De cócoras - a literatura contemporânea na sala de aula

Kênia Aulízia Herédia

Agora é diferente de para sempre
Asas do desejo

As discussões sobre literatura tendem a passar por questões relativas à sociedade, à cultura e à vivência humana. Isso ocorre devido ao fato de a literatura constituir um discurso polifônico, ou seja, composto de várias vozes, tornando-se, assim, lugar privilegiado para debates que buscam a formação de uma consciência crítica em relação ao mundo, à condição humana. Neste trabalho, trataremos do ensino de literatura brasileira produzida atualmente, a qual tem muito a contribuir para a formação da cidadania dos alunos dada a atualidade dos temas que aborda. Por serem atuais, esses temas vêem de encontro aos anseios dos jovens estudantes do Ensino Médio. Além disso, podemos ressaltar o estreitamento do diálogo da literatura com as outras artes promovido pela narrativa contemporânea. Esse diálogo, aguçado com o cinema, a música e as artes plásticas, permite novas formas de apresentação e tratamento do texto literário dentro da sala de aula.

Nessa perspectiva, a obra escolhida para estudo, neste trabalho, é o romance De cócoras, de Silviano Santiago estando tematizadas nessa obra a velhice e a morte solitária: “a dissolução do corpo e as reflexões existenciais que isso acarreta para a personagem central”,[1] podem ser pensadas como enfraquecimento da própria razão, o que vem promover uma espécie de exílio - talvez degredo - do idoso em nossa sociedade.

Para tratar disso, o autor constrói um sistema de referências constituído tanto da pintura de Alberto da Veiga Guignard quanto do rock de Cazuza e do cinema americano dos anos 40. O uso de diferentes sistemas semióticos - artes plásticas, música e cinema - vem constituir uma importante característica da literatura de Silviano Santiago - e de outros autores contemporâneos. Esse diálogo com as várias artes, mesclando uma produção erudita com produções da chamada cultura de massa, permite aos estudantes do Ensino Médio a formação de uma consciência artística aberta às inovações da cultura contemporânea em todos os âmbitos. Isso favorece o trabalho do professor na medida em que a maioria dos alunos são bons conhecedores da cultura de massa: não será Cazuza cantor conhecido dos jovens de hoje, mesmo estando situado no chamado boom do rock nacional ocorrido nos anos 80?

Certamente, a prova disso é que podemos ouvir músicas de bandas e cantores dos anos 80, sendo cantadas nas rodinhas formadas por adolescentes de 16 e 17 anos.

Como um São Sebastião flechado

Em relação ao enredo do romance este se nos apresenta de forma linear: é a história de Antônio de Albuquerque e Silva no dia de sua morte. Com uma existência sem grandes sobressaltos ou acontecimentos, a personagem pode ser visto como um homem comum cuja característica mais marcante é sua honestidade. Funcionário do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER, e mesmo sendo responsável por relatórios de licitações públicas Antônio se mantém afastado da corrupção presente neste órgão- tema que permanece atual gerando grandes polêmicas e escândalos:

As calúnias foram atingindo a muitos funcionários e merecidamente. As calúnias não atingiam Antônio, passavam de raspão e se perdiam janela afora. Antônio não era competente, não era corrupto, era crédulo, credulíssimo.[2] Desse modo, Antônio opta pela ética, como afirma Silviano Santiago, construindo um lugar de isolamento, de solidão. É importante ressaltar que a ética da personagem se manifesta não apenas no âmbito profissional mas também pessoal. No final do romance temos mais uma demonstração da honestidade de Antônio que recusa uma morte grandiosa, oferecida pelo primeiro anjo que invade seu quarto. Esse anjo, como um escritor[3] procura interferir nos sonhos finais da personagem central: "O anjo está decepcionado. Não consegue arrebatar a batuta das mãos da memória de Antônio e reger o sonho como maestro arrogante."[4] O anjo não compreende as lembranças do menino Toninho - "o anjo não tem infância nem memória.",[5] sensações humanas e cotidianas como o medo diante da perda da mãe, o sangue que escorre após a bicada de um papagaio ou as fezes com as quais Antônio se suja nos momentos finais de sua vida. Já o segundo anjo se apresenta como um soldado medieval - rápido e implacável - mata Antônio fazendo dele "uma réplica de São Sebastião".[6] A aparição dos anjos no último capítulo do romance modifica o sentido da narrativa, até então "realista", e nos remete a essas figuras que povoam o imaginário tanto "primitivo" quanto o imaginário cristão e que alcançam grande sucesso comercial em livros de auto-ajuda. Isso pode gerar um debate sobre a interferência da religiosidade na vida contemporânea e as formas que ela vem assumindo.

Assim, é a imagem de São Sebastião flechado que abre e fecha De cócoras revelando, como dissemos acima, o interesse pelo tratamento de questões relacionadas a vivência cotidiana, como a velhice e a morte solitárias, consoante com as idéias de Guignard - o quadro reproduzido na capa do romance é de sua autoria: "provocar a intelectualidade racionalista do sistema em relação aos problemas mais amplos da liberdade humana".[7] Esse pintor nascido em Petrópolis e educado na Europa firma sua importância no cenário das artes plásticas brasileiras na medida em que sua pintura vem a ser, nas palavras de Ronaldo Brito, a busca de uma empatia com a paisagem e a vida ao redor, o drama lírico do sujeito diante do mundo. O lirismo permanece comentário e repotencialização da existência que ocorre no quadro de uma certa constância, uma certa experiência comum e cotidiana.[8]

O conflito que vai se estabelecer no decorrer dessa busca surge da necessidade de se adequar o aprendizado da pintura européia a uma forma de expressar a paisagem brasileira, tanto social quanto natural, e suas contradições. Sobre isso, sua atuação frente a Escola de Belas Artes, criada em 1943 por JK, é inovadora sendo o marco inicial do modernismo em Minas, no tocante às artes pláticas. Até então, o ensino de arte, em Minas Gerais, se mostrava fechado às inovações da arte moderna preso a um modelo academicista. É Guignard que "dará inteira liberdade de expressão ao seus alunos, não havendo uma imposição para uma determinada conduta estética."[9] Desse modo, o que vem caracterizar a obra de Guignard é um olhar reflexivo, dirigido ao passado e ao presente procurando a integração do primeiro no interior das conquistas modernas. Isso fica claro no diálogo, assinalado por vários estudiosos, que Guignard mantém com os pintores renascentistas italianos, como Botticeli e Piero de la Francesca. Quadros como São Sebastião, de 1947, vem atestar esse diálogo. Como afirma Ivone Luzia Vieira:

Na criticidade de Guignard, em sintonia com a visão de mundo de Botticeli, a imagem de São Sebastião despe-se da racionalidade e altivez do soldado romano, para se apresentar apenas como um homem comum, que sofre a violência imperialista do antigo regime. (...) o cenário tem como pano de fundo a natureza primitiva, sob árvores agrestes que se contorcem em movimentos simultâneos em relação ao corpo que agoniza.[10] Assim, trabalhar com o quadro São Sebastião de 1947, de Guignard, capa do romance, associado à música o Blues da piedade, da qual é retirada a epígrafe do livro, promove o conhecimento e o reconhecimento de uma temática mais humana, cotidiana: o santo pintado por Guignard se apresenta como um homem sensível aos sofrimentos, homem como outros homens, pois como está na música de Cazuza, "Somos iguais em desgraça". Pode-se dizer que se quer afirmar, com esse verso, a necessidade de solidariedade no sofrimento.

Tais questões permitem reflexões acerca do lugar do idoso em nossa sociedade extremamente marcada por uma visão de lucratividade para qual o valor se define pelo que se pode produzir e consumir.O idoso se vê excluído da sociedade capitalista na qual “tempo é dinheiro”. Sobre isso, a descrição da perda da noção de tempo por Antônio se revela muito interessante: o relógio, marco do tempo do trabalho, da produção, perdendo sucessivamente os ponteiros dos segundos, minutos e horas e culminando na confusão dos números soltos no visor do relógio nos remete, como afirma o autor, a um tempo pré-capitalista[11] regulado pela natureza cujo término do ciclo é marcado pela morte.

Essa imagem do relógio quebrado pode servir de mote para um debate sobre a questão do trabalho nos dias atuais que é verdadeiramente paradoxal: os jovens se vêem inseridos em uma sociedade em que se trabalha cada vez mais - todo o tempo é o tempo do trabalho - e, simultaneamente, se tem menos emprego nos moldes tradicionais que pode resultar tanto no chamado trabalho informal quanto no ócio total - o tempo do não-trabalho. Como fica a criação de laços afetivos e sociais, o lazer e a fruição da arte, que demandam tempo, quando um grande período da vida se destina exclusivamente ao trabalho? A solidão configura, nesse contexto, o sentimento mais constante em um mundo no qual as pessoas têm menos tempo umas para as outras. Prova disso é formação de Centros de Apoio a Vida que procuram amenizar, através do telefone, a angústia de pessoas solitárias, principalmente nos períodos de confraternização como Natal e Ano Novo.[12] Essa sensação de abandono também é experimentada por muitos adolescentes decorrente, muitas vezes, tanto das mudanças físicas e psicológicas quanto da falta de diálogo com os pais.

Uma forma de se discutir essa questão dentro da sala de aula poderia ser pedir ao alunos que fizessem pequenas entrevistas com os colegas de classe, vizinhos e parentes sobre a solidão e a morte e, em seguida, um debate no qual se discuta as visões apresentadas pelos entrevistados sobre esses temas. Outra atividade interessante seria uma pesquisa dos alunos, orientados pelo professor, a fim de escolherem outros textos - poemas, contos, jornais, músicas, fotos, etc, que também abordem esses temas e apresentá-los ao restante da turma discutindo as diversas formas de tratamento da solidão e da morte pelos diferentes discursos da sociedade.

Um amor inventado

Uma outra questão que pode ser abordada diz respeito as citações cinematográficas presentes na obra. Em De cócoras a reminiscência tem grande importância: nos momentos finais de sua vida Antônio se dedica a recordar cenas de sua infância e juventude. Surge então a figura de Toninho, menino assustado com a morte da mãe, cujo corpo é velado na sala de jantar. Antônio, de cócoras como Toninho sob a mesa de jantar, assiste a um filme no qual são reveladas as cenas mais marcantes de sua vida. Desse modo, o cinema se faz presente nas recordações da personagem como que preenchendo lacunas da vivência concreta:

Rita é trapalhona quando se trata de fechar ou abrir o zíper do vestido. Alguém tem de subir no palco para ajudá-la. Toninho sobe ao palco do cine Palácio e vai abrindo o zíper do vestido colante. O vestido de tafetá negro fica solto em torno do corpo já despido pela metade. Rita deixa que caia o decote tomara-que-caia. Toninho vai despindo Rita como se estivesse descascando uma banana, até deixá-la nuinha na tela de sua imaginação.[13] A figura de Rita Hayworth se torna tão importante que a esposa de Antônio é rebatizada em função da admiração e "paixão" deste pela estrela do filme Gilda. As cenas nas quais Rita canta as canções Amado mio e Put the blame on Mame boys se tornaram tão famosas - foram até parodiadas em um filme brasileiro[14] - que configuram os únicos momentos de glamour na vida prosaica de Antônio. Foi com Gilda que Rita Hayworth se transformou no maior símbolo sexual dos anos 40: a seqüência do cassino, acima citada, fez com que o filme fosse censurado, por ocasião de seu lançamento no Brasil, tendo sido considera muito erótica na época. Isso pode servir para discussões acerca da sexualidade e da afetividade na adolescência levantando questões como: o que é considerado ousado hoje, em termos de sexualidade? Como são apresentadas, ou representadas as questões relacionadas à afetividade? Provavelmente, os estudantes de hoje acharão as cenas de Gilda muito inocentes se comparadas com cenas de filmes atuais. Assim, os próprios estudantes podem selecionar essas representações a partir do contato estabelecido com elas no seu dia-a-dia. O material será certamente variado: personagens de novelas e filmes, músicas, artigos de jornais e revistas direcionadas ao público adolescente, as opiniões de pais, amigos, etc.

Também pode abordar questões relativas às relações familiares a partir da figura de Toninho. Menino ainda, ele especula as razões de determinados comportamentos familiares e experimenta o medo e a sensação de desamparo com a perda da mãe. Aqui se privilegia o mundo visto da perspectiva da criança, quase nunca ouvida. Nesse sentido, o dedo em riste do irmão mais velho, “tique de juiz de menores”, é definido por Antônio como um gesto retórico de quem nunca ouve o que o outro tem a dizer. A partir dessa observação da personagem pode-se colocar em debate o problema do menor abandonado. É fato já confirmado que muitos desses menores possuem família e, no entanto, preferem as ruas ao ambiente doméstico. As implicações dessa situação para o desenvolvimento afetivo da criança, e para a sociedade, são desastrosas fazendo com que o menor busque nas drogas, nas gangues o apoio para sua sobrevivência - não apenas material mas também emocional - tornando-se, assim, um marginalizado pela sociedade. A coleta de estatísticas sobre a situação do menor abandonado no Brasil, a pesquisa de projetos de integração dos meninos de rua na sociedade, tudo isso em conjunto com os alunos, é uma maneira de conscientizá-los do problema e até incentivar a busca de soluções.

Há ainda questões relacionadas a cidade. O estranhamento de Antônio frente ao Rio de Janeiro atual, que se apresenta hostil e violento – o medo que a personagem tem ao parar no sinal fechado revela bem o desconforto e o confinamento que o aumento da violência gera para os habitantes dos grandes centros urbanos. A imaginação de Antônio surge como forma de sobrepor a imagem amistosa, anos 40 do Rio, à cidade violenta, preferindo os antigos itinerários aos novos sistemas viários. Como afirma Néstor García Canclini, o sentido da cidade se constitui no que ela oferece ou não a seus habitantes,[15] assim, o Rio dos anos 90 - na verdade, uma determinada parte - é negligenciado cada vez mais por Antônio que se refugia nas recordações do passado e no isolamento doméstico. Tendo em vista todas as questões levantadas pode se propor um trabalho que procure detectar os principais problemas de uma grande cidade, em diferentes momentos da história. Essa atividade, assim como as demais, até então apresentadas, seriam melhor sucedidas se realizadas em uma perspectiva interdisciplinar – com os professores de Literatura, História e Educação Artística trabalhando em conjunto – a fim de que os alunos vejam como um mesmo tema é tratado por diferentes disciplinas. Por último, gostaríamos de ressaltar a importância de trabalhos que envolvam pesquisa – tanto a bibliográfica quanto a de campo (entrevistas) – e debates. Tais atividades são mais dinâmicas e demandam uma participação ativa dos estudantes, requerem um posicionamento crítico, uma visão comparativa do assunto/objeto de estudo e favorece, ainda, o desenvolvimento da capacidade de exposição oral e escrita dos conteúdos estudados. Dessa maneira, o desdobramento dos temas apresentados por uma obra literária visam mostrar que esta se constitui através de diferentes discursos sociais e artísticos sendo, por isso, espaço propício para o debate e conseqüente formação de uma consciência crítica.

Dados sobre os autores estudados

SILVIANO SANTIAGO nasceu em 1936, em Formiga, MG. É professor na UFRJ e apresenta uma produção literária muito diversificada - poesia, ensaio e ficção. Podemos destacar os seguintes livros do autor: Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (1978), Em liberdade (1981), Stella Manhattan (1984), Uma história de família (1992), Keith Jarret no Blue Note, (1996).

ALBERTO DA VEIGA GUIGNARD nasceu em 1896, em Nova Friburgo, RJ. Faleceu em 1966, em Belo Horizonte, MG. Em 1915, mudou-se para Munique, retornando ao Brasil em 1929. É considerado um dos maiores artistas plásticos brasileiros, destacando-se na formação de toda uma geração de artistas plásticos mineiros. Dedicou-se como poucos a retratar a paisagem brasileira, principalmente as igrejas barrocas de Ouro Preto.

Notas:

1. PEREIRA, 1999.
2. SANTIAGO, 1999. p. 66.
3. PEREIRA, 1999.
4. SANTIAGO, 1999. p. 102.
5. Idem, 1999. p. 105.
6. PEREIRA, 1999.
7. VIEIRA, 1998.
8. BRITO, s.d.
9. KLABIN, s.d.
10. VIEIRA, 1998.
11. SANTIAGO, 1999.
12. Informação retirada de um programa de televisão.
13. SANTIAGO, 1999.
14. Em Este mundo é um pandeiro Oscarito canta uma paródia da canção Put the blame on Mame boys.
15. CANCLINI, 1995. p. 91.

Referências Bibliográficas

AUGUSTO, Sérgio. Gilda foi o maior ícone erótico dos anos 40. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 mar. 1999. Ilustrada, p. 6.
AVELLAR, Marcelo Castilho. Feito de fascínio. Estado de Minas. Belo Horizonte, 10 ago. 1989. Segunda seção.
CANCLINI, Néstor García, Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
CAZUZA. Coleção Milenium. CD, 1998.
GILDA. Direção de Charles Vidor. São Paulo: LK-Tel/Columbia, 1991. 105 min. p&b.
A MODERNIDADE em Guignard. Rio de Janeiro: PUC- RJ, Empresas Petróleo Ipiranga, 1983.
PEREIRA, Maria Antonieta. De cócoras - a poética do cotiadiano. (no prelo)
SANTIAGO, Silviano. De cócoras. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
SANTIAGO, Silviano. Conversa com Maria Antonieta Pereira. In: PEREIRA, Maria Antonieta. Suplemento literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, nº 53, p.8-14, nov. 1999.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinariedade. O currículo integrado. Trad. Cláudia Schilling.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. P. 191-253: Modalidades de projetos curriculares integrados.
VIEIRA, Ivone Luzia. A modernidade em Guignard: inocência poética em questão. In: SOUZA, Eneida Maria (org.).
Modernidades tardias. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.