CANONIZAÇÃO: MANUTENÇÃO E APLAUSO

Leni Nobre de Oliveira

Defesa da dissertação de Mestrado: O vestibular como espaço de canonização da Literatura Brasileira, em Teoria da Literatura, na FALE-UFMG



"Talvez seja correto afirmar que a memória histórica no Brasil é uma planta tropical, pouco resistente e muito sensível às mudanças no panorama socioeconômico e político internacional."[1] O apagamento de um passado, marcado pela eliminação de diferenças e imposição de padrões alheios à afirmação das várias culturas de que se constitui a nação, pode ter contribuído para que a memória nacional pareça falha e, ao invés do ajuste de contas que deveria ocorrer com relação aos vários momentos de repressão por que passamos, a começar pelo processo de colonização portuguesa, passando pela ditadura militar, tenhamos engolido os muitos engodos com que nos fantasiaram as várias promessas de igualdade, através da democratização. No entanto, é preciso repensar a constituição do panorama de nossa formação enquanto nação cuja memória não é uníssona, mas agonística, feita de ressignificações do passado, as quais são elaboradas por classes sociais, segmentos da nação, setores culturalmente minoritários ou hegemônicos, todos eles na maioria das vezes divergentes entre si. Se a idéia de nação se reveste de um caráter consensual, paradoxalmente a nação brasileira tem sua identidade baseada no dissenso, e, só assim, pode ela ser representativa das diversidades que a compõem no seu todo. No lugar da univocidade com que acreditamos caracterizar-se a idéia de nação, faz-se necessário imaginar que, para nós, a polifonia seria a melhor representação de nossa cultura itinerante, metamórfica, que, interpretada como "uma planta menos resistente e mais sensível”,[2] possui a capacidade da transmutação, que lhe dá o poder de vigorar, à margem de todas as condições desfavoráveis as quais lhe são peculiares, graças ao seu caráter diversificado e multicultural.
Do mesmo modo que nossa afirmação cultural comporta-se de forma agonística, em que várias culturas lutam por seus espaços, assim também deveria afirmar-se nosso cânone literário. No entanto, o conceito de obra canônica tem sido formado pelo setor letrado dessa sociedade que tem acesso ao cânone e luta por sua preservação. Tal setor, considerado elite cultural pelo fato de deter uma cultura hegemônica e não representativa do pensamento e da prática de todos os segmentos sociais, coloca, enquanto exemplo e modelo, a cultura ocidental como válida para todos os setores da nação ou sociedade.
Devido a tal fator, há espaços de canonização da literatura que recebem autorização da cultura hegemônica para agendarem a preservação dessa mesma cultura e, portanto, são mantidos e reconhecidos pelos segmentos considerados cultos da sociedade — a universidade é um desses espaços e o vestibular funciona como um instrumento da universidade na sociedade para perpetuar certa tradição cultural, inclusive uma determinada tradição literária.
Essa tradição é continuada através da escolha de obras canônicas ou de fácil inserção no cânone, na determinação de padrões de recepção dessas obras, através da linguagem já consagrada de que elas se constituem e na forma de avaliação de sua leitura através das provas de seleção do vestibular. Contudo, no caso do vestibular da UFMG, muitas vezes, o cânone é ressemantizado, quando obras consagradas têm como parceiros textos não-canônicos ou cujo processo de consagração é ainda inicial e incipiente.
Consideramos obra canônica como sendo aquela que está inserida em uma determinada tradição cultural, tipicamente ocidental. Mesmo quando a obra contesta essa tradição, ela rompe com o passado recente e recupera o passado remoto de tal forma que a retomada da tradição está sempre em pauta. Retomar a tradição implica apropriar-se dela para renová-la ou para recusá-la.

A canonização não é um processo harmonioso mas agonístico, razão pela qual, há diferentes graus de canonização, e, por isso, há obras que são sempre lidas, há muito tempo, constituindo verdadeiros clássicos da literatura nacional, e obras menos visitadas, com menor fortuna crítica, com número mais reduzido de leitores, mas que contêm elementos que podem torná-las canônicas.

Num país multicultural como o Brasil, há diferentes tradições que, pelo mesmo processo de organização do cânone, também tentam manter-se vivas. Entre elas, podemos situar o folclore, as lendas indígenas, os mitos africanos, a literatura feminina, por exemplo, que, por não se inserirem no padrão baseado na civilização greco-latina/judaico-cristã, são deixadas à margem do processo de canonização.

O vestibular da UFMG, ao mesmo tempo que revigora a manutenção de certo cânone literário, baseado na nossa rica tradição cultural ocidental, também investe na abertura para a expressão de culturas minoritárias do Brasil, através de obras não-canônicas, ou que foram canonizadas em outros espaços, tais como Quarto de despejo, indicada para a seleção do Vestibular 2001 da UFMG, consagrada pelo leitor comum, não especializado na recepção do texto literário mas que, por sua vez, estabelece a primeira canonização dessa obra, já que canonização significa aplauso da obra através de sua leitura, tornando-a sucesso de um público leitor, especializado ou não. A indicação pela UFMG, dessa e de outras obras literárias, descentradas do cânone da tradição, para o vestibular, pareceu-nos relevante para que pudéssemos discutir a respeito da existência de vários centros culturais e não de um único centro hegemônico. Observando a prática dessa universidade, concluímos que não se trata de excluir obras do cânone, mas de incluir obras novas, descentralizando, dessa forma, os parâmetros de canonização na literatura, ou criando outros. Trata-se de diversificar e não de recusar experiências das margens, elegendo uma única tradição hegemônica como se ela fosse a única representante de uma nação ou de uma humanidade coesas. Essa coesão é falsa, a nação tem fronteiras culturais internas, tem grupos determinados que também têm direito de serem ouvidos e terem sua cultura valorizada.
A recusa da abertura do cânone, pelo receio de sua destruição, a nosso ver, não procede, observando-se a prática da UFMG. Percebemos que a academia tem poder de canonização das obras literárias e utiliza o vestibular para preservar e/ou ampliar o cânone, bem como para estimular o conhecimento e o estudo sobre ele.
Observamos que, ao longo dos trinta anos de vestibular unificado, a UFMG repetiu insistentemente alguns autores e obras, indicou mais escritores do que escritoras, privilegiou as narrativas em detrimento da poesia, preferiu os escritores consagrados em relação aos que ainda não obtiveram assentimento. No entanto, percebemos também que muitos textos considerados não-canônicas foram inseridos na lista das 175 indicações de obras pela UFMG, promovendo a convivência entre o antigo e o novo, entre a obra consagrada e a obra ainda em estágio de consagração.

Esta dissertação pretende inserir-se no debate contemporâneo sobre cânone, sabendo que se trata de assunto polêmico, cheio de controvérsias, típico da passagem do milênio e dos tempos de revisão dos paradigmas ocidentais, tais como essência, verdade, sujeito, obra, centro, transcendência. Por isso, este trabalho tenta manter uma postura crítica que ora concorda, ora discorda de determinados autores e suas posições, ao mesmo tempo que valoriza a manutenção da leitura das obras inseridas na cultura ocidental, da qual participamos e que, indubitavelmente, conformou todo o nosso pensamento e nossa estrutura identitária/cultural enquanto leitores brasileiros. Procurou-se também valorizar a abertura do cânone para a inserção de obras que fogem a seu modelo por expressarem outras culturas, outros pontos de vista, outras tradições, outras crenças, outras línguas e outras linguagens que, não obstante a diferença, são também partícipes da literatura brasileira, e, por isso, não devem ser relegadas a segundo plano.

Concluímos que, para o pré-vestibulando da era globalizada, o acesso às obras canônicas torna-se dificultoso e que, sendo a escola o espaço em que a prática da leitura literária é possível, cabe às instituições de Ensino Fundamental e Médio o cumprimento do programa estabelecido pelo MEC, para que o aluno adquira habilidades próprias para lidar com o texto, o que lhe possibilitaria melhor desempenho, como leitor e produtor de texto. Pudemos ainda constatar que, embora consideradas difíceis pela maioria dos vestibulandos, as provas de Literatura Brasileira nada mais são do que a verificação de conhecimentos adquiridos ao longo da vida estudantil até o Ensino Médio e que se fazem necessários para o desempenho do futuro acadêmico.

Concluímos também que o vestibular unificado da UFMG, no ano 2000, constitui uma boa amostragem do que vem sendo feito por esta instituição no sentido de conservar, renovando, certa tradição literária brasileira, através da recorrência a obras consagradas e da inserção de obras menos conhecidas, no debate acadêmico. Ao propiciar a leitura das obras pelo público não especializado — os candidatos ao vestibular — o concurso da UFMG instiga a atividade da crítica literária especializada a estabelecer considerações sobre elas, de forma a constituir-se como elemento inegável na manutenção da leitura literária e na formação do leitor na contemporaneidade, contrariando as perspectivas pessimistas daqueles que acreditam na destruição da literatura pelas interferências dos processos midiáticos da comunicação. Freqüentemente, deparamo-nos com uma pergunta sobre o destino do cânone, neste milênio que mal se inicia. Os prognósticos a respeito da leitura do texto literário não são animadores. Ainda mais se associarmos a trajetória da literatura ao destino do livro como o concebemos na modernidade. Em 1984, Italo Calvino comentava:


O sinal talvez de que o milênio esteja para findar-se é a freqüência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica dita pós-industrial. Não me sinto tentado a aventurar-me nesse tipo de previsões. Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar.[3]


Embora alguns autores se posicionem de forma pessimista com relação à prática da leitura de literatura na contemporaneidade, percebemos que o leitor de nível médio, hoje, manipula, no cotidiano, uma imensa variedade e quantidade de informação, inclusive aquelas relativas às obras literárias indicadas para o vestibular e representadas por uma ampla produção de estudos e comentários disponíveis no mercado, cuja importância, como auxílio ao leitor, não pode ser desprezada.
Bem faz a UFMG ao indicar, através de seu vestibular, as obras da tradição comparadas às novas e descentralizadas, porque assim se mantém o cânone e assim se pode avaliar o destino da literatura, que é estar sendo sempre renovada, evitando que se transforme em objeto de culto de um grupo restrito que pretende, a partir de certo cânone, imobilizar os textos, em nome da originalidade, dos critérios arbitrários de valor, da influência e do centramento, aspectos insustentáveis na contemporaneidade, em que os signos se dobram sob a interação com o leitor e com o escritor, para produzir a transitoriedade dos sentidos.



Notas

[1] SANTIAGO, 1998. p.22.
[2] SANTIAGO, 1998. p.22.
[3] CALVINO, 1997. p.11.