Aprendendo a ler a televisão:
uma confluência possível
Felipe
Muanis
Felipe
Muanis é professor de cinema no Departamento de Comunicação
Social da PUC-Rio. Foi coordenador do canal de TV universitária
da PUC-Rio e trabalhou como diretor de arte em filmes e comerciais.
Resumo
A
televisão, desde que foi inventada, passou por transformações
na forma e no modo de percepção de seus espectadores.
A palavra escrita, desde então, se ressentiu da maneira
como a imagem se popularizou, gerando uma preocupação
presente ainda nos dias de hoje, um antagonismo entre as letras
e o audiovisual, mais especificamente à televisão.
É importante, então, pensar qual é a inserção
da televisão na formação de públicos.
A questão do conteúdo é sempre discutida,
mas passa a ser essencial a transformação do espectador
comum, passivo, de homem-montador para montador cinematográfico,
ativo, para que o antagonismo se resolva através da educação.
Palavras-chave:
homem-montador, audiovisual, educação
Uma
imagem fala mais do que mil palavras. Agora experimente descrever
imagem sem as palavras? Essa é uma forma de mostrar o quão
difícil é trabalhar com a idéia de um embate
entre imagem e texto e, especificamente, entre literatura e audiovisual.
Discussão antiga que vem criando um certo sentimento de
impotência na literatura frente a concorrência desleal
das sedutoras imagens televisivas que, a cada dia, fazem diminuir
o número de leitores, ou melhor, reduzir o número
de possíveis amantes da leitura.
Discussão
antiga em todos os sentidos: talvez hoje o grande concorrente,
até maior que a televisão, sejam os videogames que
afastam a criança e o jovem até da informação
que também vem da televisão. Falar da televisão,
portanto, está em uma região limítrofe entre
o novo e o superado, entre o discurso de buscar um caminho de
diálogo e entender como fazer dela, e das novas mídias
audiovisuais, um aliado na educação e na formação
de novos públicos letrados, ou de atacá-las como
uma influência monstruosa e predatória diante da
qual a solução seria, para muitos evitá-las.
A intolerância e a incompreensão com alguns setores
do audiovisual por parte de um segmento de intelectuais, inclusive
de pensadores da comunicação, é, muitas vezes,
conseqüência de pré-julgamentos, estabelecidos
no senso comum e que nada ajudam para achar um caminho de confluência
onde a televisão e, por exemplo, a literatura andem juntas
e colaborem uma com a outra, gerando um público cada vez
mais instruído e preparado.Para Henri Lefebvre,
Uma teoria nova não é jamais compreendida se se
continua a julgá-la através de teorias antigas e
de interpretações fundadas (à revelia daquele
que reflete) sobre essas teorias antigas (1).
Dentro
dessa perspectiva talvez seja válido apontar um exemplo,
antes de se chegar à televisão, de como o mundo
das letras se ressente do mundo da imagem. Durante muito tempo
as histórias em quadrinhos foram vilãs para uma
elite cultural que as considerava divertimento fácil, subliteratura
e até mesmo perigosas para a educação das
crianças. Vários trabalhos citavam os quadrinhos
como algo a ser evitado pelos pais e educadores, como se eles
idiotizassem as crianças e ensinassem valores e posturas
perigosas para a família. É notório o trabalho
dos anos 50, A sedução do inocente,
do psiquiatra Frederic Wertham, que acusa os quadrinhos de promovem
a delinqüência juvenil, a alienação e
o homossexualismo. A sociedade macarthista começa então
a boicotar e queimar histórias em quadrinhos em praça
pública e, com medo de uma intervenção do
congresso americano, a indústria dos comics cria um selo
de ética para colocar nas capas das revistas, uma espécie
de aval para o seu conteúdo. Nada muito diferente da auto-regulamentação
que a indústria do cinema criara, ainda no início
do século, para evitar a intervenção do governo
no lucrativo negócio. Com essa limitação
várias histórias mudaram, a palavra crime não
poderia aparecer na capa das revistas, não podia haver
qualquer menção desonrosa aos agentes da lei e o
bem sempre deveria vencer no final. As histórias de terror
foram banidas e a indústria de quadrinhos americana, de
fato, passou a ser mais inocente. Na Europa, no entanto, os quadrinhos
gozavam de intensa liberdade criativa, abordando qualquer temática
sem grandes problemas. Mesmo nos Estados Unidos, a contra-cultura,
nos passos de Jack Kerouac e William Burroughs, construía
o quadrinho underground com Robert Crumb e Gilbert Shelton que
rompiam com o bem comportado, ocupando o espaço do confronto
e da contestação.
Essa
mídia, que se assemelha com o cinema, também está
bem próxima da literatura, afinal os quadrinhos também
se subdividem em gêneros: terror, ficção-científica,
policial, underground, erótico, entre outros. Como o cinema
e a literatura, o quadrinho também trabalha com a repetição
e com a semelhança para referenciar seu espectador e gerar
o seu consumo. Só que o diferencial da imagem é
importante, com relação à literatura. Para
a compreensão do receptor, nos quadrinhos, a letra não
precisa se articular apenas com ela mesma já que a mensagem
é uma junção feita, pelo leitor, a partir
de uma associação principalmente entre desenho e
texto. A imagem, sedutora no traço e na cor, facilita a
fluência da mensagem, objetivando-a. Para alguns, mais do
que isso, essa objetividade, essa construção física
da imagem pelo desenho, empobreceria não só o texto
como a capacidade de abstração do próprio
leitor. Ele não precisaria mais construir a imagem a partir
do texto, pois ela já estaria dada. Além disso,
é possível, nos quadrinhos, contar uma história
apenas pela sucessão de imagens, através do enquadramento,
da montagem e da condução da temporalidade, o que
os aproxima muito da montagem cinematográfica, sem ser
necessário qualquer uso da palavra.
A
palavra, então, deixa de ser a única forma de ligação
entre autor e leitor, de ser indispensável mas, ao mesmo
tempo, estaria a salvo nas obras clássicas da literatura
que não poderiam virar quadrinhos dada a sua complexidade
textual. Ledo engano. Hoje vemos nas livrarias uma adaptação
de Em busca do tempo perdido, de Proust, para os quadrinhos, e
ainda há quem se espante. Na década de 80, a própria
indústria de comics americana criou a série Classics
Ilustrated com adaptações de clássicos da
literatura como Moby Dick e O morro dos ventos uivantes. Já
no Brasil, ainda na década de 40, a então recém
inaugurada EBAL publicava a série Edição
Maravilhosa com adaptações feitas por André
Le Blanc, de romances clássicos brasileiros. Cinema e televisão
também são profícuos em adaptações
literárias e de folhetins atestando o caráter inequívoco
da ligação entre a literatura e o audiovisual, nos
diversos tempos, lugares e mídias. Mas independente do
conteúdo, é importante entender como se relacionam
palavra e imagem nas diversas mídias e o que representa
a imagem, como linguagem, hoje:
A cultura contemporânea é sobretudo visual. Videogames,
videoclipes, cinema telenovela, propaganda e histórias
em quadrinhos são técnicas de comunicação
e de transmissão de cultura cuja força retórica
reside sobretudo na imagem e secundariamente no texto escrito,
que funciona mais como um complemento, muitas vezes até
desnecessário, tal o impacto de significação
dos recursos imagéticos.
Pensemos,
por exemplo, nas narrativas visuais do cinema ou da telenovela,
produtos culturais a que (quase) todos têm acesso e que
competem diretamente com as narrativas literárias no gosto
do público consumidor de cultura; o que se capta, em primeiro
lugar, é um contexto demonstrativo em vez de um contexto
verbal: percebe-se pela vestimenta, caracterização
e comportamento das personagens, pelo lugar onde estão,
por seus gestos e expressões faciais, se se trata de drama
ou comédia, em que época se desenvolve o enredo,
enfim, de que modo o espectador está sendo convidado a
fruir aquele conjunto de significados visuais componentes de uma
trama. Cada cena comporta um peso visual e auditivo, este dado
pela trilha sonora, que se comunica imediatamente, sem necessidade
de palavras. A imagem tem, portanto, seus próprios códigos
de interação com o espectador, diversos daqueles
que a palavra escrita estabelece com o seu leitor. (2).
Nesse
sentido, cabe lembrar que o cinema, historicamente situado como
baixa-cultura com relação à literatura, à
rigor, não necessitava das palavras. De fato foi a chegada
do som sincronizado que trouxe a possibilidade da palavra em cena,
atrelando-se à montagem, através das falas do roteiro.
É neste momento que a montagem passa a ficar presa à
palavra. O cinema, que alcançava a liberdade modernista
na experiência da vanguarda dos anos 20, rapidamente se
conforma em um discurso diegético estruturado na palavra.
Mas a força da imagem em oposição à
palavra na mídia cinema ficou evidente mesmo nos filmes
que construíam, através da montagem, uma poderosa
estrutura semântica. Isso fica visível em clássicos
do mudo, especificamente no trabalho de Pudovkin, Eisenstein e
Abel Gance. O discernimento da montagem, pelo público,
é mais simples e elementar do que da palavra, por isso
facilmente reconhecível e legível(3).
Vejamos: a experiência mnemônica do homem é
composta por vários formas de percepção,
inicialmente baseada nos sentidos, o olfato, o paladar, o tato,
a imagem e que viriam a ser complementadas, posteriormente, pela
própria linguagem. Pedi, recentemente, para um grupo de
alunos relembrarem o que fizeram no dia anterior. Em seguida perguntei
se, em seus pensamentos, suas memórias vinham através
de imagens ou palavras. A resposta, praticamente uníssona,
foi que rememoraram suas experiências através de
imagens, ou seja, buscavam na memória, a partir do início
do dia anterior, todo o percurso pelo qual passaram, para depois
transformarem a lembrança em um código verbal representado
por palavras e explicitarem suas experiências para a audiência.
Isso
significa que somos todos montadores de imagem. Pensamos em imagens,
pensamos em planos, fazemos enquadramentos e cortamos as imagens
com o intuito de criar uma narrativa compreensível para
nós mesmos. Este a quem chamo de o homem-montador, não
um profissional cinematográfico, monta seqüências
de imagens mentalmente para si. Como é o emissor e receptor
da própria mensagem, não precisa seguir um código
semântico rigoroso para ser claro na sua montagem, pois
o reconhecimento da própria mensagem é imediato.
Qual é a diferença para os montadores de cinema(4)?
Os montadores de cinema exteriorizam essa montagem de modo a criar
uma semântica lógica e compreensível para
criar comunicação com seu interlocutor, elaborando
a mensagem de modo que ela seja entendida pelo maior número
possível de pessoas. O montador cinematográfico
vai, então, entender o funcionamento da imagem, como ela
é lida, qual seu significado, como relaciona-se junto às
outras e tenta prever como ela é percebida pelo receptor.
Neste momento ele está elaborando um código lingüístico
representado por imagens, cortes, elipses, fusões, enquadramentos
e movimentos, capazes de funcionar e comunicar não apenas
para si próprio, como é como o homem-montador, mas
capaz de ser reconhecido e lido por outras pessoas. A linguagem
cinematográfica passa a existir de forma clara e precisa
e, se quiser, sem depender da palavra para seu entendimento. O
efeito dessa diferenciação entre o homem-montador
e o montador-cinematográfico recai na capacidade que o
homem tem em manipular conscientemente essas imagens, elaborando
uma maior ou menor comunicação com o outro.
E como é o funcionamento com a imagem? Se o montador cinematográfico
tem o domínio dessa linguagem, sabe manipulá-la
a ponto de induzir sentimentos e emoções, o que
cabe ao homem-montador? Por estar dentro de uma cultura específica
e cada vez mais imagética, em função da mensagem
dirigida a ele estar referenciada em signos, arquétipos,
estereótipos e demarcações dessa mesma cultura,
o homem-montador é um bom leitor. Ele entende o que lhe
é apresentado. O nível dessa leitura já é
outra questão: a capacidade de ler nas entrelinhas, de
tirar mensagens diferentes e subliminares no texto que lhe é
apresentado vai depender do quão imerso ele esteja na cultura
e o quanto mais ele desenvolva o seu lado leitor desses códigos.
Mas saberá ele escrever essa linguagem?
A experiência
com alunos de publicidade já no final do curso é
bastante elucidativa para tentar entender a diferença entre
leitura e escritura da linguagem audiovisual. Sabe-se que a publicidade
é uma carreira que pede uma bagagem de informação
bastante grande, ainda que superficial, para poder gerar esses
códigos e trabalhar esses estereótipos. Essa bagagem
de informação está, nas novas gerações,
referenciada principalmente na indústria cultural e no
saber mundializado da cultura de massa: filmes blockbusters,
séries de TV, desenhos animados, videoclipes, músicas,
comerciais, imagens, marcas e produtos, revistas, livros, best-sellers,
enfim, uma infinita gama de produtos que compõem esse universo
cognitivo para que o maior número de pessoas, que detêm
poder aquisitivo, possa consumir. Esses alunos, vivendo essa informação
em seu cotidiano, costumam ter uma preferência pelos produtos
audiovisuais que exprimem agilidade, rapidez, radicalidade, beleza
e fruição, consumindo uma estética hedonista,
como aponta Edgar Morin, que se constrói enormemente em
função do incremento do aparato publicitário
com base no fortalecimento, cada vez maior, da sociedade de consumo.
O próprio zapping é, de certa forma, uma
conseqüência disso, uma insatisfação
com o eterno presente, uma fuga do passado, e a incessante busca
pelo novo. Quando a maioria desses alunos vai escrever audiovisual
supõe-se que teria facilidade para isso, mas não
tem. Cometem erros gramaticais graves, sem conseguir reproduzir
a mesma agilidade dos produtos que admiram e gostam de consumir.
Poderia facilmente justificar isso pela técnica ou pela
ausência dela, pelo seu desconhecimento. Não é
o caso. Mesmo nos exercícios realizados por esses alunos,
nos quais simplesmente buscava-se pensar a imagem e a decupagem
teoricamente, a montagem se estabelecia falha e sem o menor traço
da radicalidade presente no gosto pessoal. Esse jovem, de classe-média
alta e com acesso à informação, é
um leitor bastante refinado, com capacidade de compreensão
de construções imagéticas complexas
que hoje, por vezes, aproximam-se, na forma, ao hermetismo das
antigas vanguardas mas não consegue, muitas vezes,
reproduzir esse discurso nem tampouco escrever um texto audiovisual
básico, com alguma fluência narrativa. Existe, portanto,
um hiato considerável entre o ler e o escrever, notório
naquele em quem estou chamando de o homem-montador. E esse talvez
seja o espaço para tentar solucionar o problema da escrita
estar sendo eclipsada pela televisão.
Não
há como negar o poder sedutor das imagens. Plasticamente
construídas, apelam para todos os sentidos, com uma variedade
de atrações e conteúdos em canais segmentados
que permitem que o consumidor tenha um acesso fácil e rápido
à várias realidades, situações e experiências,
estéticas ou não. A televisão é o
veículo ideal para essas construções e desde
seu nascimento se mostrou com enorme capacidade de mudar hábitos
e criar novos costumes. José Carlos Rodrigues(5),
lembrando do surgimento da televisão em sua cidade, na
década de 50, aponta como foi drástica a mudança
comportamental que ali se operou. Enquanto que antes, durante
a noite, os vizinhos se encontravam na rua para conversarem e
as crianças brincarem, após o surgimento da televisão
as ruas ficaram vazias e as pessoas reunidas dentro de casa, em
torno dela. O encontro dos moradores agora se limitava ao que
ele chama de televizinho, ou seja, a pessoa que ia
a casa mais próxima para ver televisão, pois não
tinha tido ainda oportunidade de adquirir seu próprio aparelho.
Como se vê, desde o início a televisão opera
algum afastamento do lúdico, dos jogos e das brincadeiras.
Por ser imagem a televisão fala à compreensão
mais elementar do interlocutor, a de interpretar o que está
vendo. A competição com a imagem, portanto, é
bastante difícil, já que suas narrativas são
extremamente sedutoras, trabalhadas pela forma, pela riqueza de
informação, pela beleza e pela facilidade de absorção.
Por ser narrativa flerta com a necessidade de ficção
e referencial. Por ter conteúdo cria conhecimento, mas
necessitando de um esforço, ou dedicação,
diferente do utilizado na leitura de um livro. Esse esforço
é um ponto importante: o ócio é necessário
para o pensar, para o auto-conhecimento. O ritmo de vida imposto
pela sociedade capitalista, de excesso de mão de obra e
escassez de trabalho, aumenta a carga horária do trabalhador
e se por um lado, compra uma melhor qualidade de vida, por outro
diminui consideravelmente o tempo ocioso que ainda se divide nos
afazeres domésticos e na família. Resta, assim,
muito pouco para as solitárias atividades introspectivas.
O descanso, por vezes, se dá através de uma necessidade
narcotizante de se desligar da realidade estressante de forma
fácil, despretensiosa e rápida. Nesse momento em
que o pensar não é bem-vindo, ao invés do
livro, liga-se a televisão. Esse pensar, que fique claro,
não significa fugir de qualquer conteúdo que leve
a um raciocínio mais refinado, mas sim não querer
se esforçar muito em construir uma narrativa apenas parcialmente
dada e eventualmente não fechada pelo autor
da obra, seja em que meio for. O que acontece é uma mudança
na forma de percepção de conteúdo na relação
do espectador com o meio:
Depois da TV muitas coisas já não funcionam tão
bem. Tanto o cinema como as revistas de âmbito nacional
foram duramente golpeadas por esse novo meio. Até as histórias
em quadrinhos declinaram bastante. Antes da TV, o fato de Joãozinho
não ler causava muita preocupação; depois
da TV, Joãozinho passou a dispor de todo um novo conjunto
de percepções. Já não é o mesmo.
Otto Preminger
acha que o cinema americano amadureceu graças à
influência da TV . O meio frio da TV incentiva a criação
de estruturas de profundidade no mundo da arte e do entretenimento
criando ao mesmo tempo um profundo envolvimento da audiência.
(6).
Ao
ligar a televisão com o que nos deparamos? Que tipo de
programas vemos? Desde a televisão aberta, até a
televisão por assinatura, encontramos a mais diversa programação
de telejornais, shows, espetáculos, esportes, programas
de auditório, seriados, enfim, uma variada gama que atende
do mais ao menos exigente. Se é verdade que existem muitos
programas abaixo da crítica, também existem programas
inovadores de grande qualidade. Nessa questão da perda
de espaço da literatura temos dois problemas distintos
que necessitam ser diferenciados: a pessoa que troca um livro
por um programa televisivo de má qualidade e a que troca
o livro pela televisão, independente da atração,
mas que a olha com um senso crítico mais apurado. A questão
do programa de má qualidade me parece a mais simples: uma
mistura de necessidade de ócio misturado a um referencial
cultural mais estreito que impede o passeio por um leque mais
amplo de canais, por outros programas ditos mais cultos ou refinados.
O espelhamento entre espectador, ator e gênero, típico
do star-system do cinema norte-americano, ressurge na questão
do programa televisivo segmentado e da celebridade. Essa programação
televisiva tem o caráter de passatempo, entretenimento
fugaz, que na maior parte das vezes não colabora para o
enriquecimento crítico do espectador. Já para o
mais exigente, por outro lado, a busca pelo programa com conteúdo
enriquecedor, por vezes, não difere da busca pelo de qualidade
ruim, já que este último é visto com um olhar
intencionalmente questionador. Para ele a televisão pode
ser ou não concomitante ao livro, isto é, este espectador
pode ser, boa parte das vezes, também um leitor que circunstancialmente
fez a opção da televisão, mesmo tendo acesso
e o hábito de ler. Essas situações e diferenças
são determinantes, evidentemente, no processo de formação
do espectador, ainda na idade escolar.
Segundo
uma pesquisa publicada no jornal Folha de São Paulo(7),
57% das crianças e adolescentes de 2 a 17 anos vêem,
todo dia no Brasil, pelo menos três horas de televisão.
Somente 5% não vêem TV. O contra-ponto com o livro
é assustador: 43% das crianças não lêem
livros em hora nenhuma no Brasil, o pior resultado entre os países
analisados, enquanto que nos Estados Unidos 52% lêem de
uma a duas horas por dia e na China 45% lêem a mesma quantidade:
Em
contraponto à televisão, 43% dos pais brasileiros
ouvidos disseram que seus filhos não ocupam nada de seu
tempo lendo livros ou brincando com os amigos; 79% disseram que
seus herdeiros não praticam esportes coletivos; 69% afirmam
que eles não usam computadores.O
resultado é preocupante. Quando há mais TV do que
leitura, há um empobrecimento do país. Não
brincar também é perigoso. A criança que
não brinca não conversa, fica isolada, diz
Ana Bock, presidente eleita do Conselho Federal de Psicologia
(CFP) e professora da PUC-SP. (8).
Como
se vê, o lúdico está em baixa. A leitura ainda
briga com outras mídias audiovisuais de apelo mais forte
para as crianças, como o computador, neles contidos a internet
e o videogame. Neste ponto é fundamental o exemplo e a
educação dos pais, como complementa a matéria
da Folha:
Carmona
responsabiliza parcialmente a política educacional brasileira
por esse panorama de muita televisão e pouca leitura e
brincadeira. Mas não isenta a televisão. A
TV pode levar a criança a conclusões distorcidas.
A TV mostra uma rua mais perigosa do que ela é, e isso
gera medo, neurose, violência. A influência da televisão
no Brasil é muito séria. Nossas crianças
são mais desinformadas. Na Europa, há uma tradição
de TV pública com programação para criança
mais elaborada.(9)
Para
Rodrigo Toni, diretor-geral do Ipsos no Brasil, a pesquisa não
permite afirmar que a TV afasta a criança dos livros e
das brincadeiras. Há muita televisão, mas
o que as afasta das outras atividades são a falta de hábito
e os ambientes educacional e familiar. Os vilões são
os próprios pais, que não valorizam a leitura,
diz.
Opinião
parecida tem a psicóloga especializada em famílias
Lídia Aratangy:
Pais leitores têm mais chances de ter filhos leitores simplesmente
porque as crianças percebem que aquele objeto deve ser
muito importante para prender a atenção de uma pessoa
tão importante. Ela recomenda também que os pais
assistam à TV junto dos filhos, para transformá-los
de esponjas em filtros. (10)
Algumas
questões aqui levantadas são importantes. Com o
estado de insegurança que os habitantes dos grandes centros
urbanos vivem em seu cotidiano, a criança não sai
de casa com a facilidade de antes. Quando sai fica presa no próprio
condomínio, fenômeno dos grandes centros urbanos,
cada vez mais uma fortaleza ilhada de auto-suficiência.
Brincar na rua, conhecer os vizinhos, jogar bola, conversar de
noite sentado no meio-fio são características do
passado. As crianças ficam em casa, onde estão seguras,
e por vezes quem toma conta delas é a televisão,
a babá-eletrônica como cita um pai durante
a referida matéria. A sucessão rápida de
imagens coloridas, diferentes, de mundos e realidades impossíveis,
hedonistas, são sedutoras e hipnóticas para a criança.
A babá-eletrônica não é apenas um artifício
para que os pais possam descansar um pouco e, momentaneamente,
se desligar do sentido de alerta com relação à
segurança dos filhos. Ela é um grande problema porque
não vem acompanhada do senso crítico que faria a
criança, com o tempo, discernir o que é bom e o
que é ruim. A solução é a apontada
pela psicóloga, transformar as crianças de esponjas
em filtros com o auxílio dos pais, que ajudariam a criar
este senso crítico. Mas será isso suficiente? Como
fazer para que a criança e até mesmo os pais desenvolvam
essa capacidade? A resposta é fazer com que ambos deixem
de ser um mero homem-montador para que passem a ser alfabetizados
audiovisualmente, que entendam a gramática e a sintaxe
da imagem para criar referenciais e terem uma maior possibilidade
de fazer uma separação entre o programa bom e o
ruim e, mais do que isso, entender o porquê de determinada
programação ser prejudicial. Nesse sentido podemos
rever a indignação de McLuhan com relação
a restringir o problema da televisão apenas ao conteúdo:
Por não terem observado um aspecto tão fundamental
da imagem da TV, os críticos da programação
conteudística só têm falado bobagens
a propósito da violência na TV. Os porta-vozes
do ponto de vista da censura são em geral indivíduos
semiletrados, que se orientam pelos livros e que não conhecem
a gramática do jornal, do rádio ou do cinema, tendendo
a olhar torto para todos os meios não-livrescos. Uma pergunta
das mais simples sobre um aspecto psíquico qualquer dos
meios, incluindo o meio do livro, deixa essa gente tomada do pânico
da incerteza. (11)
É
importante a percepção que McLuhan faz das gramáticas
dos outros meios. Atribuirmos a problemática somente ao
conteúdo, como fazem alguns, significa nos isentarmos da
própria responsabilidade que devemos ter para formar pessoas
que detenham maior controle sobre o meio, seja como autor ou espectador.
Então a idéia é que todos virássemos
montadores cinematográficos? Precisamos dominar a forma?
Talvez seja quase isso. Não de profissão, mas de
raciocínio audiovisual. Estamos entrando em um momento
de convergência de mídias onde a imagem nunca teve
a importância que teve agora, seja pela difusão,
seja pela proliferação de matrizes geradoras dessa
imagem, amadoras ou institucionais. Se há cem anos, a imagem
era feita por alguns poucos que tinham uma máquina fotográfica
ou um cinematógrafo, hoje temos as câmeras de vídeo,
das mais baratas às mais caras, bem como as câmeras
de cinema e as câmeras fotográficas. Como se não
bastasse, as câmeras começam a ser um artigo de cotidiano,
presentes em telefones celulares, PDAs e até binóculos.
Da mesma forma que o telefone celular que era um artigo de luxo
há dez anos atrás foi barateando, se popularizando
e acabou por virar o responsável pela democratização
da telefonia no Brasil, esses aparelhos com câmeras embutidas
serão responsáveis pela democratização
da captação de imagens, um hábito cada vez
mais corriqueiro. Não obstante isso, os computadores têm
ficado cada vez mais potentes e com recursos de manipulação
de imagens, estáticas e em movimento, que há dez
anos atrás seriam impossíveis de serem feitas como
são hoje, na casa das próprias pessoas. A profecia
do cineasta George Lucas começa a se concretizar, a de
que, em um futuro próximo, todas as pessoas poderiam fazer
cinema na garagem da própria casa(12).
E a divulgação desse material ainda pode ser feita
pela internet nos blogs que se espalham pela rede.
Toda
essa mudança que vem acontecendo nos últimos dez
anos reforça uma necessidade que talvez passasse desapercebida
anteriormente, a necessidade do ensino da linguagem audiovisual
nas escolas. Hoje isso fica mais claro já que as pessoas
estão, definitivamente, escrevendo com imagens. A caméra-stylo
da nouvelle-vague virou uma realidade, só que
de outra forma: a câmera está virando uma caneta
no cotidiano das pessoas comuns. Para isso é necessário
que saibam escrever audiovisual, que tenham o discernimento
dos seus referenciais, para poderem ser bons leitores. Mas qual
é o problema para que isso aconteça? Com toda essa
revolução da imagem acontecendo a cada dia que passa,
alguns não se dão conta de que as antigas questões
passam por novos prismas e de que discussões como essa,
da literatura perder espaço para a televisão, tem
que superar o mero discurso, seja apocalíptico ou integrado,
e partir para uma visão mais pragmática e sintonizada
com as novas demandas que surgem de uma dinâmica social
diferente. Nesse ponto, a crítica que Haroldo de Campos
faz a Benjamin é bastante adequada, mudando e invertendo
os papéis para literatura e audiovisual:
Só
no cinema reconhece Benjamin a elaboração de uma
sintaxe peculiar, de uma nova linguagem comensurada aos novos
tempos e capaz de dar uma representação artística
do real. Nisto sua visão é afetada de tradicionalismo,
pois se recusa a admitir o que parece óbvio, isto é,
que, paralelamente ao cinema e por sua vez sob o influxo dele,
profundas alterações também se processaram
nas outras artes, exigindo-lhes a reorganização
dos respectivos sistemas de signos em moldes mais adequados à
realidade da civilização técnica. (13).
É
preciso que se reconheça a televisão também
como uma sintaxe a ser estudada, para que entendamos melhor o
audiovisual, as artes que a cercam e a influência sobre
elas e o seu público. Um exemplo claro disso é a
eterna discussão sobre adaptação literária
para o cinema, onde a pergunta sobre o que é melhor, o
livro ou o filme, é freqüente. O ponto de partida
habitual é que o leitor lê o livro para depois ver
o filme e fazer suas considerações. O que acontece
muitas vezes atualmente, no entanto, é o contrário,
o espectador vê o filme e essa experiência o leva
ao livro. Esse movimento, inverso ao tradicional, é suficiente,
como exemplo, para gerar uma série de discussões
diferentes sobre a relação entre as obras escritas
e audiovisuais. Adaptar-se a esse novo olhar é difícil,
há uma resistência. Acostumou-se a olhar a produção
cultural, historicamente, a partir do ponto de vista do que se
considera alta-cultura para baixa-cultura. Sair desse, para outro
olhar, é uma atitude necessária mas muito difícil
para alguns. É como o episódio narrado por José Saramago no filme Janela da alma (João Jardim
e Walter Carvalho, 2003). Em criança, o jovem Saramago
ia ao teatro local e, do ponto de vista da platéia, admirava
uma rica e enorme coroa que adornava o alto da boca de cena. Um
dia, o jovem Saramago entra por dentro do palco, pelo ponto de
vista oposto e repara que a coroa, por trás era feia, o
oposto do que via do outro lado. A partir dali, disse ele, aprendeu
que para ter uma visão melhor sobre algo, devia buscar
olhá-la por todos os lados.
Mas
olhar de diferentes ângulos não é o que acontece.
Como explicar que, em um país como o Brasil, onde a televisão
tem um papel fundamental, e até exagerado, em nossa cultura,
há pouca quantidade de estudos sobre este tema, que envolvam
linguagem, produção, percepção? Vista
do alto pelos próprios teóricos da comunicação,
a televisão não estimula a produção
intelectual e massa crítica compatível com o papel
e importância que ela desempenha em nosso país. Arlindo
Machado, Maria Rita Kehl, Eugênio Bucci, Mauro Alencar,
entre outros, são dos poucos que perceberam que satanizar
a televisão não é a solução
para as transformações que a sociedade vive mas,
ao contrário, entendê-la é o passaporte para
construir uma televisão mais responsável e um espectador
mais crítico. Como discutir a televisão se não
a entendemos, se não sabemos dissecá-la? Como construir
uma programação consistente se muitos professores,
incluindo os da comunicação, consideram a análise
televisiva algo menor? A televisão, frente a importância
que tem no Brasil, deveria ser profundamente estudada. Só
assim haveria uma produção crítica que formaria,
com consistência, os profissionais que sairiam das universidades
para fazer essa mesma televisão de modo diferente. O audiovisual
já deu provas de que é possível existir produtos
de qualidade como os infantis Castelo Rá-tim-Bum
e TV Colosso, fora os diversos filmes que são
feitos e que são exibidos na televisão. As próprias
TVs educativas e o Canal Futura, os programas que tem uma ligação
inequívoca com a literatura como Sítio do picapau
amarelo e as adaptações de Guel Arraes, para
o cinema e para a televisão, que misturam os mais diversos
elementos e linguagens das diversas artes e mídias, revitalizam
e atualizam os textos para as novas gerações e para
os novos meios. Mais do que isso, a universidade ajudaria a formar
o senso crítico dos futuros pais que, aí sim, poderiam
ajudar as crianças, como foi dito, a serem filtros e não
esponjas:
Henry-Jean
Martin explica que, penetrados como estamos por uma cultura escrita,
nossa imaginação não consegue ser suficientemente
prodigiosa para compreender o mecanismo das culturas orais. Parece,
contudo completa ele (14)
que, em nossa época, os novos meios de difusão
não-escrita do pensamento, como são o cinema e sobretudo
o rádio, deveriam ajudar-nos a conceber melhor o que pode
ser, para milhões de indivíduos, uma transmissão
de obras e de idéias que já não use o circuito
normal do texto escrito. Levando em consideração
próprio conceito de livro já discutido acima (instrumento
para dar consistência ao pensamento disperso e para ampliar
o seu poder de influência dentro de uma sociedade), não
poderíamos, pois, dizer que os filmes, os vídeos,
os discos e muitos programas de rádio e televisão
são os livros de nosso tempo? (15).
Para que essa situação mude dentro da própria
universidade, que é geradora e multiplicadora de conhecimento
para a sociedade, a solução é, como sempre,
o ensino fundamental. O ensino de duas matérias fundamentais
para a criança voltar a ter o interesse pela leitura, mas
também ter uma formação melhor perante as
novas demandas sociais e desenvolvimentos midiáticos. O
ensino de linguagem audiovisual acompanhado de filosofia nas escolas,
faria com que as crianças desenvolvessem a capacidade de
abstração ao mesmo tempo que seriam alfabetizadas
nas letras e nas imagens, passando, com o tempo, a entender seus
códigos, sua grafia, escrever e raciocinar com elas, inter-relacionando-as.
O grande problema do homem-montador é que ele está
diante de uma gramática sem percebê-la, ele a lê
passivamente, sem fazer esforço:
Desde o momento que estamos diante da tela, não percebemos
mais o texto enquanto texto, mas como imagem. Ora, escrever torna-se
atividade plena na separação estrita do texto e
da tela, do texto e da imagem nunca uma interação.Da
mesma forma, o espectador só se torna realmente ator quando
há estrita separação entre palco e platéia.
Tudo, porém, concorre, na atualidade, para a abolição
desse corte: a imersão do espectador torna-se convival,
interativa. Apogeu ou fim do espectador?
(16)
Extinguir,
de certa forma, a ingenuidade desse homem, é a possibilidade
não apenas da construção de um saber importante
para a sociedade atual, mas também de desenvolver nele
um raciocínio constante diante de uma linguagem com a qual,
hoje, se tem um contato apenas passivo. Com o tempo os programas
de televisão melhorariam, provavelmente seriam menos danosos
e haveria uma maior integração entre o audiovisual
e as letras, uma colaborando com o entendimento da outra. A ditadura
da imagem, que a literatura sente com relação a
televisão de hoje em dia, não é diferente
do domínio que a escrita tinha na Idade Média que,
sendo saber de poucos, era usado como instrumento de poder. Hoje
é o mesmo com as imagens. Resta saber se a solução
é jogar a televisão na fogueira ou, para que todos
sobrevivam, amplie-se a consciência, mude-se o discurso
secular e democratize-se de verdade o escrever audiovisual.
Abstract
The
television, since that it was invented, it passed for hashings
in the form and the mode of perception of the audience. The written
word, since then, if resented in the way as the picture was popularized
generating, still nowadays, an antagonism between the words and
the audiovisual, more specifically to the television. It is important,
then, to think which is the insertion of the television in the
audience development. The content is always pointed but it starts
to be essential the hashing of the common spectator, of editing-man
for a cinematographic one, an active assembler. By this way, the
antagonism can be solved by education.
Key-Words:
editing-man, audiovisual, education