são sempre verdadeiras porque a premissa é falsa." A descoberta. A carne viva mergulhada em ácido borbulhante. Uma só cor, um só destino: sombra. Vivificando uma ironia. Súbito, a beleza pura quer voltar, faz sinal, implora. "És pura, merece a imolação!" E no altar é sacrificada e seu sangue tinge a sombra e seu sangue mancha a roupa e seu sangue e seu sangue. Afixada porcamente a um afresco permanece por toda a eternidade. Mas, não ao eterno! Nascer e morrer, vísceras vida, uideo. Video artem sed non possum tangere. O que é próximo escapa. O maior desejo. Seja. Deus é um desejo de ser deus. And happiness for all.