A inteligência artificial na personagem Emília, de Monteiro Lobato, e em David, de StevenSpielberg

Mariana Dutra

São percebidas, na literatura e nas artes em geral, as influências dos avanços tecnológicos do último século. Na literatura surgem novos temas, novas técnicas são utilizadas, como, por exemplo, a literatura na web, que permite novas leituras de textos já consagrados e a criação de novos, alguns, inclusive, interativos. No cinema, a ficção científica descreve o apocalipse, simula vidas inteligentes e navega entre o espaço e o futuro. A inteligência artificial, representando um desses avanços tecnológicos, a princípio era um jogo de xadrez no computador e hoje cria máquinas com capacidades cognitivas até então exclusivas dos humanos.

Monteiro Lobato, célebre autor da série de livros infantis O sítio do picapau amarelo, antecipou essa tecnologia em sua literatura. A boneca Emília, personagem do Sítio, juntamente com o Visconde de Sabugosa, introduz a figura do cyborg na literatura brasileira, quando os seres artificiais eram ainda apenas uma suposição.

Partindo do conceito de Haraway, em que cyborgs são seres híbridos, "criaturas simultaneamente animal e máquina que habitam mundos ambiguamente naturais e construídos" , a personagem Emília, de Lobato, pode ser lida como um cyborg. Seu hibridismo é reconhecido em sua construção, feita a partir de uma saia velha, e na condução de seu pensamento.

A lógica de Emília ultrapassa as limitações de um ser humano comum e lhe propicia diferentes interpretações da realidade. Um exemplo é constatado no livro Memórias da Emília, no qual há uma conversa desta com um anjo que, por estar com a asa quebrada, foi levado ao Sítio. Observadas as limitações do anjo, Emília se dispôs a dar-lhe algumas explicações: “Árvore é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; que em vez de braços tem galhos; que em vez de unhas tem folhas; que em vez de andar falando da vida alheia e se implicando com a gente dá flores e frutas” . Emília desorganiza a realidade e, para compreendê-la, reorganiza-a utilizando seu apurado espírito crítico.

Para Lévy, um ser racional “deveria seguir as regras da lógica ordinária e não contradizer de forma por demais grosseira a teoria das probabilidades nem os princípios elementares da estatística” . Essa é sua definição mínima para a questão da racionalidade. Emília supera essa lógica ordinária com sua forma própria de conduzir seu pensamento, contrariando as expectativas que se criam em torno de uma boneca e de um ser racional.

Por outro lado, David, personagem de Steven Spielberg em Inteligência artificial, é a própria figura do cyborg. O narrador do filme, em uma de suas primeiras cenas, descreve o mundo em que David foi criado:

Isso foi após as calotas glaciais derreterem pelo efeito estufa e os oceanos engolirem tantas cidades litorâneas do mundo. Amsterdã, Veneza, Nova York perdidas para sempre. Milhões de pessoas ficaram desabrigadas. O clima se tornou caótico. Centenas de milhões de pessoas morreram de fome nos países pobres. Nos outros, a prosperidade foi mantida quando os governos do mundo desenvolvido introduziram sanções que restringem a gravidez. O que explica por que os robôs que não tinham fome nem consumiam recursos além dos da fabricação tornaram-se um elo econômico tão essencial à estrutura da sociedade.

Mas David não foi construído unicamente com objetivos econômicos. Sua principal função seria a de preencher o vazio gerado nas famílias que não possuíam autorização para ter filhos. Dessa forma, ele foi idealizado com aparência de menino, apesar de seu interior ser constituído por quilômetros de fibras. O hibridismo de David é ainda mais evidente no que tange aos sentimentos. Ele foi programado para amar, para possuir artificialmente sentimentos humanos.

David e Emília possuem consciência da condição de sua existência. Um como robô, a outra como boneca, ambos imortais. Ao falar da morte, Emília demonstra ter essa consciência: “Não pretendo morrer. Finjo que morro, só” . A simulação da morte não surge do desejo de descanso, mas sim do desejo de brincar. Sua consciência é semelhante à do cyborg de Haraway: “O cyborg não reconheceria o paraíso, não é feito de barro e não pode sonhar com a volta ao pó” . Haraway propõe, nesse trecho, uma diferenciação entre cyborg e humano no que tange à grande preocupação desse último: a morte.

Assim também é David. Ao conversar com sua “mãe”, ele a questiona sobre a possibilidade da morte. Diante da resposta desta, “um dia eu morrerei”, o menino diz: “eu ficarei sozinho”. David sabe que a morte não faz parte de sua vida, mas, por ser um robô especial, programado para amar, ele contraria algumas expectativas, sendo capaz de sonhar, de ser feliz e de sofrer. A possibilidade (ou impossibilidade) de sua morte não o atinge. O que o faz sofrer é saber que quem ele ama, um dia, morrerá.

Emília, em sua vida no Sítio, é o símbolo da liberdade, que é caracterizada, principalmente, pela ausência de medo: ela não tem medo do desconhecido, não tem medo de dizer o que pensa. Haraway afirma que o cyborg é “um ser verdadeiro, livre finalmente de toda e qualquer dependência, um homem no espaço” . Emília é livre para construir e desconstruir sua realidade, na medida em que é a “desarrumadora de ordens impostas”.

A liberdade de David é percebida em sua busca da Fada Azul, que representa a busca do seu sonho de se tornar um menino de verdade. Ao ser abandonado pela mãe, ele segue rumo ao desconhecido. Ele não precisa comer, não precisa dormir, precisa apenas alcançar o seu sonho. Conhecendo mundos diferentes, não se amedronta diante da possibilidade do novo, sendo, assim, tão arrojado quanto Emília. Contudo, David sente os medos de uma criança comum, ou de qualquer ser humano, ao querer proteção e afeto diante de alguma ameaça.

Seguindo o sentido de liberdade, o cyborg ultrapassa o estágio de unidade original, visto que é um ser construído. Haraway afirma que "uma história de origem, no sentido humanista 'ocidental', depende do mito da unidade original, da totalidade êxtase e terror, representados pela mãe fálica da qual todos os humanos têm de separar-se na tarefa do desenvolvimento individual e da história" . Emília não apenas se enquadra nesse quadro, como tem consciência dele. No início de suas Memórias, há o desejo de narrar sua “fabricação”: “nasceu” de uma saia velha, tendo os olhos de retrós e, após tomar uma pílula, começou a falar. Apesar de considerar a família do Sítio a sua família, Emília não tem nenhuma identificação com as personagens que possa ser caracterizada como uma relação mãe-filha.

Ao contrário de Emília, David possui uma identificação com Mônica, a quem chama de mãe. Essa identificação foi provocada, através da programação de David. E o menino vive intensamente essa relação, não no sentido de ter uma unidade original, e sim no sentido de ter alguém a quem dedicar o seu amor.

Não sabendo como nem por quem foi produzido, David tem como única lembrança de seu começo histórico a imagem de um pássaro. Somente ao final do filme ele descobre que o pássaro é o símbolo da Cybertronics, empresa responsável por sua criação, e que seu criador é o Professor Hobby. Entretanto, mesmo com essa descoberta, David não desenvolve nenhuma forma de afeto por Hobby, pois continua programado para amar Mônica.

Contrapondo-se à tecnologia moderna, Emília começou a falar ao tomar uma pílula fabricada pelo doutor Caramujo. A pílula de Emília estava dentro da barriga de um “sapo-guardião” que a tinha engolido, juntamente com outras 98, como forma de castigo por dormir enquanto deveria trabalhar. Lobato cria, assim, um mundo de fábulas, em que animais conversam e trabalham, paralelo a um mundo tecnológico, em que uma boneca de pano toma uma pílula para começar a falar.

David, que já possuía todas as funções sensoriais humanas, dependeu da tecnologia para começar a amar. Mônica, a receptora desse amor, ao tomar a decisão de programar David para essa função, pressionou uma região específica do pescoço do menino e disse as seguintes palavras: “cirro, Sócrates, partícula, decibel, furacão, golfinho, tulipa, Mônica, David, Mônica”. No instante seguinte, David chamou-a de mãe, quando antes a chamava pelo nome. Assim, os dois cyborgs, David e Emília, dependeram da tecnologia para se aproximarem da figura humana.

Lévy cita três capacidades cognitivas humanas: a faculdade de perceber, a de imaginar e a de manipular. E conclui: “a combinação destas três faculdades, bem como sua articulação com tecnologias intelectuais, permitem dar conta de todas as realizações do pensamento dito abstrato” . David e Emília são capazes de realizar essa combinação.

Em Emília, essas três faculdades são facilmente verificadas. A percepção que ela tem do Sítio é o que lhe permite sonhar e imaginar situações diversas. E a capacidade de manipular o seu ambiente faz com que ela alcance seu mundo imaginário, comprovando que “a capacidade de simular o ambiente e suas reações tem, certamente, um papel fundamental para todos os organismos capazes de aprendizagem”.

As três faculdades também são notadas em David. É sua percepção que indica o caminho que ele deve percorrer em sua busca da Fada Azul, cuja figura não passa de resultado de sua própria imaginação. Em sua busca, ele manipula o ambiente, criando caminhos e soluções para os obstáculos.

A personagem David vive em um mundo ultramoderno, repleto de máquinas e seres artificiais, num mundo em que as transformações são constantes e a evolução é visível. Emília, por sua vez, vive em um mundo natural: um sítio, onde a rotina consiste em passear por entre as árvores, comer doces caseiros e brincar. Embora seja grande a diferença entre esses universos, a base da construção dessas personagens é a tecnologia, seja ela a do século XX, quando Lobato cria a inesquecível Emília, seja a do século XXI, quando Spielberg dá vida ao robozinho David. Contudo, a construção de tais personagens teria sido impossível, se seus autores não tivessem procurado explicitar as grandes possibilidades ficcionais da tecnologia de seu tempo. Explorando as certezas e as obscuridades das revoluções tecnológicas de suas épocas, Lobato e Spielberg obtêm um cruzamento perfeito entre técnicas e relatos, entre imagens e diálogos, entre arte e ciência. Dessa forma, contribuem para que diminuam as distâncias entre os campos do conhecimento, a produção artística e a vida cotidiana de cada um de nós.

Notas

HARAWAY, 1994. p. 224.
LOBATO, 1976. p. 15.
LEVY, 1993. p. 152.
LOBATO, 1976. p. 7.
HARAWAY, 1994. p. 246.
Ibidem. p. 245.
TÁVOLA, 1997. p. 10.
HARAWAY, 1994. p. 245.
LEVY, 1993. p. 157.
Ibidem. p. 157.

Bibliografia:

ALDISS, Brian. Superbrinquedos duram o verão todo: e outros contos de um tempo futuro. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,1993.
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1976.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1967.
TÁVOLA, Artur da. Monteiro Lobato: O imaginário (60 anos da boneca Emília). Brasília: Senado Federal, 1997.
HARAWAY, Donna. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In.:
HOLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Filmografia:

INTELIGÊNCIA artificial. Steven Spielberg, 2001.