Stultifera Navis: a produção da loucura em Armadilha para Lamartine, de Carlos &Carlos Sussekind, e em Bicho de sete cabeças, de Lais Bondansky

Luciano Neves de Sousa



Nós os conheceremos e eles só ficarão livres quando renunciarem à sua liberdade e se submeterem a nos. E estaremos certos ou estaremos mentindo? Eles estarão convencidos de que estaremos certos.
Fyodor Dostoyevsky

Apesar de possuírem discursos diferenciados, literatura e cinema apresentam algumas características que lhes são comuns. São dois veículos utilizados para a transmissão de informações, sentimentos e emoções. Ambos são, por excelência, o espaço da criação e da imaginação. Não obstante, temos contato com a realidade através de cenas e palavras, magistralmente construídas por poetas, diretores e roteiristas. Como argumenta Gislene Barral, o escritor passa boa parte de sua existência tomado pela fantasia e pela invenção de mundos imaginários. O cineasta também está inserido nesse espaço da criação e do delírio, ambos “gravitam em torno da imaginação e da capacidade do homem de crer nas imagens que cria, traduzindo-as em arte”. Nesse sentido, literatura, cinema e loucura deixam de possuir discursos herméticos e passam a transitar num mesmo ambiente.

Pretendemos com este ensaio tornar ainda mais sutil a linha limítrofe entre esses discursos. Não temos a intenção de esgotar o estudo da relação entre literatura e cinema no que tange à loucura, uma vez que estamos trabalhando com duas obras de arte e, como tais, elas possuem a característica de serem inesgotáveis. Como bem ressalta Osman Lins:


Qualquer estudo literário, por mais profundo que seja - e não importa quão sutil e preciso o instrumental utilizado -, alcançará apenas a superfície da obra. Esta é insondável e as tentativas de a revelar, ampliando-a, multiplicam igualmente o seu mistério. Compreender melhor uma obra não significa decifrá-la, os seus corredores são infindos.

Não tencionamos também enveredar pelo viés da psiquiatria, disciplina que tem a loucura como objeto de estudo. Todavia, faz-se necessário discutir um conceito nuclear a grande parte das teorias psiquiátricas: o conceito de “doença mental”.
Tradicionalmente, o doente mental era o sujeito que possuía uma patologia natural, manifestada por meio de sintomas, em analogia às doenças orgânicas. Hipócrates considerava a loucura como uma desordem da natureza orgânica e corporal do homem. Segundo sua doutrina, a loucura como desrazão ou descontrole emocional, como era concebido por Homero e pelos textos trágicos, é resultante de desarranjos orgânicos.5 Hipócrates inaugura, assim, a teoria organicista da loucura, que terá seu ápice na medicina dos séculos XVII e XIX.
Na contemporaneidade, duas perspectivas diferentes da tradicional se destacam: uma, formulada por Carl Wernicke, postula que “as doenças mentais são doenças cerebrais”, ou seja, o doente mental não está organicamente doente e sim acometido por um distúrbio cerebral. Outra vertente; fundada por E. Kraepelin, considerado o pai da moderna medicina mental, considera a loucura como resultado de um distúrbio originado no interior do indivíduo.

A “doença mental” pode também refletir uma desorganização da chamada “personalidade individual”. Dentro desse campo, surgem duas grandes categorias, as psicoses e as neuroses. Não vamos nos deter nos conceitos dessas vertentes. O importante é que, para classificar um indivíduo como neurótico ou psicótico, deve-se pressupor, logicamente, uma norma que é inscrita em uma determinada sociedade e que esses indivíduos violam. A doença mental assume, então, uma postura relacional e não orgânica, como se pensava. O indivíduo é considerado louco em relação a um outro, tido como normal, ou seja, a definição de loucura está relacionada a relações de “normalidade”, “racionalidade” ou “saúde”.
Dentro desse contexto, outra questão surge: uma pessoa que recebe o rótulo de “louco” é efetivamente um louco ou simplesmente possui um comportamento desviante do estabelecido pela sociedade?

Esse é o ponto de partida para este trabalho. Pretendemos mostrar através de meios semióticos diferentes, a obra literária Armadilha para Lamartine e o filme Bicho de sete cabeças, que os personagens considerados como loucos simplesmente possuem um comportamento diferenciado e, devido a isso, foram taxados como doentes. Não estamos dizendo que não exista o louco, o que pretendemos mostrar é que nas obras analisadas, o papel de louco foi atribuído aos personagens, Neto e Lamartine, por apresentarem comportamentos desviantes, e por quebrarem certas “regras de normalidade”.

Em Armadilha para Lamartine temos, a priori, uma narrativa simples. São justapostos dois relatos: o primeiro é do próprio Lamartine que, fazendo-se passar por Ricardinho (um outro interno) narra toda a sua aventura, de dentro do sanatório. O segundo relato é o do pai de Lamartine, um minucioso diário escrito entre os anos de 1954 e 1955, que começa com o abandono da casa por Lamartine e termina com o retorno “do filho pródigo” para o lar, após dois meses de internação no sanatório Três Cruzes, do Rio de Janeiro.
Em Bicho de sete cabeças, um jovem de classe média baixa, pertencente a uma família totalmente desestruturada, é encontrado com um cigarro de maconha no bolso de uma jaqueta e, a partir disso, internado numa clínica para doentes mentais.
Percebemos nas duas obras a loucura como sinal da (des) estruturação da vida familiar, da perda de controle dos filhos. Percebemos também certa máquina social, a família patriarcal, funcionando como uma “tecnologia do poder”. Poder que atua diretamente sobre os corpos desse grupo familiar, modelando-os, manipulando-os.
No caso do filme, Neto é o paciente desse poder exercido por seu pai, que funciona como máquina controladora. O cigarro de maconha no bolso do filho mostra ao pai uma realidade que ele não queria ver, pois revela que o poder não está sendo exercido como ele o desejaria e mostra que ele já não controla mais seu filho. O que fazer diante dessa situação? Como continuar exercendo o poder de pai?
A solução encontrada por Wilson, pai de Neto, foi interná-lo num hospício, transferindo seu poder a outra máquina controladora: a instituição de saúde mental.
Dentro do hospital psiquiátrico Neto vê-se diante de dois mecanismos de controle: a vigilância e a disciplina.
A primeira está encarnada na figura do médico e dos enfermeiros, agentes responsáveis pela manutenção da disciplina entre os internos. Segundo Foucault6, a disciplina é resultado de métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade e utilidade. O uso constante de remédios vai, pouco a pouco, transformando os “doentes” em animais dóceis, seres que vivem perambulando pelos cantos do sanatório como se estivessem alucinados. O eletrochoque, outro método disciplinar, é usado nos pacientes, não com fim terapêuticos, mas com função punitiva. O paciente, a cada sessão, perde sua personalidade e o seu “eu” é reconstruído nos moldes das instituições psiquiátricas.

O louco torna-se, nesse contexto, algo que se fabrica. Neto possui, inicialmente, um corpo inapto para a instituição, não possui a aparência nem o comportamento que o sistema deseja. Desse corpo inapto faz-se a máquina de que se precisa. A cada comprimido e a cada sessão de eletrochoque, Neto vai perdendo as suas características particulares e se tornando um ser robotizado, um “homem -máquina”, dócil, adestrado, “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.7

Vemos, então, a partir do filme Bicho de sete cabeças, a utilização do corpo como objeto e como alvo de poder. Poder corroborado pelo discurso médico que define quem está com a razão e quem está privado dela. Através da palavra falada, Dr. Cintra constrói e apresenta à família um Neto com status de louco, que possui corpo e mente mutilados pelo discurso e pelas ações dos pais e da sociedade como um todo. De acordo com Foucault, “a grande atenção dedicada ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde (...)”8, possui suas origens na Época Clássica:

Momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe9.

O personagem Lamartine, do romance, mostra-se numa situação semelhante à de Neto, personagem do filme. Sua saída de casa, outrora símbolo de segurança, conforto e tranqüilidade, liberta-o do convívio com a família e do sufocamento resultante dos excessos de controles, cuidados e carinhos dos pais” , promovendo angústia em seu pai, Espártaco M, e a sensação da perda de controle sobre o filho.
Nas duas obras, temos o ambiente familiar como local para a perpetuação e a reprodução da moral e dos valores defendidos pela sociedade patriarcal. O afastamento dos filhos, ou o comportamento dos filhos mostram-nos um movimento contra o padrão estabelecido. A internação de ambos é mais uma tentativa de se afirmar o poder paterno.

Contudo, os dois personagens diferem-se diante da decisão dos pais. No caso de Neto, percebe-se uma tentativa de lutar contra a decisão do pai, de interná-lo em um sanatório. Já Lamartine mostra-se passivo diante da atitude do pai. Essa postura de Lamartine, paradoxalmente, pode ser entendida como uma tentativa de se libertar das amarras paternas. A loucura e a internação são usadas, nesse caso, como fuga da figura opressora do pai e como meio de manifestação de sua individualidade. Nas palavras de Foucault, “a loucura é um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa” 10.
Lamartine usa a loucura como veículo para chegar à razão e para negar a realidade opressora imposta pelo pai. Sendo louco, o personagem adquire uma postura contrária à norma imposta por uma sociedade que “o anula, ao rejeitar a heterogeneidade, a diversidade e a diferença”.9
“É preciso fingir. Quem não finge neste mundo? (...) a gente precisa fingir que é louco, sendo louco”.Essas palavras foram proferidas pelo personagem que se autononeava como “jornalista” ao entregar a Neto um gorro, por ele chamado de “guardador de idéias”. Esse objeto, altamente simbólico, possui a função de proteger a subjetividade ou, em outras palavras, a própria razão do personagem. De posse do objeto, Neto passa a fingir que é louco, ou seja, a “aceitar” as normas impostas pela instituição. Nesse sentido, Neto passa viver como uma máquina, um robô que foi construído e modelado para seguir comandos. Entretanto, “a criatura se rebelará contra o seu criador”. Neto dará vida a um outro personagem que finge aceitar a sua posição de louco. “... agora eu tenho que ficar aqui, com um olho aberto e outro acordado... vou ficar ali nessa cadeira, uma orelha aberta, outra ligada...”. Através do guardador de idéias, Neto tem um encontro como seu “eu”, refugia-se em sua subjetividade e racionalmente “torna-se um louco”.

Em Armadilha para Lamartine, a varandola-gabinete e a república de amigos possuem funções semelhantes à do guardador de idéias de Neto. Para Lamartine, a república é símbolo de liberdade, é o local onde ele pode ver-se livre do cuidado desmedido dos pais. O lar, outrora, local de aconchego e de sossego, torna-se para Lamartine, um local de difícil convivência. O excesso de cuidados dos pais e a conseqüente poda de opiniões e posturas inerentes a sua personalidade, levam o filho a romper os vínculos com o lar paterno e a buscar sua independência ao lado dos amigos. Porém, uma relação paradoxal se instaura nesse ambiente. Lamartine deseja a liberdade, mas não possui autonomia suficiente para mantê-la. O resultado disso será um forte sentimento de culpa e de inutilidade que o conduzirá à loucura.

Reação de desespero e fuga a uma realidade que se deseja ignorar, irrompe no filho a loucura gestada durante longos anos. Explode como uma resposta às pressões por demais intensas de seu embate psicológico, produto das contradições entre a atitude de subserviência ao pensamento paterno e o brusco desligamento desse convívio e dependência..11

A varandola-gabinete funciona para Espártaco como um reduto, o último local de seu lar onde ele pode desligar-se do mundo e fechar-se no seu solipsismo. A casa é, para Espártaco, um ambiente corrompido. Nesse sentido, torna-se necessário encontrar um esconderijo, um local “resguardado dos olhares da empregada e das visitas, [onde ele] refugia-se da vida social e preserva-se em sua subjetividade”.12 Espártaco vai, pacientemente construindo o seu mundo nesse espaço da varandola, um mundo sobre o qual ele pode manter a ordem, o domínio e o equilíbrio, não mais vigentes na sua casa.

O “guardador de idéias”, a “varandola-gabinete” e a “república” são, nesse contexto, três áreas limítrofes, espaços fronteiriços, não no sentido interior/exterior e sim no sentido de dependência/independência, loucura/razão. Como ambiente de fronteira, esses espaços são híbridos, ou seja, são pontos de contato entre dois mundos. Imersos nesse “espaço transitório”, os personagens conseguem conviver com a dependência e a independência, a loucura e a razão. O “guardador de idéias” e a “república” funcionam também como tentativa de Neto e Lamartine de opor-se à produção da loucura. No entanto, são apenas tentativas, “retraídos em um mundo ilusório e pleno de experiências interiores, [eles] afastam-se, porém, de qualquer opção ou mesmo de uma solução real para seus conflitos”. 13

Segundo Szasz, “é em vão que o suposto louco afirma que não está doente; sua incapacidade para reconhecer que está louco é considerada como sinal de sua doença”14.

Percebemos, assim, a formação de uma ideologia para explicar o comportamento diferenciado que determinados indivíduos possuem. Imersos numa sociedade que tem aversão ao diferente e ao singular, os personagens Neto e Lamartine - e conseqüentemente as obras em análise - mostram que indivíduos como eles são excluídos e considerados loucos apenas porque insistem na busca da singularidade e da interioridade. Ao considerar a postura de ambos como patologia e anormalidade, as obras confirmam a idéia de que a nossa sociedade ainda não aprendeu a lidar com o “não-padrão”, com o que foge de uma postura imposta pelas normas sociais. A sociedade psiquiátrica e a sociedade civil criam um estigma, ou seja, “um atributo desmoralizador” para tais indivíduos (erroneamente taxados de doentes mentais) para justificar a suposta inferioridade e, até mesmo, a periculosidade destes doentes. Essa ideologia, de acordo com Szasz, “veio substituir o conceito teológico de heresia e as sanções religiosas de confinamento numa masmorra, ou da queima em praça pública, pelas sanções psiquiátricas de confinamento num hospital ou pelas torturas chamadas de tratamento”15.

As duas obras analisadas, Armadilha para Lamartine e Bicho de sete cabeças, constituem, assim, exemplos da ideologia que veio substituir a idéia que se tinha de bruxaria na Idade Média. Neto e Lamartine são indivíduos presos por essa ideologia. É importante ressaltar que os dois personagens constituem indivíduos que deixaram de ser sujeito, seres que foram decompostos pela família, pela sociedade e pela instituição de saúde mental e, posteriormente, modelados de acordo com as normas dessas instituições. Nesse sentido, podemos considerá-los como cyborgs, uma vez que ambos têm sua individualidade desmontada, remontada e, em última instância, excluída da categoria de humanidade que protege seus algozes.



Notas

* Agradeço à Profª Maria Antonieta Pereira pela sábia orientação e aos amigos do grupo de pesquisa pelos constantes e riquíssimos diálogos.
Apud SZASZ, 1978: 167
BARRAL, 2001:1.
Idem, ibidem.
LINS, apud SZASZ, 1978: 167
Sobre esse assunto conferir: PESSOTTI, 1995.
FOUCAULT, 1997: 118
Idem, ibidem.
Idem.
FOUCAULT, Historia da loucura na Idade Clássica: 35.
Idem, ibidem.
BARRAL, 2001: 149.
Idem, Ibidem.
FOUCAULT, História da loucura na Idade Clássica, 184.
Idem, 270.
SZASZ, 1978: 170.

Referências Bibliográficas

BOLOGNESI, Luiz. Bicho de sete cabeças/ roteiro do filme. São Paulo: Ed. 34, 2002.

BUENO, Austregésilo Carrano. Canto dos malditos. São Paulo: Editorial, 2000.

CÉSAR. Ana Cristina. Para conseguir suportar essa tonteira. Entrevista com Carlos Sussekind. Opinião, 10 de setembro de 1976.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad. J.T. Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

HARAWAY, Donna. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: HOLLANDA, H. B. de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MIRANDA, Wander Melo. O texto como produção: Bolor e Armadilha para Lamartine. In: O Eixo e a roda: memorialismo e autobiografia. Belo Horizonte: UFMG, 1986.

MOFFATT, Alfredo. Psicografia do Oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. São Paulo: Cortez, 1981.

PESSOTTI, Isaias. A loucura e as Épocas. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

SILVA, Gislene.M.B.L.F da. Vozes da Loucura, Ecos na Literatura: o espaço do louco em O exercito de um homem só, de Moacyr Scliar, e Armadilha para Lamartine, de Carlos & Carlos Sussekind. 2001. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, DF.

SZASZ, Thomas Stephen. A fabricação da loucura: um estudo comparativo entre a Inquisição e o movimento de Saúde Mental. Trad: D.M. Leite. Rio de Janeiro: 1976.

SUSSEKIND, Carlos & Carlos. Armadilha para Lamartine. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Videografia

BICHO DE SETE CABEÇAS. Direção de Laís Bodanzky. Brasil: 2001.