Drummond na contemporaneidade

Maria Luiz Tolentino

Hoje, a fragmentação dos sentidos ocorre, numa incessante cadeia, desprendendo-se do território dos conceitos fixos, onde reinava o império das grandes teorias em que tudo era formalmente explicado, para a felicidade geral dos seres humanos. Na contemporaneidade, os sentidos ancoram-se na pluralidade das novas interpretações. A palavra e o sujeito fragmentam-se, numa coincidente busca de novos sentidos a explorar. Nessa movimentação de desprendimento, ou de rompimento com as formas rígidas do pensar, é que surge o leitor de agora, com diversas possibilidades de criar e recriar novas leituras e releituras. Contemporâneo é o sujeito que se fragmenta como herdeiro dos versos de Mallarmé e Baudelaire, onde o significante não tem suporte definido. Agora existe uma infinita rede: o leitor do agora exercita uma leitura inquietante, desobrigando-se do sentido único e lógico, inventado pelos senhores da razão.

O que se privilegia na contemporaneidade é uma escrita cuja lógica pode ser chamada de a re-escrita da modernidade, ou seja, a capacidade de combinar arbitrariamente fragmentos de frases, pedaços de informações, resíduos vitais da escrita, que irão ser pensados e repensados por uma outra razão.

Dessa escrita surge o verso livre dos poetas da tradição moderna, de onde escolhemos o poeta Carlos Drummond de Andrade, cuja escrita se faz com a emoção e com os fragmentos da memória que se configura como força ativa do passado. O poeta, iniciou seus versos num ambiente de mundo moderno, realizando uma escrita atemporal que se arrasta até a contemporaneidade. Seus procuram resgatar a significativa experiência do homem. Extraímos da poética de Drummond elementos que nos remetem à idéia de buscas e dúvidas a respeito das certezas de antes, e que, agora, são postas em questionamento e já não trazem mais a marca do definido e sim das incertezas em que o poeta se lançou. A partir daí, percebemos que ser gauche, em Drummond, indica as características e os traços do sujeito contemporâneo, homem do agora cuja identidade entrou em colapso em diferentes momentos e não são mais unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de cada um há identidades contraditórias. Assim também é caracterizado o ser gauche, tema explicado por Affonso Romano de Sant’Anna:

gauche é a palavra em que cristalizou a essência da personalidade estética do poeta. Significa basicamente o indivíduo desajustado. O gauche é caracterizado pelo contínuo desajustamento entre a sua realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se opor conflituosamente.

E nesse duelo das tensões geradas entre o sujeito e o objeto é que percebemos a voz dos poemas, denunciando a condição da existência do ser multidirecionado, perdido no caminho, como a inexplicável pedra que suscitou indagações e especulações nas quais vamos encontrar o sujeito finissecular: homem anônimo, sem rumo, sem identidade, à procura de máscaras para a sobrevivência num mundo que se desprendeu da natureza, para se enraizar no mundo inseguro das produções humanas, homem que encontra seu valor no mundo pelo preço de sua força de trabalho, desprovido dos valores humanos.

Quando retrata o gauche, Drummond mostra o sujeito desajustado, deslocado e conflituoso o que nos remete à idéia de um ser que lida com o mundo de forma desarmônica, contraditória e fragmentada: trata-se do sujeito contemporâneo, em busca de uma identidade em crise. No poema “A ilusão do Migrante”, está explicitada a idéia do homem diverso, desagregado, do ser múltiplo:

Quando vim, se é que vim
De algum para outro lugar
O mundo girava, alheio
À minha baça pessoa,
E no seu giro entrevi
Que não se vai nem se volta
De sítio algum a nenhum.

O elemento que perpassa o poema é a voz do sujeito no entre-lugar, ou sem lugar: se tinha a certeza de sua origem acabou por perdê-la. Indaga sobre seu nascedouro e termina por não saber o quando, o onde, nem o tempo ou o lugar de suas origens. Configura-se como um sujeito perdido nas entranhas de seu tempo e seu espaço, imerso numa diversidade temporal e espacial, com uma identidade posta em questão: o próprio migrante. Há, no entanto, uma distinção entre o espaço e o lugar: os lugares permanecem fixos, neles encontramos as raízes, entretanto, o espaço pode ser cruzado pelo migrante que o atravessou através do tempo e se perdeu na sua ilusão que é ilustrada na seguinte passagem:

Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
Na ilusão de ter saído,
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado

Assim o poeta expressa o sentimento daquele que atravessa as fronteiras de seu lugar natural, como ele próprio o fez, e que o dispersa de sua terra natal, mas que, paradoxalmente, retém fortes vínculos com seu lugar de origem e com suas tradições, em contraste com seu passado e com a ilusão de um rompimento concreto. A presença constante desse ser migrante é notada no eixo da contemporaneidade que, ao cruzar os espaços através do tempo, distancia-se de seus começos e se encontra em constante estado de mudança. Esse deslocamento espacial vivenciado cria possibilidades de mil direções. Isso ocorre, porém, com uma certa singularidade: sendo ele um sujeito que entra em contato com novos modos de vida, é condenado a relacionar-se com essas novas formas de viver e pensar, sem contudo, incorporar visceralmente esses novos modos de vida.

O sujeito adquire uma identidade adaptável aos novos lugares e a outras circunstâncias. A posição desse sujeito é como a de um andarilho, que, longe de suas origens, fragmenta-se e se torna um desconhecido para si mesmo em detrimento do novo espaço que é obrigado a conquistar. Há uma tensão entre sua identidade de homem enraizado e sua identidade transitória, exigida pelas demandas dos novos e dos velhos tempos, como em Ulisses, que encena a necessidade de deslocamento do homem para conhecer outros mundos. Mesmo com essa movimentação de idas e vindas, o sujeito carrega os traços de suas tradições, linguagens e suas historias particulares, nessas estão as marcas de sua condição de ser como percebemos nessa passagem do poema em estudo: “A ilusão do migrante”,

Que carregamos as coisas
moldura da nossa vida
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente em nossas fundas paredes

Nesse transitar há uma voz do passado, como se fosse um eco que ressoa, revelando seu lugar de origem e a busca do que passou. É o sujeito híbrido do nosso tempo, transportado entre fronteiras. Encontramos em Drummond a característica do poeta migrante, pertencente a dois mundos: o provinciano itabirano e o urbano fluminense. Trata-se de uma poesia em trânsito que, em seus versos, traz a voz de Minas. O poeta explora o lugar de origem, a cidade em que nasceu, a vida interiorana. Sua poesia recai sobre as dores atuais, o homem da rua, as cidades históricas de Minas. Mesmo tratando-se de uma região específica do país, nada possui de provinciano, seus versos se realizam reunindo a contradição do local e do universal. A casa é o lugar fixo e o tempo é algo que se esvai. É a estrada que o homem percorre em busca de suas raízes e ao mesmo tempo de seu abandono, é o homem sem rosto, desmascarado pelo seu tempo é o que percebemos no poema “A casa do tempo perdido”:
...Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar
no bater e bater.

No poema “Acordar, Viver”, o poeta trata o tempo como um ato de despedida da vida:

como acordar sem sofrimento?
recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a terra e sua púrpura demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.


O sujeito poético faz do tempo o algoz da existência humana, insere seu sofrimento numa realidade de mundo frio e pétreo. A consciência do dilaceramento da vida pelo tempo abre as feridas existenciais e nelas há o silêncio das perguntas sem respostas. Das perguntas sem respostas, perguntas existenciais, surge a conclusão de que a vida é pétrea. O indivíduo caminha para assumir a tragédia que a vida comporta. Existe a consciência da destruição e da expectação da morte que funcionam como elementos integradores da vida e ao mesmo tempo revelam o sentimento de angústia diante da certeza da transitoriedade da vida que fatalmente caminha para o fim. E talvez por isso o poeta refere-se à vida como sendo pétrea, fria como o mármore que encobrirá o corpo. No poema a “Carne envilecida”, o elemento central traduz-se pela presença da finitude, do descontínuo e da transitoriedade do ser. O corpo é vítima da ação demolidora do tempo:
A carne encanecida chama o Diabo
E pede-lhe consolo. O diabo atende
Sob as mil formas de êxtase transido,
Volta a carne a sorrir, no vão intento
De sentir outra vez o que era graça
De amar em flor e em fluida beatitude.
Mas os dons infernais são novo agravo
À envilecida carne sem defesa,
E nada se resolve, e o aroma espalha-se
De flores calcinadas e de horror.

O sujeito poético faz um apelo ao diabo que o atende, mas isso de nada adianta, o corpo está condenado ao envelhecimento, exposto à ação do tempo que inexoravelmente, caminha para a sua destruição. O tempo é um dos mais importantes temas da poesia de Drummond, é o principal combustível que move a sua linguagem poética. Ele o descreve incorporando elementos do passado, do presente e do futuro que é assim descrito no poema: O segundo, que me vigia Implacável ponteiro dos segundos.

Não, não quero este decassílabo.
O que eu queria dizer era:
O segundo, não o tempo é implacável.
Tolera-se o minuto. A hora suporta-se.
Admite-se o dia, o mês, o ano, a vida,
A possível eternidade.
Mas o segundo é implacável.
Sempre vigiando e correndo e vigiando.
De mim não se condói, não pára, não perdoa.
Avisa talvez que a morte foi adiada
Ou apressada
Por quantos segundos?

Do segundo à eternidade, o sujeito poético desfia o tempo e cai no paradoxo de suportar toda uma vida, mas não o segundo, a partícula menor do tempo. É o tempo vigiando a vida, fazendo-se passar por ela, atravessando a existência. Lentamente, é o segundo que chega de mansinho, e o segundo é o exato momento do presente, sendo o minuto, a hora, o dia, o mês, o ano, a vida, já transformados no passado e a eternidade no futuro. O poeta manipula os elementos temporais como um químico em seu laboratório. Traz o sujeito para uma consciência da destruição contínua e progressiva da vida. Esse homem, animal enfermo de temporalidade, exibe os dois componentes essenciais de seu ser: o instinto da morte e o instinto da vida.

É num ambiente de transformações que Drummond realiza sua arte poética. Num período em que o mundo passa por caminhos de insegurança e insensibilidade, as certezas construídas pela idéia do progresso vão chocar-se contra o real trágico do século XX, atravessado por duas grandes guerras mundiais, e várias outras tragédias coletivas. A questão do sujeito e sua relação com a temporalidade sofre mudanças, configura-se uma nova relação de tempo e espaço. O futuro já não é mais visto com o acenar de glórias, e o presente não é mais o agora e sim a necessidade da releitura do passado para enfrentar uma nova marcha.

O sujeito senhor de seu destino perfeito, que marcha direto para a perfeição, não é mais idealizado. O progresso deixa de ser a força motriz da evolução social. A identidade deixa de ser lida a partir do interior para se projetar num espaço exterior. O modo de olhar em relação ao sujeito sofre a pluralização dos espaços e a alteridade inaugura agora a nova era. Nessa alteridade, podemos perceber a escrita de Drummond que se aproveita de sua vivência, elaborando-a com a do outro para escrever seus poemas. Nessa arte, notamos a condição do sujeito contemporâneo, sem identidade, com muitas faces, insatisfeito, cindido, a buscar novos caminhos, tantos novos caminhos que nenhum lhe basta. Assim é o sujeito gauche de Drummond, plenamente contemporâneo, que atravessou o tempo e o espaço do século XX, tentando acreditar numa era de progresso da humanidade, mas que ao final se vê cada vez mais esfacelado pelas arestas do progresso que não cumpriu sua promessa de felicidade.

Observamos que a poética de Drummond é perpassada pela fugacidade da vida, pela consciência da dor, da finitude e da transitoriedade. Sua escrita deixa lacunas em seus versos e perguntas sem respostas. A experiência de vida, o tempo e o espaço foram transformados em linguagem poética, permitindo de certo modo o diálogo de sua obra com outros poetas contemporâneos. A esse respeito o crítico Heitor Ferraz tece o seguinte comentário: Carlos Drummond é o epicentro da poesia brasileira neste século, consolidando o modernismo e se projetando na obra de poetas contemporâneos que podem assumir ou negar sua influência, mas sempre dialogam com sua obra.9 E, a exemplo disso, temos a poetisa Adélia Prado que faz uma intertextualidade com a obra de Drummond ao publicar o poema “Com licença poética”:

quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira,
Cargo muito pesado pra mulher,
Esta espécie ainda envergonhada,
Aceito os subterfúgios que me cabem,
Sem precisar mentir.

A poetisa dialoga com o “Poema de sete faces“ em que poeta gauche funda uma identidade poética. O anjo de Drummond é torto, vive na sombra e sentencia ao sujeito poético a maldição: a sua condição de ‘gauche na vida’ No entanto, como podemos perceber, a poetisa se apresenta afirmando-se pela diferença, enuncia o poema sob a ótica do feminino, seu anjo é esbelto, toca trombeta e anuncia-lhe a missão de “carregar bandeira”, ela descarrega o poeta do peso da sua maldição e inaugura a poética do desdobramento, o ser desdobrável que se afirma pela alteridade.

Nesse trabalho concluímos que o poeta traz a marca do contemporâneo, ao mesmo tempo que participou do eixo da tradição literária moderna, num panorama de modificações e rupturas com as estruturas estéticas identificadas ao passado. O prosaísmo de seus versos permitiu a incorporação de novos elementos estéticos ao discurso poético, propiciando a dilatação das fronteiras do literário e reforçando o pensamento de que a poesia é forma, organização acertada de palavras que alcança o espírito na sua necessidade de se fazer imortal.

Notas:

1. SANT’ANNA, 1972. p.31
2. DRUMMOND, 1996. p.20
3. DRUMMOND, 1996. p.20
4. DRUMMOND, 1996.p.20
5. DRUMMOND, 1996.p.15.
6. DRUMMOND, 1996. p.16.
7. DRUMMOND, 1996.p.14.
8. DRUMMOND, 1996. p.80
9. FERRAZ, 1999. p.27
10. PRADO, 1991, p.11

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 1962.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire – Um lírico no auge do Capitalismo. Trad. J.C.M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COMPAGNON, Antonie. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. C.P.Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
DOSSE, François. História do estruturalismo, v. 1. São Paulo: Ensaio, 1993.
HALL, Stuart. A identidade cultural pós-moderna. Trad. Tomaz. Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de janeiro: 1998.
JAMESON, Frederic. Espaço e imagem – teoria do pós moderno e outros ensaios. Trad. Ana Lúcia Gazolla. Rio de janeiro: Editora UFRJ, 1994.
SOARES, Claudia Campos. O afã e a insolvência: a marca do dilaceramento na poética de Adélia Prado. Florianópolis: UFSC, 1992. (Dissertação, Mestrado em Literatura Brasileira).
VASCONCELOS, Mauricio Salles, e COELHO, Haydée Ribeiro. 1000 Rastros rápidos - cultura e milênio. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1999.