Arnaldo Antunes: uma poética de agora
Vívien Gonzaga e Silva
A voz saía de uma placa metálica
retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. (...) O
aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível
desligá-lo de vez.
George Orwell, 1984.
“É preciso estar ciente de que, se essas tão imensas inovações transformam toda
a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria invenção, devem,
possivelmente, ir até ao ponto de modificar a própria noção de arte, de modo
admirável.”
Pouco menos de um século após a publicação do texto de Paul Valéry, de onde foi
extraída essa passagem, por Walter Benjamin, o interesse pela relação entre as
artes e o meio técnico ainda está longe de se esgotar.
É a análise dessa relação que servirá de baliza para a discussão que propomos
aqui, como um modo de compreendermos, mesmo que precariamente, o que tomamos
como identidade nessa transição de séculos.
A pertinência das indagações de Valéry fica mais evidente em outro trecho:
Tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas,
atender às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos
alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer
ao menor gesto, quase que a um sinal.
Podemos pensar que o prognóstico contido nas palavras do poeta e ensaísta
francês consumou-se já com o advento da televisão, que veio viabilizar a
disseminação de imagens com a mesma velocidade e poder de alcance que a voz já
experimentava através do rádio, transpondo para um domínio próprio o fascínio
exercido pelo cinema falado e assegurando para si um posto singular no universo
da cultura de massas. Tudo, a partir do simples apertar de um botão. O que
talvez ainda não pudesse ser mensurado por Valéry, em sua época, era a dimensão
que este gesto mínimo assumiria no decorrer de poucos anos.
A crescente incursão de tecnologias avançadas em grande parte das áreas de
atuação humana confere ao comando digital uma posição ambígua. Por um lado,
constitui uma habilidade privilegiada que, em si, pressupõe a inserção do
sujeito numa esfera de conhecimento específica, dotada principalmente de uma
linguagem própria, cujo acesso é graduado por fatores como poder aquisitivo,
ocupação profissional, escolarização etc. Isto significa que a apropriação
dessa linguagem demarca um certo “poder” diante das demandas cotidianas, o que
configura, num certo sentido, um status diferenciado que aponta, dentre outras
coisas, para a formação de uma nova plataforma de valores sociais e
individuais.
Por outro lado, o exercício ostensivo dessa habilidade digital, em escala de
substituição progressiva de outras habilidades humanas, torna cada vez menos
perceptível a mediação corporal entre o apelo subjetivo e sua resposta no meio
externo. O “desejar fazer” e o “está feito” diferenciam-se por um átimo,
favorecendo um certo alheamento do sujeito em relação ao processo do qual ele é
agente, o que não se diferencia da “alienação do trabalho” da qual nos fala
Karl Marx, contudo, não se restringindo, hoje, às atividades profissionais.
Esse alheamento é reforçado, singularmente, por artifícios tecno-mercadológicos
que buscam minimizar o aspecto hostil do universo maquínico e acabam por
insinuar uma possível identificação entre máquina e homem. É o que ocorre, por
exemplo, com a utilização de gravações ou de vozes sintetizadas em terminais
eletrônicos, o que confere à inteligência artificial uma assombrosa
“humanidade”. Já não é raro presenciarmos – ou mesmo protagonizarmos – um
diálogo “amistoso” entre a máquina e seu operador.
Cabe perguntar, aqui, até que ponto temos consciência dos limites dessa
“identificação” ou controle sobre eles. Ou, ainda, até que ponto os padrões de
eficiência humana não estariam sendo espelhados nos parâmetros impostos pelo
progresso tecnológico.
O nome das coisas
Pensar que a arte ficaria à margem desse progresso seria ignorar sua dimensão
pragmática, pressupondo-se, logicamente, que estariam incluídas nesse universo
aquelas atividades ligadas a manifestações de ordem psicossociais, como os
esforços de comunicabilidade, por exemplo.
Diga-se a propósito, que a história da arte, entendida como disciplina
humanística, está muito próxima do estudo das imagens como linguagem. Não é à
toa que muitos conceitos utilizados no campo da arte tenham sua origem no
desenvolvimento de ciências como a antropologia ou a arqueologia que, não
raramente, se apoiam na produção artística e, particularmente, no acervo de
imagens produzidas em um período para a reconstrução da cultura geral de uma
civilização.
Como afirma Omar Calabrese, “as formas expressivas são consideradas formas
simbólicas, isto é, capazes de manifestar conteúdos que não são diretamente
motivados pelo aspecto natural das próprias formas.”
Nessa linha de pensamento, faz sentido tentarmos analisar as representações
veiculadas pela arte contemporânea com o intuito de entendermos alguns aspectos
da cultura de nosso tempo e as múltiplas identidades que a ele se vinculam.
Mais precisamente, faz sentido, neste espaço, partirmos de uma expressão
artística em particular para nos movermos no terreno onde, a nosso ver,
configuram-se algumas linhas dessa identidade.
Eu berro as palavras
no microfone
da mesma maneira com que
as desenho, com cuidado,
na página.
Neste fragmento do poema que abre o livro Psia, de Arnaldo Antunes, já é
possível perceber que estamos lidando com a idéia de “trânsito” entre meios
diversos. Não por acaso, e mesmo considerando-se o caráter ficcional da obra
literária, o trecho em questão remete ao fato de que Antunes é também cantor,
e a aproximação feita entre os dois veículos – o microfone e a página de papel
– já oferece indícios para pensarmos que uma das marcas da contemporaneidade é
a existência de mídias diversificadas.
Mas, antes de nos lançarmos na análise dessa questão, vamos abordar outro
aspecto interessante desse poema: sem título destacado, ele vem impresso na
orelha do livro, ou seja, no prolongamento da capa que, quando existe, via de
regra, é reservado à apresentação da obra e do autor. Em Psia, o próprio poema
se encarrega de cumprir esta função:
Psia é feminino
de psiu;
que serve para chamar a atenção
de alguém, ou para pedir silêncio.
Está enunciado, nos primeiros versos, a partir de uma falsa definição do termo
“psia”, o propósito do autor: chamar a atenção do leitor, pedir silêncio para
que se prossiga a leitura.
Com projeto gráfico e diagramação do próprio Arnaldo Antunes,
esse poema ocupa todo o espaço da orelha. Entretanto, o texto é dividido por um
picote no papel,
o que sugere que uma das partes seja destacada, transformando-se em marcador de
texto, objeto avulso, exterior ao livro. Ora, com esse efeito, a própria
integridade do poema é colocada em questão: a idéia de fragmentação extrapola a
linguagem poética para manifestar-se como fragmentação física do objeto poema,
incidindo sobre as palavras:
Para transformá-las em coisas,
em vez de substituírem
as coisas.
Não se trata aqui de apresentar o trabalho desenvolvido por Arnaldo Antunes
como mostra de originalidade, mas, sobretudo, como um exemplo relevante, na
poesia brasileira, de uma conduta artística que vem se constituindo sob o signo
das transformações verificadas mundialmente no decorrer do século XX, as quais
ocorreram, de modo especial, a partir da intervenção de novas tecnologias.
Em seu prefácio a Un coup de dés, Stepháne Mallarmé já explicita, no século
XIX, uma mudança de tratamento do espaço gráfico:
Os “brancos”, com efeito, adquirem importância, chocam de início; a
versificação os exigiu, como silêncio em torno, ordinariamente, até o ponto em
que um trecho, lírico ou de poucos pés, ocupe, no centro, a terça parte mais ou
menos da folha: não transgrido essa medida, apenas a disperso. O papel intervém
cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou se oculta, aceitando a sucessão
de outras.
Esse é, também, o cerne das experiências concretistas, que ganharam projeção em
meados do século XX, como está assinalado no seguinte trecho do Plano-piloto
para poesia concreta, importante manifesto da vertente brasileira desse
movimento:
dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a
poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural.
Seria arriscado, salvo em raríssimos casos, tentar situar o nascimento de uma
proposta estética em um momento específico, ou mesmo creditá-la a um movimento
em particular, porém, é inegável que alguns dos procedimentos formais em
gestação desde o final do século XIX estão na base da prática poética
contemporânea.
A reordenação conceitual que se processa, a partir daquela época, pode ser
vista como a elaboração de uma resposta ao esgotamento das possibilidades
discursivas da linguagem frente a um contexto de transformações muito agudas. É
especialmente significativo, nesse sentido, que o manifesto dos concretos,
dentre outras formulações teóricas surgidas nesse período, proclame “uma
responsabilidade integral perante a linguagem”,
o que, de certa forma, resume muitas das proposições estéticas reivindicadas,
simultaneamente, por diversos movimentos que delinearam o perfil da
modernidade, não só na poesia, mas nas artes de um modo geral. Guardando as
particularidades de cada um desses movimentos, é certo que há um ponto de
confluência entre eles que configura não somente um novo posicionamento diante
das possibilidades de uso do código verbal, mas intensifica, a partir da
reflexão crítica sobre o fazer artístico, o entrelaçamento de códigos
distintos.
É oportuno ressaltar que o trânsito intersemiótico é inerente e necessário a
qualquer processo cognitivo, encontrando-se, mesmo, na base de toda produção
simbólica que permeia a expressão humana. No entanto, no que se refere a
experimentos intencionais no âmbito da mesclagem sígnica, o momento que marcou
a nossa entrada na modernidade é particularmente relevante.
Como bem assinala Gilberto Mendonça Teles, esse período é marcado por “um ideal
comum de renovação artística”,
a partir do qual a poesia assimila as técnicas pictóricas ao mesmo tempo em que
as artes plásticas se apoiam nas idéias filosóficas e poéticas, em ebulição nas
primeiras décadas do século XX.
Neste sentido, é extraordinária a ascendência do cubismo sobre as demais
modalidades de expressão artística. Ao atuar sobre a decomposição das formas,
recompondo-as em planos geométricos simultâneos, os pintores cubistas não
fizeram menos que explicitar um novo modo de perceber a realidade. A proposta
de apreensão instantânea de múltiplos ângulos desestabilizava o olhar,
impelindo-o para o confronto com uma realidade fracionada, em que a
subjetivação deveria agir como elemento fundamental na construção de sentido.
Ao mesmo tempo, a introdução de técnicas inovadoras, como a colagem, ou mesmo a
utilização de suportes não convencionais, acabam significando a ruptura com uma
prática agonizante, fundamentada no efeito de ilusão, ou seja, na tentativa de
retratação idealizada da realidade.
Embutida nesses procedimentos formais está toda uma discussão sobre a autonomia
da arte e do objeto artístico e, portanto, da própria noção de realidade e da
relação entre esta e aqueles. Trata-se de um caminho sem volta, que coloca em
debate também a natureza do meio, que seria, ele próprio, dotado de
expressividade e de significação. Em suma, processa-se uma profunda revisão,
fundamental para a produção literária da época, das noções que envolvem a
linguagem artística, tratada, então, em sua materialidade. Abre-se, com os
modernistas,
uma trilha não de todo explorada até os dias de hoje.
Os nomes dos bichos não são os bichos.
Os bichos são:
Macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha.
Os nomes das cores não são as cores.
As cores são:
Preto azul amarelo verde vermelho marrom.
Os nomes dos sons não são os sons.
Os sons são.
Só os bichos são bichos.
Só as cores são cores.
Só os sons são
som são
nome não
Os nomes dos bichos não são os bichos.
Os bichos são:
Plástico pedra pelúcia madeira cristal porcelana papel.
Os nomes das cores não são as cores.
As cores são:
Tinta cabelo cinema céu arco-íris tevê.
Os nomes dos sons.
Como se pode ver, “Nome não” reedita alguns aspectos da reflexão em torno do
signo lingüístico: nega e afirma o real por meio do signo, colocando em xeque a
própria significação; o nome das coisas não são as coisas mas, numa civilização
que tem no verbum até mesmo a base de sua cosmogonia, as coisas só se dão a
conhecer por meio do nome. A prática metalingüística presta-se, então, a minar
o alicerce em que se assenta todo o sistema de conhecimento ocidental,
explicitando, numa rede associativa enclausurada no significante, o esforço vão
de apreender o inapreensível pela via da linguagem.
É interessante observar que, no poema escrito, o trecho que enuncia “os sons
são” fica pendente, quebrando a expectativa criada nos versos anteriores; no
disco, porém, esse mesmo verso vem seguido de solos instrumentais: não há
nomeação – o significado é, então, presentificado e, por meio do sentido
auditivo, prescinde da expressão verbal.
Podemos dizer que, nesse caso, a discussão crítica sobre as possibilidades
expressivas dos diversos códigos ocorre no âmbito mesmo do fazer poético, por
meio da exploração simultânea e suplementar das especificidades desses códigos.
Esse fazer poético constrói-se, então, sobre o que Melo e Castro denomina de
“equivalências estruturais”,
permitindo a articulação concomitante de sinais verbais e não-verbais. De um
modo geral, no projeto poético desenvolvido por Antunes, encontramos, além
dessa articulação, a utilização de recursos tecnológicos e de mídias
diferenciadas, não apenas na condição de mero veículo, mas como elemento
constituinte de uma proposta estética.
Se Mallarmé tivesse um sampler
Seria inútil e desnecessário buscarmos compreender a obra de Arnaldo Antunes a
partir de uma provável filiação estética. Porém, como ocorre com outros nomes
dessa poesia que se produz nos dias atuais, há na obra de Antunes pelo menos
uma herança visível da modernidade, que diz respeito à união entre a prática
poética e a reflexão crítica sobre essa prática.
“Artista multimediático e intersemiótico” – assim se refere Haroldo de Campos a
Arnaldo Antunes, em seu posfácio ao livro 2 ou + corpos no mesmo espaço.
Trata-se de um pequeno texto de pouco mais de 15 linhas, capaz, entretanto, de
tangenciar algumas questões interessantes. Falando sobre a natureza icônica da
obra de Antunes, Campos transcreve um trecho no qual Walter Benjamin afirma
que, por meio dessa “nova escrita de trânsito universal, os poetas renovarão
sua autoridade na vida dos povos”. Servimo-nos dessa declaração de Benjamin
para pensar o papel do artista e tentar entender algumas especificidades de sua
atuação dentro das condições atuais.
Não é demais voltar aos experimentos de Mallarmé, que chegaram até nós apenas
sob a forma de anotações esparsas e pequenos fragmentos, à parte o texto de Un
coup de dés. Analisando o projeto mallarmiano de dar forma ao seu Livre –
“máquina poética” destinada a combinações infinitas de palavras e frases, num
movimento contínuo de geração de poemas –, Arlindo Machado observa:
para que a sua mecânica combinatória fosse colocada em movimento e ainda para
que nenhuma relação se impusesse como definitiva, ele deveria ser estruturado
como um objeto tridimensional, em que a coordenada de profundidade funcionaria
como eixo do paradigma, estoque potencial de palavras ou frases que se poderiam
permutar durante o ato de realização do poema.
No contexto em que situamos a nossa análise, até agora, vemos que a proposta de
uma produção poética capaz de transpor os limites de seu suporte material já
vinha sendo acalentada muito antes que surgissem os recursos técnicos capazes
de viabilizá-la.
No entanto, o desenvolvimento meteórico da indústria eletrônica coloca anos-luz
de distância entre os nossos dias e o fazer poético limitado à composição
tipográfica que deu origem à imprensa no século XV e revolucionou o mercado
editorial nos séculos seguintes. Nesse sentido, o artista contemporâneo tem uma
participação significativa e, como observa Eduardo de Assis Duarte, é preciso,
por exemplo, “ponderar a respeito da literatura enquanto impulsionadora de
inovações técnicas, em termos da demanda por ela exercida no aprimoramento dos
meios de difusão/circulação de mensagens”.
Vemos aí uma relação simbiótica na qual o artista, ao se apropriar de recursos
tecnológicos para dar forma a sua expressão, estaria interferindo em processos
aparentemente distantes da dimensão criativa e estimulando não só o
aperfeiçoamento do meio técnico, mas a sua popularização.
A indústria cultural, cada vez melhor aparelhada, insere o artista num outro
circuito, no qual estão concorrendo interesses os mais diversos. A realização
de um único show musical ou a produção de um filme, como exemplos, podem
envolver altos investimentos na locação de equipamentos eletrônicos
sofisticadíssimos. Isso, por um lado, propicia resultados impensáveis sem tais
recursos; por outro, vincula-se a uma complexa estrutura de mercado em que
estão em jogo, dentre outros fatores, verbas de patrocinadores, contratação de
profissionais especializados, investimentos em mídia, bilheterias milionárias
etc.
Parte integrante dessa estrutura, o artista contemporâneo distancia-se cada vez
mais da figura sacralizada, confinada em sua elaboração solitária, para
interagir com outros agentes cuja participação é tão intensa na materialização
de um projeto artístico que, não raro, podem adquirir o status de co-autores:
engenheiros de som, técnicos em computação, editores de imagens, programadores,
web designers e uma infinidade de novas categorias profissionais das quais o
artista está cada vez mais próximo – quando ele mesmo não as assume.
Essa interação com outros campos de conhecimento coloca o artista (e a obra de
arte) numa esfera cotidiana na qual é possível um novo tipo de inserção na
realidade, ou de uma espécie de resgate da “autoridade na vida dos povos”, como
queria Benjamin.
Tudo ao mesmo tempo agora
É também na esfera da cotidianeidade que se trava, de fato, o confronto de
identidades. Ao que parece, torna-se cada vez mais difícil ignorar a influência
das novas tecnologias, a não ser numa condição de ruptura com os padrões
socialmente constituídos. Não havendo essa ruptura, qualquer indivíduo deve
estar predisposto a lidar com sistemas automatizados, hoje presentes nas ações
mais corriqueiras da vida urbana: encontrar um livro em uma biblioteca, pagar
uma conta de telefone, buscar informações na Internet, exercer o direito de
voto.
Esse caráter quase ubíquo das tecnologias contemporâneas, capazes de se
imiscuírem nos mais diversos setores das atividades humanas, não indica apenas
uma dilatação das possibilidades produtivas, mas revelam uma nova lógica que
regula as formas de interação dos indivíduos com o meio.
Alguns estudos de Paul Virilio são especialmente significativos na análise
dessa questão. Vejamos, por exemplo, como ele demarca a história moderna a
partir da invenção de cinco “motores”:
primeiro, o motor a vapor, responsável pela criação da primeira máquina que
serviu à revolução industrial. Foi ele que permitiu a visão do mundo através do
trem, a visão em desfile que prenuncia a visão do cinema. O segundo motor, de
explosão, propiciou o surgimento do avião e do automóvel. O homem pôde obter
uma informação e visão inéditas, proporcionou a visão aérea. O terceiro motor
foi o elétrico, que deu origem à turbina, à eletrificação e criou a visão
noturna das cidades. O motor elétrico favoreceu o cinema, que é uma arte do
motor. O quarto motor, o foguete, permitiu ao homem escapar da atração
terrestre e obter uma visão da Terra a partir da lua. O quinto é o motor à
inferência lógica, do software, que permite a digitalização da imagem, do som,
e o surgimento da realidade virtual. Esse último modifica a nossa relação com o
real a partir da possibilidade de criação de uma outra realidade que funciona
ao vivo.
(grifos nossos).
Privilegiando outros elementos, Arnaldo Antunes também percorre a história,
traçando, contudo, uma linha em ordem inversa:
antes de existir computador, existia a tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio 21
Mito retomado em novo domínio semântico, o instante primordial é recuperado à
luz do engenho humano. A linha do tempo – metáfora de um novo olhar sobre uma
velha história – vem pontuada não por eventos ou datas, mas por ícones da
civilização, símbolos que assumem uma carga de significação ampliada, capaz de
referenciar estágios da história humana e de suas respectivas identidades.
Nos versos de “O silêncio”, o movimento em flash-back superpõe e entrelaça
grupos de referências que deixam entrever uma outra trajetória: antes de
existir computador, o homem compreendia a realidade e relacionava-se com ela
diferentemente daquele que assistiu às primeiras transmissões dos sinais
eletromagnéticos pela televisão (imagens!); ou daquele que viu serem
substituídos, um a um, os lampiões a gás pela lâmpada elétrica. É um exercício
instigante pensar que identidade seria possível apreender no estágio atual
dessa história, demarcada por Antunes pela existência/signo do computador.
Há, na escala descendente de “O silêncio”, perdas implícitas: o homem da era do
computador, da realidade digitalizada, recriada no plano virtual, tem anseios
quase inexprimíveis fora de um outro espaço, também virtual, o da linguagem em
sua vertente poética. É nesse espaço que, na impossibilidade (ou na
inutilidade) de romper com uma história dada – voz, alfabeto, enciclopédia... –
o poeta ainda pode propor a recuperação de uma dimensão ancestral: “vamos ouvir
esse silêncio meu amor / amplificado no amplificador”. Convite aporético que
resgata, na sonoridade do cotidiano contemporâneo – “batedeira liquidificador”
–, o silêncio pré-verbal, “a primeira coisa que existiu / um silêncio que
ninguém ouviu”.
Com base, também, nas colocações de Virilio, Luiz Alberto Brandão Santos
assinala a substituição gradativa de uma “estética da aparição”, cujas
referências se encontram na concretude de “imagens estáveis”, numa dimensão
espácio-temporal também estável, por uma “estética do desaparecimento”, cujas
bases estariam na produção sintética de “imagens instáveis”, móveis, calcadas,
apenas, na velocidade de sua propagação. Estaríamos vivenciando, segundo
Brandão Santos,
um processo de “desregulamentação das aparências físicas em que a localização e
a identificação perderam progressivamente seu significado”. Num universo onde a
observação direta das aparências é substituída pela teleobservação,
necessariamente mediatizada, de “trans-aparências” (cuja concretude se limita à
luminosidade impalpável constituinte das imagens), a cidade se apresenta como
“paisagem fantasmática”, como resíduo incômodo de uma era ultrapassada, como
espaço que tem de ser enfrentado por aqueles que não podem se beneficiar da
instantaneidade protetora e isolante das ações à distância.22
Agora já passou
O título desse tópico reproduz o único verso de uma das músicas de Antunes,
editada no Cd Nome, bem como no vídeo e no livro homônimos. Em “Agora”, o
compositor parece dar corporeidade ao movimento e à velocidade, fazendo-nos lembrar
de um trecho de Água Viva, de Clarice Lispector, que vale a pena transcrever:
mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente
é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no
chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará no imediato que absorve o
instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes,
acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só aquilo que capto em
mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das
palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que o instante,
quero seu fluxo.23
O poema de Antunes também propõe uma captura impossível, construindo-se por
meio da tentativa frenética – e frustrada – de pronúncia integral dos vocábulos
que, no disco e no vídeo, se sobrepõem e se interrompem uns aos outros.
Utilizando apenas o recurso de programação de voz, sem acompanhamento
instrumental, “Agora” cria uma sonoridade quase hipnótica, acentuada, no vídeo,
pelo efeito de fragmentação da imagem, sendo que, nessa mídia, o poema é
acrescido do verso “agora outro agora” que insurge, instável, do fundo da tela.
A supervalorização da velocidade é, a propósito, uma das marcas do mundo
contemporâneo. A consolidação gradativa de uma realidade eletronicamente
mediada, on line, alimentada pela obsolescência das imagens, em sentido amplo,
desestabiliza algumas categorias de pensamento bem complexas como, por exemplo,
o binômio tempo/espaço.
À parte concepções que devem ser historicizadas, o que interessa aqui é a
profunda mudança que vem ocorrendo na maneira pela qual o homem contemporâneo
percebe essas dimensões. Parece óbvio que apreendemos o mundo exterior pelas
informações que os sentidos detectam no meio ambiente e pelo modo como o
sistema nervoso processa essas informações. Mas como isto ocorre a partir da
mediação de instrumentos capazes de maximizar os sentidos? Em que medida o
processamento qualitativo estaria sendo comprometido pela preponderância quantitativa
dessas informações?
Seria um equívoco tratar essa questão como se o progresso tecnológico fosse
dotado de uma dinâmica autônoma, e não configurasse o resultado de opções
feitas por esta ou aquela sociedade. Em um pequeno artigo sobre os meios de
comunicação de massa, Néstor García Canclini traz à luz essa discussão:
Quem prescreveu que o discurso televisivo tem que viver o tempo todo em
velocidade e nos manter fascinados apenas com o recurso da renovação
incessante? Esta não é uma exigência da televisão como linguagem tecnológica,
mas da competição mercadológica entre canais e do temor de que o espectador use
o zapping.24
Essa questão parece apontar para o fato de estarmos diante de uma forma muito
particular de contato com a realidade, uma forma característica do nosso
momento histórico, em que os avanços tecnológicos atuam, inevitavelmente, como
mediadores no processo de apreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca. De
natureza essencialmente urbana, esse fenômeno, contudo, não deixa de estender seus
braços virtuais a outros espaços.
Como bem assinala Ulf Hannerz, “o mundo se transformou numa rede de relações
sociais, e entre as suas diversas regiões existe um fluxo de significados, bem
como de pessoas e de mercadorias”.25
Um dado importante, nesse caso, é que essa tendência mundializante serve-se de
recursos tecnológicos avançados, porém concentrados nos centros de poder
político e econômico, dos quais adota e prescreve prioridades, o que,
inevitavelmente, reduz as chances de eqüidade no âmbito sócio-econômico. O
processo de globalização reflete, por um lado, uma idéia de universalização e,
por outro, atua como instrumento de estratificação social, promovendo a
concentração de capital e atendendo a interesses de grupos específicos. Essa
natureza ambivalente do fenômeno da globalização manifesta-se também na esfera
cultural e, como observa Stuart Hall, “ao lado da tendência em direção à
homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a
mercantilização da etnia e da alteridade.”26
Taxionomia do paradoxo
Parece evidente, hoje, que a globalização, em suas manifestações mais recentes,
não atua na destruição pura e simples das identidades nacionais. O que se
verifica é a mesclagem de novas identidades globais e locais, dificultando a
preservação das identidades tradicionais e dependentes de suas raízes, em
localidades rigorosamente delimitadas. Essa questão é aprofundada nos estudos
de Homi Bhabha, a partir dos quais Maria Antonieta Pereira ressalta que
o conceito pedagógico de nação baseia-se numa perspectiva histórica que
privilegia a homogeneidade, o progresso e a linearidade como formas de se obter
uma suposta identidade nacional. Tal modelo tem sido fraturado por uma noção
performática em que as diferenças de interesse e as culturas de minorias
rasuram as semelhanças globalizadoras, traçam fronteiras internas e percebem a
nação como uma narrativa que recomeça sempre.27
Há que se pensar, também, que é inerente aos processos civilizatórios, dentre
outros fatores, esse entrelaçamento de culturas diversificadas, sem o qual
estariam intactos os valores de povos e nações que, hoje, só podem ser
reconhecidos por meio de resíduos já amalgamados às culturas contemporâneas.
Nessa transição de milênios, torna-se cada vez mais questionável o uso de
categorias absolutas para a definição de grupos étnico-culturais, ou dos
indivíduos que, numa atitude de resistência nem sempre consciente, buscam,
contraditoriamente, reconhecer-se como parte integrante desses grupos. Vejamos
um exemplo desse questionamento presente na obra de Arnaldo Antunes:
que preto, que branco, que índio o quê?que branco, que índio, que preto o
quê?que índio, que preto, que branco o quê?que preto branco índio o quê?branco
índio preto o quê?índio preto branco o quê?aqui somos mestiços mulatoscafuzos
pardos mamelucos sararáscrilouros guaranisseis e judárabesorientupis
orientupisameriquítalos luso nipo caboclosorientupis orientupisiberibárbaros
indo ciganagôssomos o que somosinclassificáveis não tem um, tem dois,não tem
dois, tem três,não tem lei, tem leis,não tem vez, tem vezes,não tem deus, tem
deuses,não há sol a sósaqui somos mestiços mulatoscafuzos pardos tapuias
tupinambclosamericarataís yorubárbaros(...)egipciganos
tupinamboclosyorubárbaros carataíscaribocarijós orientapuiasmamemulatos
tropicaburéschibarrosados mesticigenadosoxigenados debaixo do sol28
Essa nova taxionomia, que se esboça na letra da música “Inclassificáveis”,
explicita a dinâmica de desconstrução de identificações nacionais a partir da
qual se dá a construção de identificações transnacionais, representadas, pelo
compositor, num exercício neológico que transpõe para o domínio da língua o
movimento de miscigenação racial (e, obviamente cultural) inseparável da
dinâmica dos agrupamentos sociais.
Uma reflexão acerca da inocuidade de classificações absolutas também é
perceptível na música “O nome disso”, de Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra:
o nome disso é mundoo nome disso é terrao nome disso é globoo nome disso é
esferao nome disso é azulo nome disso é bolao nome disso é hemisférioo nome
disso é planetao nome disso é lugaro nome disso é imagemo nome disso é arábia
sauditao nome disso é austráliao nome disso é brasilcomo é que chama o nome
disso?o nome disso é rotaçãoo nome disso é movimentoo nome disso é representação
(...)o nome disso é chãoo nome disso é aldeiao nome disso é issoo nome disso é
aquio nome disso é sudãoo nome disso é áfricao nome disso é continenteo nome
disso é mundoo nome disso é tudoo nome disso é velocidadeo nome disso é itáliao
nome disso é equadoro nome disso é coisao nome disso é objetocomo é que chama o
nome disso?29
Trabalhando com a idéia da arbitrariedade dos signos lingüísticos, os autores
evocam significantes ligados às noções de localização e identificação e, a
partir da substituição sucessiva desses significantes, provoca-se o
esvaziamento de sentido dessas noções: nomes que designam nacionalidades,
podem, então, significar o mesmo que “lugar”, “imagem”, “idéia”, “aldeia”,
“aqui”, ou, não por acaso, “rotação”, “movimento”, “velocidade”, “tudo”...
Em outro trecho dessa mesma música, esse recurso de transmutação atinge as
convenções idiomáticas, em que a mescla de diferentes códigos e o rompimento da
sintaxe oficial acabam por gerar um certo non sense:
the word for what is is a name
the name of this é isso
o nome disso is place
el nombre of name space
el nombre do nome esfera
o nome disso é idéia30
Babel e seus tradutores
Fronteiras geográficas diluídas, fronteiras monetárias mescladas, fronteiras religiosas
em crise, fronteiras culturais recriadas. Esse cenário convulsivo provoca
múltiplos desdobramentos que afetam a constituição das identidades sociais, o
que, desde os primórdios, representou um forte apelo à natureza gregária do
homem.
Salta aos olhos, por exemplo, que a interlocução cultural se intensifica na
proporção que a disputa mercadológica fomenta o aperfeiçoamento e a
disponibilização de novas tecnologias centradas no fluxo de informações
multimidiáticas potencialmente acessáveis, em tempo real, em qualquer ponto do
planeta (ou fora dele!). Como já dissemos anteriormente, os contrastes
sócio-econômicos são fator relevante na distribuição dos recursos que
viabilizam esse “acesso ilimitado”. Tecnicamente, contudo, as barreiras se
diluem, evidenciando a condição cada vez mais provisória das fronteiras que se
estabelecem no desenho de novas identidades.
Nesse sentido, seria temerário, num esforço de classificação, tentar manter
categorias censitárias como cor, raça, classe, sexo, sem levar em consideração
a precariedade dos processos de auto-identificação, decorrente da fluidez de
valores que caracteriza o momento atual.
A crescente oferta de produtos que se destinam, em princípio, a otimizar o
desempenho da máquina social tem efeitos colaterais significativos. Aliado a
outras questões que formam a argamassa de contradições do modelo capitalista, o
progresso tecnológico tem servido de reforço a um sistema político-econômico
excludente que se projeta na própria noção de identidade. Torna-se cada vez
mais difícil conceber a vida urbana, com todos os seus incômodos, sem o aparato
tecnológico que coloca na ponta dos dedos o controle de um mundo cada vez mais
remoto. Ter acesso ao mundo on-line é uma modalidade recente de status social,
na qual está em gestação uma nova matriz de valores: interatividade asséptica e
acesso seletivo fazem do mais sutil movimento dos dedos, um gesto demiúrgico,
com o qual se abre ou se fecha a “janela” para o mundo real. Como valor
agregado a esse status, conquista-se a segurança do distanciamento:
A identidade do espaço da rua – principal espaço público das grandes cidades –
é a prescrição de que nenhuma identidade se constitua. Sou um habitante da
grande cidade se me despojo de qualquer pretensão de comunhão, se abdico da
crença de que pode haver, no espaço público, constituição de um grupo. O que
posso comungar com aqueles que se deslocam a meu redor é somente o desejo de
que possamos mutuamente nos ignorar. Anonimato, indiferença: a relação básica
ideal é que nenhuma relação se estabeleça.31
A natureza hostil do espaço urbano vem se constituindo, então, numa
justificativa para a impessoalidade prescrita para as relações sociais. A
virtualização das relações humanas, perigosamente alimentada pela
espetacularização da realidade nos meios de comunicação de massa,32 encontra respaldo na substituição
gradativa da exposição física por conexões eletrônicas. Enquanto no primeiro
caso alguns aspectos da identidade individual são necessariamente expostos, o
relacionamento virtual permite, dentre outras coisas, que essa identidade seja
mantida completamente em sigilo.
Os contatos efetuados pela Internet, por exemplo, relativizam a identidade em
todos os níveis: o interlocutor virtual pode estar falando de Manaus, embora
afirme estar em Bruxelas; pode ser um senhor de 50 anos, embora se identifique
como uma jovem adolescente; pode ser um homem, embora utilize um “nick”
feminino, e assim por diante. Como demonstram os estudos do jornalista Carlos
Magno Mendonça,33 a rede mundial permite a reconstrução contínua da identidade,
pela qual o “corpo virtual” pode assumir a feição desejada.
Um trecho da música “Diferente”, especialmente em sua versão para o vídeo,
coloca-nos diante de uma reflexão importante.
eles são tão parecidos mas não como nós
eles falam outra língua pela nossa voz
eles são tão bonitos
mas não são como a gente
eles vêm de muito antes que nossos avós
eles fazem companhia mas estamos sós34
O vídeo-poema constrói-se sobre a imagem de um feto, ou seja, de um ser ainda
em formação, que se faz e se desfaz continuamente na tela, em constante
mutação; um texto paralelo faz alusões a figuras de uma mitologia
contemporânea: super-heróis, heróis e anti-heróis dos quadrinhos ou do cinema –
seres híbridos, de origem desconhecida, ET’s que vêm de um tempo e de um espaço
irreconhecíveis, com os quais sempre é possível estabelecer algum tipo de
relação, muitas vezes amistosa, mas sempre pontuada pelo estranhamento. “Eles”
não são mais os invasores inimigos, que se podia identificar por bandeiras e
estandartes, mas são “estranhos”, “diferentes”, não são como “nós”. Mas será
que não estamos também começando a processar uma revisão inédita das fronteiras
que demarcam essas diferenças, criando uma possibilidade de assimilação diversa
da antiga forma de mesclagem cultural via dominação?
Por esse prisma, observamos que a subjetividade fluida, flexível e extremamente
dinâmica que se projeta no mundo virtual coloca em evidência a natureza
paradoxal dos tempos atuais, mas, ao mesmo tempo, parece apontar para novos
posicionamentos diante dessas contradições.
Se, por um lado, essa “liberdade” da qual o sujeito contemporâneo goza no plano
virtual reflete a assustadora ausência de identidades fixas, ela traz
implícito, também, o desmantelamento de preconceitos ainda subsistentes nas
relações sociais. A aceitação de que se pode intercambiar crenças, preferências
e conhecimentos com aquele que é o “diferente”, o “estranho”,
“não-identificável”, pode impulsionar transformações positivas.
Trata-se, na verdade, de um exercício estimulante que revela o desgaste de
valores alicerçados em estruturas já demolidas, e que pode resultar na
consolidação de novos modelos comportamentais e novas formas de convívio social
baseados no compartilhamento gratuito de afinidades. Quem sabe, em lugar da
anomia que caracteriza esse período de incertezas, venha a se forjar uma nova
identidade menos atrelada a categorias prévias, liberta das classificações
sexistas, das limitações sócio-econômicas, das fronteiras geo-políticas, das barreiras
lingüísticas.
Talvez aí, como esperava Benjamin, resida o importante papel reservado à
poesia, e às artes de maneira geral: que sejam capazes de transitar com alguma
impunidade entre as benesses e as mazelas do “admirável mundo finissecular”, para
que desse trânsito resulte uma constante tradução crítica da linguagem híbrida
com a qual se expressa a nova identidade contemporânea, certamente em
construção em algum lugar entre o real e o virtual.
Arnaldo Antunes: alguns dados
biográficos
Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho nasceu 1960, na cidade de São Paulo e, desde
1980, faz música, poesia, vídeo, performances, shows e intervenções em outros
meios. Integrou o grupo de rock Titãs, de 1982 a 1992, com o qual gravou sete
álbuns lançados pela WEA Brasil: Titãs (1993), Televisão (1985), Cabeça
dinossauro (1986), Jesus não tem dentes no país dos banguelas (1987), Go back –
ao vivo em Montreux (1988), Õ blésq blom (1989) e Tudo ao mesmo tempo agora
(1991). Após sua saída da banda, participou como compositor nos CDs
Titanomaquia (1993), Domingo (1995), Titãs – acústico (1996) e Volume 2 (1998).
No exterior, teve algumas faixas de seus CDs solos35 incluídas em várias
antologias musicais, tais como Beleza tropical 2 – New! More! Better!,
compilada por David Byrne – Luaka Bop/Warner Bros; EUA/BRASIL 2 mil – the soul
of bass-o- novo, compilada por Béco Dranoff e Marc Hollander – Ziriguiboom
Discos/Crammed Discs, Bélgica. Participou, também, de projetos coletivos
produzidos no exterior, como os CDs Onda sonora – Red hot + Lisbon – Red Hot
Organization (Arnaldo Antunes, Arto Lindsay e Davi Moraes) e Freezone 5: the
radio is teaching my goldfish ju-jitsu – SSR/Crammed Discs, Bélgica (Arnaldo
Antunes e Mitar Subotic).
Já desenvolveu trilhas sonoras para espetáculos de dança, inclusive para a Cia.
de Dança O Corpo, de Minas Gerais, e para a performance Teresa, do artista
plástico Tunga. O videoclipe de “Música para ouvir”, dirigido por Andrew
Waddington e Toni Vanzolini, recebeu o prêmio de Melhor Clip Pop Brasileiro, no
MTV Awards 1999.
Arnaldo Antunes tem composições em parceria, dentre outros, com Alice Ruiz,
Arrigo Barnabé, Arto Lindsay, Carlinhos Brown, Cazuza, Edgard Scandurra,
Gilberto Gil, João Donato, Jorge Benjor, Lenine, Marina Lima, Marisa Monte,
Paulo Leminski, Péricles Cavalcanti, Roberto Frejat, Roberto de Carvalho e
Titãs, entre outros. Cerca de 150 composições suas já foram gravadas por outros
artistas, tais como: Gal Costa, Jorge Benjor, Marisa Monte, Gilberto Gil, Maria
Bethânia, Carlinhos Brown, Ney Matogrosso, Sandra de Sá, Adriana Calcanhoto,
Marina Lima, Rita Lee, Cássia Eller e Ornella Vanoni.
Dois de seus cinco livros36
foram adotados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), Ministério da
Educação (MEC), Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FAE) e Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo: As coisas e 2 ou + corpos no mesmo espaço.
Teve poemas incluídos nas antologias Nothing the sun could not explain – 20
contemporary brazilian poets – Sun & Moon Press, Los Angeles, EUA (1997);
Norte y sur de la poesía iberoamericana – Editorial Verbum, Madrid, Espanha
(1997); Antologia poética: Brasil-Colômbia – para conocernos mejor – Ed. Unesp,
São Paulo, Brasil (1997); Esses poetas – uma antologia dos anos 90 – Heloisa
Buarque de Holanda, Aeroplano Editora, Rio de Janeiro, Brasil (1998); Dinge
zwischen leben, kunst & werk – Alemanha, (1999) e Festa da língua
portuguesa 2 – vozes poéticas da lusofonia – Câmara Municipal e Instituto
Camões, Sintra, Portugal (1999). Editou as revistas de poesia Almanak 80
(1980), Kataloki (1981) e Atlas (1988).
Participou de diversas mostras de poesia visual no Brasil e no exterior, dentre
outras: Caligrafias, Galeria Cultura, Sec. de Estado da Cultura, SP (1983);
Poesiaevidência, PUC, SP (1983); Palavra Imágica, Museu de Arte Contemporânea
(MAC), SP (1987); Paraver, FASM, SP (1993); Transfutur – Visuelle Poesie,
Kassel (1990); Pöesïe – digitale dichtkunst, Munique (1992); Arte Cidade – A
Cidade sem janelas, Matadouro Municipal, Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo (1994); Inside Brazil, Long Beach Museum of Art, CA, EUA (1995);
Manipulated Word: Text & Image, Miami, FL, EUA (1996); VI Bienal de Havana,
Cuba (1997); XXIV Bienal de São Paulo, Brasil (1998); Hand made, com Walter
Silveira (1998), Curitiba, Brasil.
Notas:
1. VALÉRY, 1934.
2. VALÉRY, 1934.
3. CALABRESE. 1987. p. 28.
4. ANTUNES, 1991.
5. Cf. o tópico "Arnaldo Antunes: alguns dados biográficos".
6. ANTUNES, 1991.
7. Com exceção do disco Um som, Arnaldo Antunes é responsável, sozinho ou em parceria,
pelos projetos gráficos de seus trabalhos. Cf. ANEXO I, onde fizemos o registro
de algumas informações técnicas que julgamos relevantes no material pesquisado.
8. Esse recurso gráfico é utilizado nas publicações editadas pela Iluminuras.
No entanto, no exemplo analisado, ele “interfere” no texto poético.
9. ANTUNES, 1991.
10. MALLARMÉ, 1945.
11. Cf. CAMPOS et al. 1975.
12. Cf. CAMPOS et al. 1975.
13. TELES, 1999. p. 114.
14. É importante que fique claro que utilizamos o termo “modernistas” num sentido
mais genérico, como forma de remeter às vanguardas do início do século, não
privilegiando, mas obviamente incluindo, o movimento especificamente denominado
Modernista.
15. ANTUNES. “Nome não”, poema publicado no livro Tudos e, posteriormente, no
Cd e no vídeo Nome.
16. Cf. CASTRO, 1993.
17. ANTUNES, 1997.
18. MACHADO, 1996. p. 166.
19. DUARTE, 1999. p. 52.
20. VIRILIO, 1998.
21. ANTUNES, 1996. Cd O silêncio.
22. SANTOS, 1999.
23. LISPECTOR, 1998. p. 15.
24. CANCLINI, 1998. p. 13.
25. HANNERZ, 1994. p. 251.
26. HALL, 1998. p. 77.
27. PEREIRA, 1999. p. 128.
28. ANTUNES, 1996. Cd O silêncio.
29. ANTUNES, 1995. Cd Ninguém.
30. ANTUNES, 1995. Cd Ninguém.
31. SANTOS, 1999. p. 133.
32. Cf. CANCLINI, 1998.
33. Cf. MENDONÇA, 1999.
34. ANTUNES, 1993. Cd Nome.
35. Cf. o tópico “Discografia”.
36. Cf. o tópico “Bibliografia”.
Bibliografia*
ANTUNES, Arnaldo. Ou E. São
Paulo: edição do autor, 1983.
ANTUNES, Arnaldo. Psia. 3.ed.
corrigida. São Paulo: Iluminuras, 1991.
ANTUNES, Arnaldo. Tudos. 4.ed.
São Paulo: Iluminuras, 1998.
ANTUNES, Arnaldo. As coisas.
6.ed. São Paulo: Iluminuras, 1998.
ANTUNES, Arnaldo. 2 ou + corpos no mesmo
espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997. (Coleção Signos, 23).
* Não dispúnhamos, até o término desta pesquisa, das informações catalográficas
do livro Nome.
Discografia
ANTUNES, Arnaldo. Ninguém. São
Paulo: BMG Ariola/RCA, 1995.
ANTUNES, Arnaldo. Nome. São
Paulo: BMG Ariola/RCA, 1993.
ANTUNES, Arnaldo. O silêncio.
São Paulo: BMG Ariola/RCA, 1996.
ANTUNES, Arnaldo. Um som. São
Paulo: BMG Ariola, 1998.
Videografia
NOME. Realização de ANTUNES, Arnaldo; CATUNDA, Celia; MISTRORIGO, Kiko; MOREAU,
Zaba. São Paulo: BMG/Ariola, 1993. 60min. cor.
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SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. 2ed. São Paulo: Nobel, 1986.
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SZAMOSI, Géza. Tempo e espaço: as dimensões gêmeas. Trad. Jorge Enéas Fortes e
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Petrópolis: Vozes, 1999. 448p.
VALÉRY, Paul. Pièces sur l’art. Paris, 1934 apud BENJAMIN, Walter. A obra de
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VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito e ficção. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1996. 225.
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Trad. Paulo Roberto Pires. 2ed. rev. amp. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1993. 160p.
VIRILIO, Paul. Os motores da história. In: ARAÚJO, Hermetes (Org.).
Tecnociência e Cultura. Estação Liberdade, São Paulo, 1998. (Mimeogr.)
Internet
http://www.uol.com.br/arnaldoantunes
ANEXO I - Informações adicionais
Nome. Projeto multimediático integrado por Cd, video-home e livro (não foi
possível adquirir um exemplar deste último; nossa análise foi feita apenas a
partir do Cd e do vídeo). O Cd foi gravado entre junho e julho de 1993
(estúdios ArtMix e Salamandra); capa e encarte com projeto gráfico de Arnaldo
Antunes, Zaba Moreau, Celia Catunda e Kiko Mistrorigo; apresenta as letras das
músicas; produção: Arnaldo Antunes, Paulo Tatit e Rodolfo Stroeter; músicos
participantes: Alexandre Sobral, Arnaldo Antunes, Arto Lindsay, Edgard
Scandurra, Edson X, João Donato, Marisa Monte, Octávio Paixão, Paulo Tatit,
Péricles Cavalcanti, Rodolfo Stroeter, Zaba Moreau, Zé Eduardo Nazário.
Faixas:
1. Fênis (Arnaldo Antunes)
2. Diferente (Arnaldo Antunes)
3. Nome (Arnaldo Antunes)
4. Tato (Arnaldo Antunes)
5. Cultura (Arnaldo Antunes)
6. Se não se (Arnaldo Antunes)
7. O macaco (Arnaldo Antunes)
8. Carnaval (Arnaldo Antunes)
9. Campo (Arnaldo Antunes)
10. Entre (Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti)
11. Luz (Arnaldo Antunes)
12. Direitinho (Arnaldo Antunes)
13. Não tem que (Arnaldo Antunes)
14. Dentro (Arnaldo Antunes)
15. Alta noite (Arnaldo Antunes)
16. Pouco (Arnaldo Antunes
17. Nome não (Arnaldo Antunes)
18. Soneto (Arnaldo Antunes)
19. Imagem (Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti)
20. Armazém (Arnaldo Antunes e Arto Lindsay)
21. Acordo (Arnaldo Antunes)
22. E só (Arnaldo Antunes)
23. Agora (Arnaldo Antunes)
Ninguém. Gravado entre novembro de 1994 e janeiro de 1995 (estúdios Mosh e Nas
nuvens); capa e encarte com projeto gráfico de Arnaldo Antunes e Zaba Moreau;
apresenta as letras das músicas; fotos: Gal Oppido; produção: Liminha; músicos
participantes: Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra, Jorge Mautner, Liminha, Paulo
Tatit, Pedro Ito, Peter Price, Zaba Moreau.
Faixas:
1. Ninguém (Paulo Tatit, Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
2. Consciência (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
3. Nome disso (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
4. Nem tudo (Toni Bellotto, Arnaldo Antunes)
5. Alegria (Arnaldo Antunes)
6. Budismo moderno (Arnaldo Antunes, sobre poema de Augusto dos Anjos)
7. Fora de si (Arnaldo Antunes)
8. Minha meu (Arnaldo Antunes)
9. Lugar comum (João Donato, Gilberto Gil)
10. Judiaria (Lupicínio Rodrigues)
11. Inspirado (Edvaldo Santana, Arnaldo Antunes)
12. No fundo (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
13. Quero (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
14. Ninguém no carnaval (Liminha, Arnaldo Antunes)
O silêncio. Gravado entre junho e julho de 1996 (estúdios ArtMix e Mosh;
Salamandra); capa e encarte com projeto gráfico de Arnaldo Antunes e Zaba
Moreau; apresenta as letras das músicas; produção: Mitar Subotic; músicos
participantes: Arnaldo A. Nora Antunes (pai), Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown,
Chico Sciense, Edgard Scandurra, Mitar Subotic, Paulo Tatit, Pedro Ito, Peter
Price, Zaba Moreau; Lua, Bel, João, Tati, Taís, Rosa, Celeste e Miguel (coro
infantil, em O silêncio)
Faixas:
1. O silêncio (Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes)
2. E estamos conversados (Paulo Tatit, Arnaldo Antunes)
3. Poder (Arnaldo Antunes, Tadeu Jungle)
4. Eva e eu (Péricles Cavalcanti, Arnaldo Antunes)
5. Macha fêmeo (Paulo Tatit, Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer)
6. Inclassificáveis (Arnaldo Antunes)
7. Que te quero (Edgard Scandurra, Peter Price, Arnaldo Antunes)
8. Desce (Arnaldo Antunes)
9. Juízo final (Nelson Cavaquinho, Élcio Soares)
10. O que swingnifica isso? (Arnaldo Antunes)
11. O buraco (Arnaldo Antunes)
12. Desce (versão 2) (Arnaldo Antunes)
13. O buraco do espelho (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
Um som. Gravado entre abril e junho de 1998 (estúdios Rosa Celeste e 302;
Lincoln Barbosa e Real World); capa e encarte com projeto gráfico de Barrão e
Fernanda Villa-Lobos; fotos: Bob Wolfenson, Vicente de Mello e Barrão;
apresenta as letras das músicas; produção: Chico Neves; músicos participantes:
Arnaldo Antunes, Bartolo, Cecília Spyer, Chico Neves, Davi Moraes, Edgard
Scandurra, Fabio Tagliaferri, João Barone, Marcos Suzano, Moreno Veloso, Paulo
Freire, Paulo Tatit, Pedro Ito, Pedro Sá, Pedro Sá, Red Dog, Saadet Türkoz,
Toninho Ferragutti, Zaba Moreau.
Faixas:
1. Música para ouvir (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
2. Cinzas (Cassiano)
3. As árvores (Jorge Benjor, Arnaldo Antunes)
4. Engrenagem (Arnaldo Antunes)
5. Quase tudo (Péricles Cavalcanti, Arnaldo Antunes)
6. Socorro (Arnaldo Antunes, Alice Ruiz)
7. Além alma (Paulo Leminski, Arnaldo Antunes)
8. Se no meio do que você tá fazendo você pára (Arnaldo Antunes, Nando Reis)
9. Dinheiro (Jorge Benjor, Arnaldo Antunes)
10. O sol (Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra)
11. Decida (Edgard Scandurra, Arnaldo Antunes)
12. Na ativa (Arnaldo Antunes)
13. Fim do dia (Arnaldo Antunes, Paulo Miklos)
14. Doce do mar (Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes)
15. Volte para o seu lar (Arnaldo Antunes)
16. Pare o crime (Stop the crime) (Junior Murvin; versão: Arnaldo Antunes)
17. Um som (Paulo Tatit, Arnaldo Antunes)
Ou E. Álbum de poemas visuais; edição do autor, com acabamento artesanal;
tiragem de 500 exemplares (não foi possível conseguir um exemplar para
consulta).
Psia. As duas primeiras edições saíram pela Ed. Expressão (1986 e 1987) e a 3ª
edição pela Iluminuras (1991); atualmente na 4ª edição; projeto gráfico e
diagramação: Arnaldo Antunes; capa: caligrafia de Go.
Tudos. Quatro edições até o momento: 1ª e 2ª (1990), 3ª (1993) e 4ª (1998),
todas pela Ed. Iluminuras; projeto gráfico e diagramação: Arnaldo Antunes e
Zaba Moreau.
As coisas. A primeira edição é de 1992 (Prêmio Jabuti de poesia); capa: Arnaldo
Antunes e Zaba Moreau; ilustrações de Rosa Moreau Antunes (filha do autor).
2 ou + corpos no mesmo espaço. Atualmente na 2ª edição, o livro faz parte da
Coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos; capa e projeto gráfico: Arnaldo
Antunes; acompanha um CD com “leitura poética” de 13 poemas do livro, na voz do
autor.
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