Ilustração Leandro Figueiredo

 

A guerra da cultura


Sérgio Fantini

Sérgio Fantini nasceu em Belo Horizonte, onde reside. A partir de 1976, publicou zines e livros de poemas; realizou shows, exposições, recitais e performances. Tem textos nas seguintes antologias: Revista Literária da UFMG, Novos Contistas Mineiros (Mercado Aberto), Contos Jovens (Brasiliense), Belo Horizonte, a Cidade Escrita (ALMG/UFMG), Temporada de Poesia/Salto de Tigre (PBH), Mini-antologia da minipoesia brasileira (PorOra), Geração 90, Manuscritos de Computador (Boitempo), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê), Contos Cruéis (Geração), Quarta histórias, contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond) e Cenas da favela – as melhores histórias da periferia brasileira (Geração/Ediouro). Publicou os livros Diz Xis, Cada Um Cada Um, Materiaes (Dubolso) e Coleta Seletiva (Ciência do Acidente). Em 2007 faz a curadoria do 8º Salão do Livro e Encontro de Literatura de Belo Horizonte.



Aos treze dias do mês de maio, reuniram-se diversos membros desta comunidade no Salão Paroquial (cujo ventilador continua quebrado), para preparar nossa participação na 1ª Conferência Municipal de Cultura. Às 14 horas o quorum era de oito pessoas (e a temperatura de 35 graus), com as quais o senhor Antero da Mercearia, vulgo Zé Antero, presidente da Associação Comunitária, decidiu iniciar a assembléia, no que foi prontamente contestado pelo senhor Moacyr Lagedo, vulgo professor Moacir, que alegou:

- Assembléia democrática tem que ter número ímpar de pessoas.

Zé Antero parecia que ia protestar, mas quando prof. Moacir falou “democrá”, os outros murmuraram:

- Sim, isso mesmo, é isso aí.

Portanto a conversa só começou mesmo lá pras 2 e 40, porque 2 e 15 chegaram mais duas pessoas (Dilson e Mandú, os italianos), o que manteve a paridade de presentes. Só quando o pastor Laurindo chegou é que deu certo.

Zé Antero abriu os trabalhos dizendo que:

- A cidadania democrática e cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças reais existentes entre os sujeitos em suas dimensões social e cultural. Os seres sociais são sujeitos concretos, entrelaçados em redes de relações, em projetos coletivos.

Dona Janyr Cruz, a simpática Titia, comentou com Maria Luciana (que não estava usando a pulseirinha que eu dei pra ela):

- Não entendi patavinas – mas algumas pessoas até aplaudiram, inclusive ela.

O prof. Moacir contestou, como sempre, falando de pé (e soltando perdigotos na careca de Mané Poeta):

- Entretanto, avaliações sobre esse mecanismo evidenciaram uma série de distorções, particularmente a falta de eqüidade na captação e distribuição de recursos públicos. Essa distorção manifesta-se de diversas formas (neste momento Rodriguinho arrastou a cadeira e se levantou, dando a impressão de que discordava, mas parou na porta e acendeu um cigarro. O prof. continuou): há concentração regional dos investimentos, os maiores contribuintes de impostos açambarcam a maioria dos patrocínios e os empreendedores mais profissionalizados e organizados obtêm a maior parte dos recursos.

Ninguém aplaudiu, o Salão estava quente que parecia um forno.

O doutor Petrúcio, mais conhecido por Doc-puxa, porque é especialista em manusear as partes íntimas do prefeito, pediu a palavra daquele jeito todo empolado e disse:

- O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais!

Mané Poeta ironizou:

- O estado ou a prefeitura, Doc?

Todos gargalharam, mas foram interrompidos pelo grito histérico do Doc-puxa:

- O ESTADO PROTEGERÁ AS MANIFESTAÇÕES DAS CULTURAS POPULARES, INDÍGENAS E AFRO BRASILEIRAS, E AS DE OUTROS GRUPOS PARTICIPANTES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO NACIONAL!

Voltando pro seu lugar, Rodriguinho falou, olhando bem nos olhos de Zé Antero:

- A gente devia era construir um Relógio Cósmico-ecológico.

Com ar irônico, Zé Antero perguntou se o senhor Kalil não tinha nada pra falar. Este levantou-se e disse que não era porque seu filho tinha tido essa idéia brilhante, mas ele achava que:

- O universo das atividades culturais é muito grande. Dentro do que se costuma considerar como setor cultural se encontram distintos tipos de atividades culturais, desde expressões de folclore e da cultura popular, até a cultura midiática, passando pelas manifestações da cultura da elite ou das belas-artes e do patrimônio.

Mandú e Dilson falaram quase ao mesmo tempo:

- Ma non è vero?

Ninguém ligou, porque eles falam isso toda hora, sobre qualquer assunto.

Maria Luciana (sem sutiã, a danada!), que não é de falar muito, porque se acha muito intelectual, resolveu dar o ar da graça:

- Um dos grandes desafios da gestão pública da cultura e da avaliação das ações implementadas diz respeito à relatividade de seus objetivos e à multiplicidade de efeitos buscados ou por ela alcançados. As ações públicas têm que ter fundamentos, uma coerência entre o que se diz buscar e o que se faz de concreto para tanto.

(Ô neguinha metida!). Titia olhou pra ela com cara de espanto, mas ela já não está entendendo mesmo muita coisa.

Quando Zé Antero ia pegar o microfone, Catifu botou a cara na porta e gritou:

- Ôu! Ôu! Alguém viu Jurema por aí?

Quase todos disseram coisas como:

- Não! Vai trabalhar! Isso é hora? Nós tamo ocupado etc.

Jurema é a mula dele. Quando ele bebe muito, ela some, impressionante, mas eles sempre se reencontram.

Mané Poeta, que se acha muito comunista só porque sempre defende Catifu, começou a falar sem pedir a palavra:

- Na questão cultural, vivemos um momento em que a grande mídia, principalmente as televisões e rádios balizam os gostos e as modas culturais. Basta uma atriz de novela exibir uma jóia extravagante para em poucas semanas virar moda nacional, ou um programa de auditório sensacionalista promover um novo grupo musical para no dia seguinte tocar demasiado nas rádios e vender dezenas de milhares de cópias. Enquanto isso, o lazer cotidiano da população carente é na mesa do boteco ou na frente da televisão. Muitas vezes o impeditivo financeiro inviabiliza a curiosidade artística dos mais populares.

Titia aplaudiu com entusiasmo, mas só porque ouviu as palavras novela e televisão.

Sentindo que o clima poderia esquentar, prof. Moacir cochichou alguma coisa no ouvido de Zé Antero (eles brigam na frente dos outros, mas são assim, ó, conchavados) que falou que ia encerrar a reunião, que ia sistematizar tudo e depois passaria pra todos darem o “de acordo” e finalizou:

- É necessário, pois, assumirmos a comunicação e a cultura como campos preferenciais de uma guerra política estratégica.

Quando ele já ia saindo com aquela cara de dever cumprido, o pastor Laurindo se levantou, fechou os olhos e disse em tom consternado:

- O que aconteceu com Vítor me abalou, pois há pouco mais de três meses, ele se suicidou. Suas obras estão espalhadas por inúmeros países europeus, na América do Norte e na Ásia. O que teria levado esse grande pintor ao desespero culminando com o ato extremo? Teria sido o abandono?

Enquanto ele falava, as pessoas foram saindo de fininho. Ao notar que só eu estava ouvindo, me olhou com tristeza:

- Como dizem os italianos: non è vero?

Eu fiz de conta que não era comigo. Botei o livro de atas no sovaco, catei a bola debaixo do banco e piquei a mula pro campinho: domingo é o dia que Luciana vai me ver jogar.



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As falas das personagens foram retiradas das teses apresentadas à 1ª Conferência Municipal de Cultura de Belo Horizonte, ocorrida em 18 e 19/11/2005, conforme especificado a seguir:

Zé Antero, Kalil e Maria Luciana: Tese do Ministério da Cultura

Prof. Moacir: Tese da Fundação Municipal de Cultura

Doc-puxa: Constituição Federal, citada na tese do MinC

Rodriguinho: Reivindicação surgida na pré-conferência de Venda Nova

Mané Poeta: Panfleto divulgado na pré-conferência do Barreiro, assinado por “MLB e Célula Negra”.

Pastor Laurindo: Tese do músico Andersen Viana